domingo, 16 de fevereiro de 2025

Metafísica do Sexo


Tínhamos indicado já na Introdução ser próprio dos Tantras uma espécie de enquadramento histórico da orientação que os caracteriza. Partindo da concepção duma involução crescente que se verificou no ciclo atual da humanidade, com uma sucessão de quatro idades, e tendo constatado que nos encontramos agora na última destas idades, denominada a «idade escura» (Kali-yuga), época de dissolução, de preponderância das forças elementares, quase como que a de uma Shakti sem freios, e onde se perdeu quase totalmente a espiritualidade das origens, a via indicada como sendo a que convém a uma tal situação é a que se poderia caracterizar pela fórmula de «cavalgar o tigre». Trata-se do princípio de não evitar uma força perigosa, nem de lhe opor diretamente resistência, mas de se unir a ela e manter essa posição com firmeza, esperando sempre poder, no fim, triunfar. É esse o motivo pelo qual os Tantra renunciaram ao vínculo do segredo que se impunha outrora relativamente a certas doutrinas e práticas da «Via da Mão Esquerda», devido ao seu perigo e à possibilidade de abusos, aberrações e incompreensões (NOTA 23). O princípio fundamental dos ensinamentos secretos comuns quer à corrente hinduísta, quer à corrente budista dos Tantra (correspondendo à segunda essencialmente à chamada Vajrayâna) é a capacidade de transformação do veneno em remédio ou «néctar», é o uso para fins de libertação das mesmas forças que conduziram, ou podem conduzir, à queda e à perdição. Diz-se que se emprega «o veneno como antídoto para o veneno». Um outro princípio tântrico afirma não estar estabelecido que «fruição» e «libertação» (ou separação, renúncia) se excluam uma à outra necessariamente como pretendem as escolas unilateralmente ascéticas. Propõe-se como objetivo, realizar as duas simultaneamente e estar assim apto a alimentar o desejo e a paixão, mantendo-se, ao mesmo tempo, livre. Certos ensinamentos deste tipo tinham sido considerados tais que não deveriam ser revelados a todos. Dizia-se num texto que se tratava duma via «tão difícil como andar sobre o fio duma espada ou de segurar um tigre pela trela» (NOTA 24). Em que medida, tendo em vista o que acabamos de expor, os métodos tântricos se podem adaptar verdadeiramente aos dias de hoje em que faltam completamente à grande maioria dos homens e das mulheres as qualificações necessárias para afrontar tais riscos, é caso que deverá ser devidamente ponderado. Seja como for, deve recordar-se àquele que pensa poder o tantrismo oferecer um cômodo álibi espiritual para se abandonar aos seus instintos e sentidos, que se pressupõe em todas estas correntes uma iniciação e uma consagração preliminares e a inserção do indivíduo numa determinada comunidade ou cadeia (Kula) que lhe forneça uma força protetora, e, de um modo geral, uma ascese sui generis uma enérgica disciplina e autodomínio, de modo a poder dedicar-se às práticas de que iremos falar. Deve também sublinhar-se que se encontra uma premissa idêntica em outras correntes que, embora tivessem proclamado a «anomia», a libertação do espírito de qualquer vínculo ou norma de moral corrente, só as obtinham no termo duma via cheia de dificuldades. Os Ismaelitas submetiam-se ao período do Sheikh da Montanha e verificavam-se fatos idênticos nas correntes anteriormente indicadas, como as dos «Irmãos do Livre Espírito», Begardos e dos Ortilibianos, a propósito das quais se escreveu: «Antes de chegarem ao ponto de lhes ser permitido qualquer prazer, submetiam-se às provas mais duras; a sua vida era idêntica à que levava nas ordens mais severas; a sua aspiração era a de quebrar a própria vontade, anular a sua pessoa para a voltarem a encontrar como uma glória pura no esplendor divino… Era preciso orar, meditar, exercitar-se nos atos que mais nos repugnam. Mas uma vez atingida a liberdade de espírito, tudo era permitido (NOTA 25).»


As raízes do tantrismo conduzem-nos por sua vez frequentemente ao substrato arcaico da Índia aborígine onde figura não somente o motivo central de Deusas do tipo sháktico, mas também um conjunto de práticas e de cultos orgíacos. Encontram-se num domínio que confina com a feitiçaria, formas obscuras de tantrismo, ritos através dos quais o homem procurava captar certas entidades femininas elementares — yakshînî, yoginî, dakinî — consideradas por vezes servas da deusa Durgâ, outras vezes como emanações dessa deusa, mas frequentemente, como uma mistura de temas anímicos — fascinando-as e dominando-as por meio de encantamento na pessoa duma mulher real, enebriando-se e possuindo fisicamente esta mulher em lugares selvagens, nos cemitérios ou nas florestas, com o fim de obter poderes especiais (NOTA 26). Reaparece, assim, nestas práticas, embora duma forma grosseira, o regime das evocações já por nós estudado no capítulo precedente nas suas múltiplas variantes, com a diferença, porém, de que neste regime se insere agora o fato sexual concreto. Se, por um lado, a mulher que se pretende «demonizar» e depois violentar, constitui o objeto dos ritos obscuros que acabamos de mencionar, servirá também de tema fundamental nas formas superiores de magia sexual tântrica e vajrayânica. Nestas formas o conceito do casal humano que se transforma em incarnação momentânea do par divino e eterno passa, antes de mais nada, do plano ritual e geral das hierogamias ao plano operacional. Os princípios ontológicos de Shiva e de Shakti ou de outras divindades equivalentes presentes no corpo do homem da mulher deverão ser primeiramente realizados; será necessário atingir, ritual e sacramentalmente, um estado onde se toma consciência da natureza mais profunda, sentindo-se o homem e a mulher efetivamente Shiva e Shakti. Esta é a premissa duma união sexual que deixa de ter um caráter somente físico e carnal para apresentar também um caráter mágico, cujo centro de gravidade se desloca num plano subtil (aquele já por nós considerado, ao afirmarmos que o fato magnético de todo o amor ou desejo sexual intenso consiste numa «embriaguez ou congestão de luz astral») correspondendo o seu clímax e o seu êxtase supremos à ruptura de nível da consciência individual e à brusca realização do estado não-dual (NOTA 27). Este é o caso-limite da chamada «via do desejo» — Kâmamarga — que foi considerada na tradição hindu ao lado de outras vias de libertação, de consciência, de ação, etc.


Consideremos mais pormenorizadamente os diversos aspectos da prática tântrica (NOTA 28): O ponto de partida é, por um lado, a capacidade de obter uma sensação ou percepção particular da natureza feminina, e para tal, será necessário recordar o que já afirmamos a propósito da sua nudez. Se para estas escolas toda a mulher encarna Shakti ou Prakrti, uma mulher nua exprimirá ritualmente essa mesma força no estado puro, elementar, primário, não ligado a qualquer forma, não encoberto pela individualização; ao despojar-se de todo o seu vestuário é como se a mulher se oferecesse aos olhares dessa essencialidade. M. Elíade escreve a este propósito : «A nudez ritual da yoginî (da companheira do vîra) tem um valor místico intrínseco: se perante a mulher nua o homem não descobre no seu ser mais profundo a mesma emoção aterradora que se experimenta perante a revelação do Mistério cósmico, não há um rito (na sua união com ela) mas apenas um ato profano com todas as consequências que daí derivam», pois nesse caso a utilização da mulher, em lugar de fazer afrouxar o vínculo que liga à existência condicionada, reforçá-lo-á (NOTA 29). Nas formas mais elaboradas do tantrismo da Mão Esquerda corresponde a esta condição subjetiva à qual se associa um regime de intensas visualizações, isto é, de projeções mentais na mulher duma imagem cultual vitalizada, um processo de certo modo objetivo, para o qual se emprega o termo técnico de âropa, e que significa «estabelecimento duma qualidade diferente», isto é, num sentido rigoroso, de transubstanciação, na mesma acepção em que o cristianismo emprega esta palavra para o mistério das espécies eucarísticas efetuado pelo sacerdote e segundo o qual se verificaria nelas a presença real de Cristo. O autor hindu já citado diz-nos a este respeito que através do âropa a forma física (rúpa) não é negada, mas que cada um dos seus átomos é penetrado pelo svârûpa, isto é, pelo elemento primordial não físico que constitui ontologicamente a sua essência (NOTA 30). Isto aplica-se, pois, à mulher. Estará qualificada para a prática sexual uma jovem devidamente iniciada e instruída na arte das posições mágicas (mudrâ) tendo o seu corpo sido despertado e tornado vivo por meio do nyâsa (NOTA 31). O nyâsa é um processo sacramental através do qual se impõe, induz ou desperta em diversos pontos do corpo (nos seus «pontos de vida») um fluido divino. Este fato pode ser considerado como um equivalente da «demonização» da mulher a que já nos referimos nas práticas obscuras acima indicadas, através dum aumento do fludio natural, que na mulher comum alimenta o magnetismo sexual e constitui a base da sua fascinação. Uma das designações atribuídas às jovens que se ocupavam nestes ritos era, de resto, mudrâ; esta expressão deixou perplexo os orientalistas mas é, contudo, bastante clara: mudrâ (literalmente: sigilo) é o nome dos gestos ou posições mágico-rituais adoptadas pelos yogui para ativar ou obstruir o circuito de certas correntes de força subtil do organismo. A mulher desempenha esta mesma função em elevado grau durante o ato sexual mágico, daí resultando (também relacionado talvez com as mudrâ propriamente ditas, ou seja, com as posições especiais por ela adotadas no ato do amor) essa denominação ser transferida para a sua pessoa.


A jovem escolhida para estas práticas diferencia-se, sob este aspecto, das mulheres utilizadas nos simples ritos orgíacos, assim como, vê-lo-emos brevemente, se modifica nos dois casos o regime do ato sexual. «Os Fiéis do Amor» referiam-se à «dama do milagre», aqui fala-se da «mulher de exceção» (viçesha rati) cuja substância se tomou a mesma da mulher transcendente ou divina — Râdhâ, Durgâ, Candalî, Dombi, Sabaja-Surdarî, etc. (por vezes identificada com a própria Kundalinî sob a forma personificada duma deusa); diz-se ser com ela, e não com uma mulher comum, a sâmânya-rati, que se pode realizar no ato sexual aquilo que estas escolas denominam o sahaja, o estado primordial não-dual que produz a libertação já durante a vida (NOTA 32). Isto não deve, todavia, fazer-nos pensar em algo que se pareça com uma vaga idealização da mulher utilizada. Em ambientes deste gênero exaltamse, por vezes, e indicam-se até como as mais capazes, jovens dissolutas de casta inferior embora se alegue para tal fato uma justificação simbólica: no seu modo de viver fora das normas sociais e morais da religião corrente estas jovens refletem, de certo modo, o estado de «matéria-prima» não associada a uma forma (NOTA 33). Isto constitui uma diferença mais específica do que mágica relativamente ao matrimôniorito, das uniões tipo sacralizado, no quadro institucional e de casta de que já falamos. Trata-se mais uma vez do conceito especial da virgindade já por nós explicado (pág. 189 e segs.) denominando-se «prostitutas virgens» — veshyâ Kumârika — as jovens usadas no culto Kaula, uma subdivisão do culto tântrico. As escolas vishnuitas de orientação tântrica consideram o parakîyâ, isto é, o amor ilegítimo, como, por exemplo, a união com uma mulher muito jovem ou com uma mulher que não seja a própria esposa (ou, por outras palavras: uma das esposas, uma vez que a poligamia é admitida nesta civilização) como a forma de amor mais elevado. Nas discussões retóricas que no Bengala tiveram uma importância idêntica à dos «Cursos de Amor» medievais do Ocidente, os partidários das uniões conjugais viram-se sempre derrotados pelos que defendiam as uniões livres ou ilegítimas; este é o motivo pelo qual se indicou freqüentemente, como um dos modelos divinos que o casal humano deveria imitar e encarnar, o casal legitimo, mas adúltero, formado por Râdhâ e Krishna (NOTA 34). Para justificar esta concepção, alega-se, por outro lado, uma razão psicológica, isto é, o fato de não se poder esperar normalmente duma união conjugal uma intensidade emotiva e uma paixão idêntica à que é despertada em situações irregulares ou excepcionais como as que foram citadas; e por outro, novamente uma razão simbólica: a correspondência da realidade a um símbolo; tende-se ao incondicionado, e a união secreta fora de qualquer sanção ou vínculo social, infringindo-os até, simboliza de modo mais adequado a «ruptura imposta por toda a experiência religiosa autêntica» (deveríamos, na verdade, dizer aqui, iniciática) (NOTA 35). M. Eliade observa, a este respeito, que aos olhos do Hindu o simbolismo conjugal (o «Esposo» e a «Esposa») usado na mística cristã não sublinha suficientemente o desprendimento de todos os valores morais e sociais que se impõem àquele que tende ao absoluto: donde a escolha como modelo ideal e mítico (NOTA 36) dum casal como o de Râdhâ e Krishna e como companheiros dos Siddha e dos Vîra, jovens sem limitações de casta, em que se tinha menos em conta a pessoa do que um certo poder ou fluido especial capaz de alimentar um processo intenso de «combustão». Se ao homem de temperamento fraco estava interdita a utilização de outras mulheres para além da sua, essa restrição, segundo a opinião predominante nos Tantra hinduístas, desaparecia sem que qualquer outra, extrínseca, lhe fosse feita, para aqueles que tinham atingido o estado de sidha-vîra. Mencionamos já a graduação da nudez feminina — e do seu sentido simbólico e ritual — e de fato de somente o iniciado em grau elevado dever servir-se de mulheres completamente nuas. Para designar a jovem emprega-se também a expressão ratî que significa literalmente o objeto de rasa, da embriaguez ou da emoção intensa. A escola Sahajiyâ distingue três tipos de ratî: a sâdharani, isto é, a mulher comum que não procura no ato sexual senão a sua satisfação imediata, a sâmanjasâ, aquela que procura uma participação com o homem; a samarthâ, a jovem capaz de um abandono total e superindividual. Afirma-se que somente esta constitui o tipo desejável de jovem (NOTA 37). Também Kâma, o desejo, e os seus diversos graus, se torna objeto de distinções extremamente elaboradas nos vários textos. Na sua essência, opõe-se ao desejo animal aquilo a que poderia chamar-se «O Grande Desejo que une o corpo ao espírito, muito para além da mera união dos corpos no Pequeno Desejo» (NOTA 38).


Será, pois, interessante notar nas jovens em questão um pormenor que indica a exclusão de possibilidade demétrica (materna) relativamente à afrodisíaca ou dúrgica: nas práticas do tipo tântrico não são admitidas as mulheres que já foram mães. A teoria que provavelmente serve de base a tal norma é resumida pela seguinte máxima dum autor moderno (NOTA 39): «Assim como a mulher perde a sua virgindade física com a primeira cópula, também perde a sua virgindade mágica tornando-se mãe.» Ao tornar-se mãe deixa, pois, de poder ser utilizada nas práticas de tipo superior.


Na medida em que o ato de amor humano deve reproduzir um gesto divino, o tipo de união de deus com a deusa predominante na iconografia deveria fazer supor que o tantrismo da Mão Esquerda adotava como posição ritual fundamental a do viparîta-maithuna, caracterizada pela imobilidade do homem. A parte as razões simbólicas já indicadas, certas razões de ordem prática desempenharam provavelmente também um papel na escolha desta posição para o ato de amor. E sobretudo ao homem que deve ser dada a possibilidade de exercer durante o ato sexual uma concentração particular quanto ao que se passa e toma forma na sua consciência, a fim de reagir como convém, e isto é seguramente mais fácil para ele se o seu corpo se mantiver imóvel. A posição é confirmada, por outro lado, por uma das designações adotadas neste meio quer para a mulher, latâ, quer para o ato, latâsadhâna, porque latâ (no seu sentido literal: liana ou planta trepadeira) está justamente relacionada com uma das posições assumidas pela mulher nesta forma invertida de ato sexual (os tratados de erótica profana utilizam neste caso designações como latâveshtitaka e vrkshâdhirûdhaka). A expressão que se encontra nos textos é, geralmente, «abraçado pela mulher» e não vice-versa, o que nos leva igualmente a pensar que ela desempenhou um papel ativo. Assim, também neste plano são ativados os significados metafísicos correspondendo, segundo o que dissemos anteriormente, à essência do masculino e do feminino.