sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Tradição Tântrica



Texto retirado do Tantrālokaḥ de Abhinavagupta, destacadamente o mais avançado adepto tântrico de todos os tempos. Abhinava foi o responsável por toda reestruturação do Círculo Kaula por volta do Séc. XI. O Tantrālokaḥ é a maior obra tântrica já escrita.


No público em geral existe uma incompreensão ou má compreensão acerca do Tantra. Se acredita que a execução de práticas tântricas como o uso de fórmulas mágicas oumantras, invocações de espíritos e deidades místicas pode-se adquirir, como resultado, poderes mágicos (siddhis) e experiências inquietantes. Mas este entendimento acerca do Tantra é uma atitude tola, ingênua, infantil, pois o Tantra é uma cultura ampla que abrange todos os aspectos da vida. A tradição possui uma concepção particular da Realidade e estilo de vida. Ela apresenta um arranjo de valores que por um lado são eticamente corretos e por outro, prazerosos e satisfatórios ao indivíduo; portanto, é uma filosofia prática. Baseados na experiência indutiva (āgama ou āgamana) dos videntes eyogīs, o que foi largamente verificado por uma longa tradição de experimentação, a sabedoria tântrica forma a base para uma vida feliz e saudável, tanto para o indivíduo quanto para sociedade. O Tantra demonstra em como aceitar e utilizar o mundo e as circunstâncias do dia-a-dia de forma a se tornarem meios para auto-realização. Ele apresenta uma visão integral da vida que sintetiza o prazer (bhoga) e a liberação (mokṣa), assim como o envolvimento com o mundo (pravṛtti) e o caminho da renúncia (nivṛtti). O Tantra advoga um tipo especial de Yoga que vê tudo como sagrado e bom. A mensagem do Tantra é tanto adequada para a era em que vivemos quanto intemporal.

Outro entendimento incorreto, muito comum entre os acadêmicos, é que a tradição vêdica somente forma a tendência básica da cultura indiana e que a tradição tântrica seja uma corrente tangencial, a margem social ou mesmo degenerada e pervertida. Esse é um mal entendido colossal e nunca esteve tão longe da verdade. As āgamas ou tantras possuem uma importância equivalente aos vedas na formação da cultura indiana. A tradição tântrica possui algo muito importante a dizer e isso não deveria ser ignorado se é que desejamos ter uma visão completa da filosofia, religião e cultura da Índia.

Tanto os vedas (nigama) quanto os tantras (āgama) têm um caráter revelatório, pertencentes a um conhecimento da realidade que é extra-empírico ou esotérico. Se isso é real, porque precisamos dos tantras se já existem os vedas? Os tantras são redundantes ou trazem uma menagem diferente? Lado a lado com os vedas, os tantraspossuem um significado especial, um significado que complementa os vedas. De acordo com os vedas e os tantras, a Realidade Última é Consciência (citi ou saṃvit), conhecida pelo nome de Brahman ou Śiva. A natureza dessa Consciência é tanto conhecimento (jñāna) e atividade ou dinamismo (kriyā) e é este aspecto dinâmico da Relidade que é responsável pela manifestação do mundo. Este conceito de dinamismo, embora não explicitamente explicado, está implicitamente presente nos vedas e nas upaniṣads e o implícito é feito explícito nos tantras. A elocução das upaniṣads concernente a Criação claramente sugerem a existência de um princípio dinâmico em Brahman. É dito nasupaniṣads que o mundo saiu ou foi emanado de Brahman e que Ele quis: deixe que eu me torne muitos e reproduza. Estas declarações sugerem kriyā ou spanda. A declaração de que todas as coisas vêm da própria bem-aventurança se refere em termos inequívocos a spanda. Tais declarações não podem ser explicadas como fábulas ou fantasias míticas (ākhyāyikās) como os vedantins o fazem.

Portanto, as upaniṣads aceitam o aspecto dinâmico da Realidade, mas elas não explicam completamente este dinamismo. Mas essa tarefa foi cumprida pelos tantras. Nos tantras, o dinamismo da Realidade foi completamente explanado; o aspecto imanente de Brahman foi trazido à tona. Como resultado, no Tantra há uma atitude extremamente positiva em relação a Criação.

Os tantras complementam os vedas em um outro sentido. O Veda é chamado de nigamaou nigamana, que significa dedução. O Tantra é chamado de āgama ou āgamana, que significa indução. Acredita-se que o Veda foi revelado de uma fonte superior – os videntes não eram os autores dos vedas, eles apenas os recebiam ou os percebiam. Portanto, as declarações contidas no Veda têm de ser aceitas como premissas das quais conclusões foram deduzidas. Então o conhecimento vêdico são deduções (nigamana) provindas de premissas reveladas. O Tantra, por outro lado, se baseia na evidência da experiência dos videntes e yogīs. É uma tradição yogī. Abhinavagupta dá o nome deanubhava-sampradāya, a tradição da experiência.

Não estou dizendo que o Veda não acredita na verificação do conhecimento revelado ou que o Tantra não acredita na revelação. Ambos acreditam em ambos, mas o conhecimento vêdico vem principalmente do processo de revelação, enquanto que o conhecimento tântrico vem através da experiência. Na tradição indiana, revelação e experiência são consideradas complementares – o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. O conhecimento vêdico é confirmado na experiência e esta confirmação experimental é a função do Tantra. Neste sentido, Tantra (āgama) é complementar ao Veda (nigama).

A forma externa do Tantra sugere que ele foi revelado pelo Senhor Śiva, da maneira em que é apresentado o seu diálogo com Pārvatī, sua consorte. Portanto é possível conceber o Tantra como uma revelação, mas a natureza especial do Tantra é que ele é baseado na experiência. Os videntes e yogīs experimentaram a verdade e o Tantra pode ser tido como o registro de suas experiências, sendo o diálogo entre Śiva e Pārvatī um artifício literário cuja intenção é tornar atraente este registro.

Abhinavagupta interpreta o diálogo entre Śiva e Pārvatī como um diálogo dentro de nossa própria consciência, entre os dois níveis de consciência. Ele diz: O Ser, que é alto-luminoso e que está presente em todas as formas, tanto questiona e responde a si mesmo como se estivesse dividindo a si mesmo como inquiridor e inquirido, mas ao mesmo tempo. Também é dito que o Senhor Śiva foi quem, tomando a forma de professor e discípulo, revelou o Tantra por meio de perguntas e respostas. Portanto, o diálogo é entre o buscador interior e do Ser que responde. Aquele que questiona é o ser inferior (aṇu) e o Ser que responde é Śiva, o Absoluto. A mesma interpretação pode ser dada ao diálogo entre Arjuna e Kṛṣṇa na Bhagavadgītā.

Mesmo que o diálogo fosse compreendido literalmente e o Tantra fosse considerado uma tradição revelatória, não haveria discrepância. As noções gêmeas de que por um lado o Tantra foi revelado por Deus e por outro ele foi experimentado por videntes e yogīs são compatíveis, pois como eu disse acima, o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. A tradição tântrica aceita os dois pontos de vista.

Assim, podemos inferir que a tradição tântrica, sendo altamente significante em seu próprio contexto, é também complementar a tradição vêdica das upaniṣads. As ideias tântricas que estão implícitas e às vezes explicitamente expressas nos vedas e nasupaniṣads, estão completamente reveladas nos tantras. Portanto, Veda e Tantra formam a mesma linha de pensamento quando olhamos mais atentamente. Aqueles que compilaram os tantras em um período pós-vêdico estavam conscientes dessa continuidade e unicidade entre as tradições vêdica e tântrica; eles deixaram isso bem claro nas escrituras, está lá, para todos terem acesso. No Kulārṇava-tantra o Senhor Śiva diz a sua consorte, Pārvatī: Os seis sistemas da filosofia vêdica são os membros do meu corpo como os pés, estômago, mãos e cabeça; aqueles que os diferencia está desmembrando meu corpo. E todos estes são os seis membros do Kula; portanto, ó minha amada, conheça a disciplina vêdica para se tornar uma kaulika tāntrika.

O Tanta não desfruta o status de ser complemetar ao Veda. Seu complemento é apenas incidental. De fato, o Tantra tem um status autônomo e idenpendente. Seria bastante rasoável ver o início da tradição tântrica no tempo em que os videntes, sem nenhuma fidelidade ao Veda, independentemente questionavam a vida, fazendo investigações práticas na busca da consciência e finalmente encontando suas respostas. As descobertas dos videntes tântricos complementa o conhecimento vêdico ou qualquer outra tradição, mas da mesma maneira, incidental. O significado da tradição tântrica reside não em seu complemento ao Veda ou qualquer outra tradição, mas no seu potencial automono como uma filosofia de vida completa e perfeita.

De alguma maneira, o Tantra é mais completo e mais importante que o Veda. A razão por trás desta declarasçao é simples. O Tantra é o Veda mais o Tantra; o Veda é o Veda mais o Tantra em sua forma implícita. Quer dizer, o Tantra, além de sua própria sabedoria, incorporta completamente a sabedoria do Veda, mas o Veda contém a sabedoria do Tantra apenas na forma implícita e requer que o Tantra a faça explícita.

Além do mais, os ensinos das āgamas são epistemologicamente mais sólidos do que os ensinos do nigama. O que é obtido pela experiência é conhecimento científico e ele é confirmado por si mesmo, ele não precisa da revelação para confirmá-lo. Ao contrário, a revelação requer a experiência para sua confirmação. Revelação sem experiência permanece como um objeto de fé e não se transforma em conhecimento. A confirmação vem da experiência, não da revelação.

O Tantra pode ser chamado de ciência e ao chamar o Tantra de ciência, não estou mudando o significado essencial do termo «ciência» e nem o utilizando incorretamente. A razão é o princípio geral que subjaz o método científico. Ciência é o estudo racional de qualquer coisa. A razão torna claro que o estudo baseado na especulação ou na fé não pode ser seguro; nós só podemos depender daquilo que podemos observar e cognizar. Portanto, a ciência não se baseia na fé ou na especulação, mas na experiência ou cognição. A razão também deixa claro que normalmente nós só possuímos um modo de experiência, que é tanto empírico como sensorial. Experiência no contexto da ciência significa experiência empírica. Portanto, a ciência também pode ser definida coo um estudo empírico.

Mas utilizando a mesma faculdade da razão, torna-se claro que a ciência é baseada na experiência empírica não pela definição mas simplesmente porque no presente a ciência sabe de nenhum modo de experiência que não seja empírica. Se outro modo de experiência for descoberto, não haverá hesitação por parte de ninguém em chamá-lo de cintífico. Então o único obstáculo seria provar que a experiência é genuína e não um devaneio, uma alucinação ou uma ilusão. Ela se torna científica pela virtude de ser uma experiência.

O Tantra é baseado na experiência dos videntes, yogīs e experimentos espirituais. A eles é solicitado investigar a natureza interior e os potenciais da humanidade, fazendo amplos experimentos tanto no nível individual quanto no social. Seu laboratório é o ser humano e, por extenção, a sociedade. Eles não possuem métodos modernos ou facilidades para o registro dos ensinamentos, processo de arquivo de dados; mas eles têm o seu próprio método particular. A fim de registrar suas descobertas de forma agradável e interessante, não adotam a linguágem científica prosaica, mas expressam suas descobertas em termos poéticos utilizando metáforas, símbolos e alegorias.

As descobertas dos videntes tântricos foram verificadas e confirmadas por uma duradoura tradição de yogīs que perciste até os dias de hoje. Qualquer um pode verificar a verdade destes resultados por si mesmo e isso não envolve risco algum. Assim, o Tantra é uma ciência – uma ciência espiritual. Da mesma maneira que existe a ciência material, existe também a ciência espiritual, cuja metodologia é a investigação espiritual. A ciência material tem a tecnologia como uma fórmula de aplicação. Da mesma maneira, a ciência espiritual também tem uma tecnologia e essa tecnologia é chamada de Yoga. O Tantra apresenta o Yoga de uma forma bem variada. Da mesma maneira que a tecnologia da ciência material é utilizada nos mais diversos campos, o yoga tântrico, a tecnologia da ciência espiritual, é aplicado nas mais distintas áreas da natureza humana.

Não devemos nos ocupar pensando que tudo o que foi escrito no extenso corpo dostantras foi baseado na experiência somente. Da mesma maneira que nem tudo o que está escrito nos vedas é revelação, nem tudo o que está escrito nos tantras é experiência. Os textos tântricos também contêm muito material hipotético, hiperbólico ou até mesmo irrelevante. Se formos ter uma visão realista do Tantra sem nenhum tipo de apego sentimental indevido aos textos tântricos, devemos cuidadosamente extirpar elementos desnecessários para compreender a verdadeira posição tântrica.

Não há dúvida de que a razão seja a única ferramenta disponível para cumprir a tarefa e o único critério de avaliação. Nem o sobrenatural se opõe a razão. Estar além da razão significa ser incognoscível pela razão, não pelo irracional ou anti-racional. Portanto, a razão é a melhor ferramenta e o melhor critério para determinar a real intenção do Tantra, da mesma maneira que é a melhor ferramenta para julgar qualquer coisa. Mesmo quando aceitamos a revelação (śruti), o fazemos porque a razão nos diz que não podemos conhecer ou experienciar a Realidade através da razão ou a percepção sensorial. É apenas pela utilização da razão que nos tornamos conscientes das limitações da razão em si e reconhecemos a necessidade de aceitar a revelação. Que a Realidade está além da razão está claro pela própria razão. A razão é requerida não apenas para tornar a revelação inteligível, mas por nos fazer conscientes do caráter da revelação em primeiro lugar.

A posição do Tantra soa não somente lógica e epistemológica, mas também ontológica e axiológica. O Tantra provê uma visão ampla do mundo, satisfatoriamente explicando todos os aspectos da Realidade. Seu conceito metafísico de consciência dinâmica (cit-śakti) com liberdade (svātantrya) como sua natureza, consistentemente explica todos os problemas da Realidade, incluindo a vida e o mundo. As descobertas tântricas apontam o fenômeno da consciência, que chamamos de Ser ou Puro Eu, que aparece em um nível superficial como a ponta de uma grande Realidade que jaz profunda em nosso interior. Consciência é como um iceberg, apenas uma pequena porção dela é visível sobre a superfície ou como um poço artesiano, que está conectado invisivelmente a um profundo e vasto reservatório de água. Se aceitarmos essa premissa, significa que podemnos explorar os níveis profundos de nossa realidade interna passo-a-passo. A auto-realização pode ser alcançada gradualmente. Mesmo em nosso estado normal de consciência temos um grau determinado de auto-realização, pois o poder da consciência (cit-śakti oukuṇḍalinī-śakti) já está operando em nós na forma das faculdades mentais e processos fisiológicos. É óbvio que esta pequena porção da Consciência irá se manifestar de maneira distinta nas mais variadas pessoas, seja naturalmente ou pelo processo deliberado de descoberta das qualidades da Consciência. Nós podemos estender este processo a manifestação completa da Consciência, auto-realização ou a obtenção de um elevado estado natural de espiritualidade.

A contribuição mais significante do Tantra é no campo axiológico – o campo dos valores. Os videntes tântricos, como os videntes indianos em geral, estavam conscientes desde os primórdios que existem dois tipos básicos de valores na vida. Os valores éticos ou morais por um lado e os valores prazerosos ou que proporcionam felicidade por outro. Os valores morais morais são tecnicamente chamados de śreya, quer dizer, aquilo que é bom; os valores que proporcionam felicidade ou prazer são tecnicamente chamados depreya, quer dizer, aquilo que é prazeroso. No sistema indiano existem quatro valores fundamentais: dharma (satisfação moral), artha (satisfação monetária), kāma (satisfação dos desejos) e mokṣa (auto-realização). Moralidade está conectada aquilo que é bom; a satisfação monetária e dos desejos está conectada aquilo que é prazeroso. Os antigos videntes também estavam conscientes de que na vida existe uma dicotomia muito grande entre aquilo que é bom e aquilo que é prazeroso. As pessoas têm de minar ou suprimir totalmente aquilo que é prazeroso em detrimento daquilo que é bom. Os videntes concluiram portanto que valores que são meramente «bons» sem nenhum elemento de «prazer» são claramente inadequados, nada práticos.

Portanto, os videntes tântricos descobriram um sistema que sintetiza aquilo que é bom eaquilo que é prazeroso, verdade e beleza ou o bom em nós mesmos e o bom nos outros. Eles encontraram a resposta naquilo que chamamos de auto-realização, mokṣa. Mokṣanão é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos na vida. Todos os poderes ou talentos para se trabalhar eficientemente e graciosamente em todos os aspectos da vida vêm do Ser, assim como todo poder elétrico que movimenta o ventilador e ascende a lâmpada vem da usina hidroelétrica. Toda criatividade, artística ou não, vem do Ser. É a partir do Ser que o entendimento iluminado sobre qualquer coisa vem a mente como um lampejo espontâneo (pratibhā). Portanto, quanto mais sintonizados com o Ser estivermos, mais seus poderes florescerão. Portanto, uma pessoa auto-realizada é um professor melhor, um filósofo melhor, um cientista melhor, um líder melhor, um empresário melhor, um gerente melhor etc.

A auto-realização incorpora em si mesma tanto a moralidade quanto a satisfação dos desejos. A moralidade está naturalmente presente em mokṣa por duas razões: primeiro, o Ser que é alcançado em mokṣa é naturalmente bom. É por isso que ele se chama Śiva, que literalmente significa o benigno ou o auspicioso. É ilógico pensar que más ações poderiam surgir de um ser naturalmente benigno. Rāmakṛṣṇa Paramahaṃsa costumava dizer que assim como apenas mel pode cair de um favo de mel, apenas boas ações podem vir do estado-Śiva, quer dizer, o estado de consciência bhairávica.

Segundo, no estado de mokṣa ou auto-realização, o auto-realizado se sente em unidade com o todo, com tudo o que existe. Ele se torna um com tudo. É natural que tal pessoa faça o bem para todos. O que obstrui o Ser é a ignorância (ajñāna). A ignorância é definida como senso de dualidade (dvaita-prathā ou bheda-buddha). É o sentido de que algo ou alguém é o outro. Quando o senso de dualidade é dissipado e o auto-realizado reconhece sua unidade com tudo o que é realizado – quer dizer, o amor universal – então uma das características mais essenciais da auto-realização é conquistada.

O sentido de dualidade é a raiz da imoralidade. Uma pessoa só pode explorar alguém quando ela o considera como algo distinto de si mesma. Mas se ela o considerasse como parte de si mesma, como poderia explorá-la? Uma pessoa auto-realizada não explora ou causa prejuízo a ninguém, pois a auto-realização é um estado de perfeito amor universal. Ao contrário, um auto-realizado ajuda a todos, pois isso é um estado espontâneo de sua moralidade.

Portanto, a auto-realização sintetiza tanto a satisfação dos desejos quanto a moralidade, tanto o prazer quanto o que é bom. Na auto-realização, o maior interesse é o bem das pessoas e o bem das pessoas é o bem de si mesmo e isso é tanto bom quanto prazeroso. Invocando o peso da experiência, me arrisco a dizer que o amor é um dos maiores exemplos ou fenômenos dessa síntese. No amor, o bom para o amante é o bom para o ser amado, o amor se torna um. Uma mãe, por exemplo, sente sua unidade com o filho e sente feclicidade pela felicidade do filho. O amor naturalmente proporciona boas ações por parte do amante em relação ao amado. Contudo, além de promover essa atividade benéfica em relação a pessoa amada, o amor provê satisfação incomensurável, prazer e alegria a pessoa amada. O arrebatamento do amor é tão profundo que apenas o verdadeiro amante pode compreendê-lo em toda sua inteireza. Usando uma frase de Shakespeare, a benção que ele dá é a que ele recebe. O amor é a verdadeira natureza do Ser e um auto-realizado é um verdadeiro amante. O amor é a principal característica dos santos e sábios que alcançaram a auto-realização. Quanto mais realizamos o Ser, maior será o fluxo natural do amor em nós.

A singularidade da concepção tântrica de mokṣa ou auto-realização é dupla: primeiro, de acordo com o Tantra, mokṣa não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos e conquistas em todos os aspectos da vida; segundo, de acordo com o Tantra,mokṣa não consiste meramente de aquilo que é bom, mas de aquilo que é prazeroso, é uma síntese de ambos. Essa noção de mokṣa modifica a classificação popular indiana dos quatro valores inerentes a vida. De acordo com a classificação popular, dinheiro (artha) e satisfação dos desejo (kāma) estão sob aquilo que é prazeroso e a moralidade (dharma) e auto realização (mokṣa) estão sob aquilo que é bom. Mas de acordo com a classificação tântrica, apenas a moralidade está sob aquilo que é bom, na medida em quemokṣa é a síntese de tanto o que é bom quanto o que prazeroso, então é um valor superior.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A Jornada nos Caminhos da Noite Parte 3

Parte . I I I .

O CULTO DE LAM

Anteriormente, eu falei um pouco sobre minha experiência com o Lado Noturno no percurso me minha caminhada na Ordo Tifoniana Occulta, antes conhecida como O.T.O. Draconiana.[1] Falei sobre as operações mágicas da Loja Shaitan-Aiwaz, o Ritual da Serpente de Fogo, a função da sacerdotisa no ritual, a utilização dos kālas na magia sexual, os Qliphoth etc. Cada tema abordado sob a perspectiva da Magia Tifoniana. Nessa terceira parte vou falar sobre minha experiência no Culto da Lam.

Por volta de 1919, Aleister Crowley (1875-1947) estava envolvido na confecção de uma série de desenhos conhecidos como Almas Mortas. Influenciado pelos psicocromos ou almas-pintadas de Leon Engers Kennedy (1891-1970), o artista que pictorizou Crowley como yogī, ele expôs seus desenhos no Greenwich Village, Nova Iorque, onde, pela primeira vez, revelou ao mundo a imagem de Lam. Naquele mesmo ano ele publicou a imagem no frontispício de seu comentário sobre A Voz do Silêncio de Blavatsky, publicado no The Blue Equinox. A imagem de Lam foi produto de uma séria de rituais mágicos ocorridos em 1918, conhecidos como a Operação de Amalantrah. A imagem foi recebida pela médium Roddie Minor (1884-1979) – «O Camelo» – a Mulher Escarlate de Crowley na ocasião.

Crowley nunca publicou qualquer explicação sobre a imagem de Lam.[2] Todavia, por volta de 1941, ele recebeu em seu apartamento de Londres, na Rua Jermyn, a visita de uma americana que observou o retrato de Lam na parede. Os fatos indicam que ela achou repulsivo o retrato e perguntou a Crowley quem era. «Meu Guru», ele respondeu. Em minha experiência, Lam é a máscara de um estado dinâmico de Gnose, não uma mera entidade. O contato com Lam é a entrada no continuum de Maat ou o vácuo extraterrestre de Nuit.

Meus primeiros passos no Culto de Lam

Eu iniciei os trabalhos com o Culto de Lam quando fui admitida ao IVº O.T.O. Nos dois Graus subsequentes, o Vº e o VIº, estive envolvida na exploração das Células Sethianas através de dois métodos básicos: o Tarot das Sombras e a exploração ctoniana utilizando Lam ao mesmo tempo como um Portal e uma Capsula de Exploração.

Minha porta de entrada no Culto de Lam foi o Manifesto da O.T.O. Tifoniana Concernente ao Culto de Lam escrito por Kenneth Grant. Seguindo as instruções desse pergaminho mágico, eu iniciava minhas práticas dentro de um Círculo Mágico. Naquela época, era uma tarefa imprescindível como ordálio do IVº Grau construir um Templo onde eu pudesse no futuro, ao me tornar Preceptora da Ordem, receber e instruir outros membros dos Graus abaixo do meu. Eu não consegui construir um Templo equipado, a exemplo da Loja Shaitan-Aiwaz, mas ergui um santuário que proporcionava espaço para traçar um Círculo de Proteção. Começava com o Ritual do Pentagrama nas oito direções do espaço seguido pelo Ritual do Hexagrama. Sentava-me de frente para imagem de Lam e silenciosamente invocava Aiwass. Na maioria das vezes sentia minhas pernas fracas e por alguns segundos perdia a orientação espaço-temporal. Com o tempo eu conseguia perceber uma mudança clara no meu nível de consciência, como se estivesse utilizando uma planta de poder mais branda. Nesse estado eu visualizava a cabeça de Lam como uma nave que ao mesmo tempo me protegia e me transportava a dimensões que tinha intenção de explorar, fosse através de um sigilo mágico ou yantra qliphótico. Eu olhava através dos olhos de Lam e sentia meu rosto idêntico à imagem. A partir daí eu me via dentro de um mundo de experiências místicas. Recebia mensagens, visões de entidades e formas geométricas, sigilos. No início eu não consegui lidar bem com essas experiências. Sempre tive dificuldade com o inusitado, como relatei anteriormente. Mas com o tempo e a ajuda de Frater Asvk essas experiências se tornaram mais tangíveis e conquistei certa habilidade em me identificar com Lam, o que promoveu um entendimento mais profundo – e bem particular – da Gnose Thelêmica.

O trabalho de grupo na O.T.O. foi suplantado pelo trabalho individual – como na A\A\ – e cada membro da Ordem se tornava um foco de energia na Terra e a projeção de uma Estrela no espaço. Desta maneira, uma complexa rede de entrelaçadas correntes de energia emergia, modelada através dos aspirantes que trabalhavam individualmente, estimulando a construção de uma egrégora. Esta egrégora provou ser o foco ou núcleo de energia para o contato com inteligências além da capacidade humana. Em 1944, Crowley escreveu:

«Minhas observações sobre o Universo convencem-me que existem Seres de inteligência e poder de uma qualidade muito superior do que qualquer coisa que nós possamos conceber como humano; eles não são necessariamente baseados nas estruturas nervosas e cerebrais que nós conhecemos; a única chance para a humanidade avançar como um todo é fazer com que individualmente cada humano entre em contato com estes Seres.»

A magia, conforme a concebemos, trata-se da comunicação com entidades não humanas. O trabalho com Lam e outras Inteligências supra-humanas tem como consequência a expansão e o aprofundamento da consciência humana, bem como a penetração da consciência em outras dimensões. Essa consequente expansão e aprofundamento da consciência também capacita o Iniciado a transcender as aparentes limitações de uma visão do tempo linear e sequencial. Um exemplo disso ocorre quando se considera a sucessão dos aeons e suas relações com a Precessão dos Equinócios. De acordo com esta visão, nos encontramos atualmente nos primórdios do Aeon de Horus, que durará aproximadamente 2,000 anos antes de ser sucedido pelo Aeon de Maat, a Era da Verdade e da Justiça. O tempo, contudo, é parte e parcela da ilusão da manifestação e não tem sua «manifestação» na direta experiência mágica ou mística. Os aeons representam níveis de Iniciação e ocorrem simultaneamente. A consciência apropriada para cada um dos níveis ou extratos está disponível para o Iniciado, que está a partir daí capacitado a se locomover de um nível para outro à vontade. Restrições temporais são dissolvidas através da experiência direta da consciência pã-dimensional e atemporal.

O retrato de Lam é usado como um Portal para penetração da consciência em outras dimensões. Em suas fronteiras, a infinitude cósmica e o inconsciente coletivo mesclam-se e se unem. Em épocas anteriores, os navegantes eram orientados pelas posições das estrelas. Os ocultistas dos dias atuais são psiconautas que navegam no oceano sem fim do Sagrado Anjo Guardião, sendo guiados pela luz da consciência enquanto cruzam ilhas obscuras e esquecidas.

Os iniciados que trabalham individualmente com o Culto de Lam têm alcançado a consciência da corrente energética de Aiwass, entrando periodicamente em contato, através de Lam, com o atual Chefe Secreto da humanidade, o que nos encoraja a progredir. Nosso lema é Asta Aiwass Vina, o que significa que «Nós somos Guiados por Aiwass».

Em minha experiência com o Culto de Lam eu recebi indicações muito claras de que Aiwass e Lam são a mesma Inteligência e que a corrente energética de Aiwass se materializa como Lam quando emerge através da consciência humana.[3]

Aiwass é uma Inteligência desencarnada, uma Mente que vibra em uma frequência extremamente alta, sem forma e sem fronteiras, mas que pode às vezes se focalizar e agir através da consciência humana. O potencial energético é maior do que o sistema nervoso humano pode suportar por um breve período de tempo. Ele se funde através de uma variedade de mecanismos de defesa, portanto, que agem como absorvedores e transformadores. As vibrações tornam-se mais lentas até que estejam compatíveis com a ressonância psíquica humana. Neste ponto, o campo energético humano age como uma antena e o psiconauta tem a sensação de que Aiwass está dentro dele. Ele age somente como um receptor, aparentado talvez como um rádio ou televisão recebendo sons ou imagens do exterior. Aiwass sempre está além do alcance de nossa percepção, simplesmente porque ela está sempre se movimentando. Aiwass pode ser considerado como um lago de consciência com inúmeras fronteiras, uma Mente Cósmica esperando-nos nos limites de nossa realidade.

Está claro de Crowley sabia da relação entre Lam e Aiwass. Em uma conversa particular com Frater Asvk, ele me disse na época: « Lam é Aiwass. Crowley quando olhava para seu desenho de Lam sussurrava Aiwass e o considerava «o Caminho e a Vida». Lam é Aiwass! Lam é a manifestação de Aiwass como um de seus aspectos na consciência humana ou um avātar de Aiwass.

Eu comecei a unir a exploração qliphótica e o Culto de Lam quando iniciei meus trabalhos na Célula Noturna. O Tarot das Sombras de Linda Falorio foi imprescindível nesse processo. A Célula Noturna tinha um trabalho próprio de exploração qliphótica com esse Tarot, assunto que pretendo desenvolver na sequência desse texto. Utilizando o Tarot das Sombras, Frater Asvk proveu a seguinte instrução:

Seguindo os procedimentos mágicos de costume, sente-se de frente a carta que representa a sentinela. Procure, por alguns instantes, assimilar o máximo de informações possíveis sobre a carta. Isso é necessário para que possa se familiarizar com os símbolos da carta que representa o túnel.
Em seguida, olhe fixamente para o retrato de Lam até que a sonolência sobrevenha. Com o olhar fixo naturalmente se concentrará nos olhos; eles parecerão alargarem-se e absorverão sua consciência. Neste momento você sentirá uma estranha sensação de que se encontra dentro da cabeça de Lam. Dois caminhos estão agora abertos: um para cima, outro para baixo. Se for para baixo a descida será acompanhada por uma sensação aérea que pode chegar à força de um furacão. Uma profunda escuridão vai engolfar a mente na medida em que entra no escuro túnel atrás da boca de Lam. Nesta quietude o contato pode ser estabelecido com a rede de túneis que se ramificam para baixo em direção à base de Lam. Estes transportam a mente para dentro de um violento vórtice e a consciência parecerá difusa em uma variação de formas que são transportadas rapidamente para cima se fundindo em uma única forma. A fusão ocorrerá entre os olhos de Lam, na região do ājñā-cakra. O mantra Ipsoslam ou Lamipsos deve então ser vibrado conforme forem os túneis para cima ou para baixo.

Ipsos é a Palavra do Aeon de Maat enquanto que ipsoslam é um mantra para invocação de Lam. Através dessa técnica de projeção e visualização, eu utilizava Lam como um Portal. As cartas do Tarot das Sombras eram as chaves que abriam o portal para minha jornada nos caminhos da noite.

O Culto de Lam no Soberano Santuário da Gnose

Demônios, Anjos, Deuses e Inteligências cósmicas são partes de uma realidade subjetiva para muitos ocultistas e gosto de pensar que as fronteiras entre as realidades subjetivas e objetivas não estão fixas. Talvez o exemplo mais familiar nos tempos modernos de um contato real com Inteligências extraterrestres seja a recepção d’O Livro da Lei via uma entidade poderosa e desencarnada conhecida como Aiwass. Mas esse tipo de contato sempre foi negligenciado pelos thelemitas que se focam apenas na busca e nos significados ocultos d’O Livro da Lei e as soluções para seus muitos mistérios. As Chaves deste grimório mágico só podem ser decifradas sob a «influência» de uma inteligência praeter-humana. Em minha experiência com o Culto de Lam aprendi que é de importância primária estabelecer este tipo de contato. A O.T.O. desenvolveu métodos efetivos para este trabalho excitante, embora perigoso. Um deles é baseado no controle onírico através da magia sexual. O método envolve o congresso sexual com entidades supramundanas através de uma técnica que nos induz ao sonho lúcido. Aqui, o fator crítico é o estado de gnose do magista que, durante a operação mágica deve estar com o subconsciente completamente aberto, em um estado nem desperto ou completamente adormecido. Esta técnica de controle sexual onírico foi formulada a partir do sistema de sigilização de Austin Osman Spare[4] e do sistema de lucidez erótica-letárgica da O.T.O.[5] Antes de cair adormecido, o magista deve praticar karezza[6] (estimulo sexual que não culmina na ejaculação), enquanto visualiza vividamente um sigilo[7] especialmente elaborado para simbolizar o objetivo desejado da operação. A libido é desta maneira impedida de se expressar imediatamente, buscando sua satisfação no mundo dos sonhos. Quando a técnica é dominada, o sonho torna-se extremamente intenso e é tomado por um súcubo «mulher-sombra» ou íncubo «homem-sombra», com quem o congresso sexual acontece espontaneamente. Mesmo com um grau moderado de proficiência, o magista estará consciente da contínua presença do sigilo. Ele deve manter o sigilo sobre a Sombra «súcubo ou íncubo» a todo o momento, inclusive com profunda visualização durante o intercurso sexual. O sigilo torna-se carregado pela energia gerada pelo rito e no devido curso o objetivo da operação se materializa.

Em uma instrução intitulada Os Amantes de Nuit para o Soberano Santuário da Ordem, Frater Asvk apresentou um conjunto de técnicas sexuais atualizando o Culto de Lam para os Graus VIIº, VIIIº e IXº O.T.O. As técnicas envolviam a visualização de Lam como a kuṇḍalinī tanto nos rituais de magia sexual monofocal do VIIº, magia sexual duofocal do VIIIº ou magia sexual polifocal do IXº.

Na minha prática pessoal, realizava um trabalho com os cakras visualizando Lam como a Serpente de Fogo. Diferente da técnica publicada pela Starfire,[8] o método empregava a excitação sexual sem culminar no orgasmo. Às vezes eu utilizava a maconha para o aumento da gnose, quando a experiência ganhava outros patamares. Tentei utilizar ayahuasca uma vez, mas o estado de transe que a planta proporcionou me tirou completamente da realidade e foi impossível adicionar a gnose sexual.

Ainda estou esperando por novas instruções...


[1] Embora o sistema seja o mesmo, i.e. a tradição Draco-Tifoniana, não existe relação entre a extinta O.T.O. Draconiana e o atual trabalho do Círculo Tifoniano.
[2] Isso permitiu o desenvolvimento de um «culto» distinto dentro da O.T.O.
[3]Um pioneiro nas experiências com o Culto de Lam foi o fundador da Associação Psicotrônica na Iugoslávia, Zivorad Mihajlovic-Slavinski (1937). Bispo da O.T.O. Antiqua de Michel Bertiaux e Xº Grau da O.T.O. Tifoniana, Zivorad publicou livros importantes como Yoga: Treinamento Psíquico [Yoga: Psychic Training], As Chaves da Magia Psíquica [The Keys of Psychic Magic] e muitos outros, além de uma novela intitulada A Aurora de Aiwaz [The Dawn of Aiwaz]. Ele é Fundador da Ecclesia Gnostica Alba (EGA), uma comunidade de iniciados com muitos afiliados. Em uma de suas experiências, ele relatou: «Eu pude perceber Aiwass-Lam agindo através de outra Inteligência que se identificou como Tesla. Em uma incursão mágica através do Culto de Lam eu travei contato com a consciência da corrente energética de Aiwass. Na ocasião recebi uma distinta mensagem: «Sim, eu ajo através de Tesla: seu nome contém a prova!» Durante meses essa mensagem me perseguiu, pois não conseguia decifrá-la. Mas um dia me vi brincando com minha mente quando percebi que Tesla podia ser lido como AL-SET. AL é naturalmente uma referência a O Livro da Lei, enquanto Seth refere-se à Aiwass.»
[4] Culto Zos Kia «C.Z.K.».
[5] Lucidez erato-comatosa, técnica formulada por Ida Nellidof para o VIIº O.T.O. Crowley teceu um comentário sobre o tema em Liber 414: De Arte Mágica.
[6] Os ensinamentos da magia sexual monofocal do VIIº O.T.O. incluíam o linga e yoni-pūjā, técnicas tântricas de adoração ao falo e a vulva.
[7] Neste Grau é requerido que o magista tenha uma capacidade de visualização firme, constante e estável. Para isso é necessário uma mente unidirecionada. Veja os artigos A Concentração & sua Importância e Manaskriyā, partes #1 e #2, por Fernando Liguori.
[8] Veja Lam Workshop.

A Jornada nos Caminhos da Noite Parte 2

Parte . I I .

QABALAH TÂNTRICA

Quando terminei os ordálios do IIIº Grau e fui admitida ao IVº, o Grau do Mestre Magista, fui apresentada aos trabalhos da Célula Noturna e ao Culto de Lam. Imediatamente comecei a trabalhar com essas duas células, unificando, finalmente, suas práticas. Meu interesse no Caminho Noturno começou quando fui apresentada a uma tradução do Liber 231 de Aleiater Crowley (1875-1947) e o comentário de Kenneth Grant (1923-2011) no livro Nightside of Eden.[1] Essa instrução apareceu primeiro em Os Livros Sagrados de Thelema, publicados no Brasil pela Editora Madras, em duas edições distintas.

Penso que essa instrução é um portal por onde o ocultista moderno pode ter acesso a Espiritualidade das Sombras.[2] Trata-se de um texto sobre o Reino das Cascas, os Qliphoth.[3] Eles representam a antítese das Sephiroth e constituem, portanto, o Lado Negro da Árvore da Vida.

De acordo com o sistema de interpretação da Ordem Hermética da Aurora Dourada sobre a Árvore da Vida, existe um espaço entre as sete Sephiroth inferiores e as três superiores ou Supernas. Este espaço entre as Sephiroth é conhecido pelo nome de Abismo. Acredita-se que ali é o reino de outra Sephira, Daath. No diagrama da Árvore, essa Sephira é às vezes pictorizada em pontilhado ao invés de um círculo traçado – como as outras Sephiroth. Isso significa que Daath não é considerada uma Sephira como as outras, mas um «mundo sombrio».

No Séc. XVIII, um ativista-espiritual messiânico chamado Jacob Frank (1726-1791) enfatizou a importância de Daath em seu sistema religioso que incorporava conceitos judeus, cristãos e islâmicos. Esse foi um período na história em que ouve muita especulação acerca da natureza de Daath. Mas foi o Corvo de Londres[4] quem apontou Daath como um tipo de anti-sephira, o «Portal Exterior» para uma região conhecida como Zona Malva.[5]

Liber 231 traz a descrição dos Qliphoth. De acordo com – uma – tradição qabalista, este é o mundo dos cascões da esfera destroçada no momento da Criação e ocupam vinte e dois «anti-caminhos» na Árvore da Morte, o Lado Noturno ou Reverso da Árvore da Vida. Uma das pesquisas da Célula Noturna era a equivalência entre os 22 anti-caminhos dos Qliphoth ou Túneis de Seth com os marmas e sandhis espalhados pelo Śrī Cakra,[6] conhecimento que utilizávamos nos rituais do Círculo Kaula. Na prática, nós utilizávamos a Mesa Qliphótica[7] como portais para o outro lado na forma dos marmas e sandhis no corpo da Sacerdotisa Oficiante.


Śrī Cakra, o yantra que representa o corpo ou a vulva da Deusa.

Aleister Crowley não deixou nenhuma instrução em como utilizar as «22 escalas da serpente» de Liber 231. As operações da Loja Shaitan-Aiwaz, portanto, exploravam inúmeras possibilidades na tentativa de mapear suas potencialidades. Uma delas era a Mesa Qliphótica. Uma coleção de vinte e dois tapetes confeccionados nas cores distintas de cada sigilo qliphótico, de acordo com as informações fornecidas no Liber 777 de Crowley. O tapete era colocado sob a Sacerdotisa Oficiante. Quando o Círculo Mágico era o Śrī Cakra, o tapete qliphótico ficava no chão, quando era o Pantáculo de Daath, o tapete ficava sobre o altar e a sacerdotisa sobre ele. Em ambos os casos, o Círculo Mágico representava a vulva da Deusa. A ênfase em todos os rituais do Círculo Kaula era a produção e utilização dos kālas[8] magicamente carregados. As convocações das sentinelas abriam as Células dos Qliphoth e os kālas secretados pela sacerdotisa eram o combustível que a capacitava a explorá-las.

A abertura e exploração da Zona Malva se dava através da combinação bem fundamentada entre a Qabalah e o Tantra.[9] Em um ritual derivado da Missa Gnóstica,[10] o qual Frater Asvk chamava de Magia Estelar, Astrologia Draco-Estelar[11] ou o Ritual da Serpente de Fogo, um conjunto de convocações qliphóticas para abertura de Daath eram utilizadas junto com técnicas específicas da tecnologia espiritual do Tantra como mudrās e passes magnéticos sobre os cakras, marmas e sandhis da sacerdotisa a fim de se conseguir a secreção bem sucedida de kālas magicamente carregados com ojas.[12]

O Ritual da Serpente de Fogo

Esse ritual é uma versão altamente iniciada da Missa Gnóstica de Crowley e foi elaborado para uma prática em dupla, ambos iniciados no IX° Grau: o sacerdote e a sacerdotisa ou o magista e a bruxa – no sentido popular, não wiccano. O ritual admitia a possibilidade de acólitos e uma prática em grupo, mas sempre com um casal de oficiantes. Quando comecei a assistir e auxiliar nessas operações, a Grã-Sacerdotisa da Ordem era Soror Tanith[13] e quase todas as cerimônias que participei foram oficiadas por ela.

Um objetivo do ritual, como mencionei acima, era a produção e coleta bem sucedida dos kālas, as secreções vaginais magicamente carregadas com ojas. O ritual era uma operação altamente complexa, pois os kālas da sacerdotisa estão associados às fases lunares «tithis» e a deidades específicas associadas a cada fase, chamadas de nityas. Um processo altamente meticuloso para alinhar a célula qliphótica, cakra, sandhi e marma, a fase lunar e deidade regente se iniciava para que o processo alquímico do ritual pudesse ser estabelecido com sucesso. Antes de cada ritual Frater Asvk preparava a carta astrológica da operação, quando ele definia a deidade associada à fase lunar e específica ao kāla que a Sacerdotisa Oficiante deveria emitir.

Frater Asvk, em uma instrução privada da Ordem, enumera as deidades associadas a cada kāla secretado pela sacerdotisa. Existem dezesseis kālas, dos quais apenas quinze são considerados visíveis. A lista dos kālas e as deidades «lunares» associadas segue. Eu omiti a tradução para o português por questões de espaço.


Kāla
Nitya
1. Manada
1. Kāmeśvāri
2. Puśa
2. Bhāgamalini
3. Tuṣṭhi
3. Nityaklinna
4. Puṣṭhi
4. Bheruṇḍa
5. Rati
5. Vahnivasini
6. Dhruti
6. Mahā Vajreśvāri
7. Sasicini
7. Śiva Duti
8. Candrika
8. Tvarita
9. Kanta
9. Kula Sundarī
10. Jyotṣṇa
10. Nitya
11. Śrī
11. Nila Pataka
12. Pṛti
12. Vijāya
13. Angada
13. Sarvamangala
14. Pūrna
14. Jvalamalini
15. Pūrnamruta
15. Cidrupa
16. Amṛta
16. Mahā Tripura Sundarī

O requisito primordial era que a Sacerdotisa Oficiante pudesse ser uma iniciada capaz de elevar a kuṇḍalinī. Mas nem todas as pessoas estão preparadas a este nível. Como medida paliativa, Frater Asvk insistia que, mesmo que a sacerdotisa não pudesse elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras, ela deveria pelo menos ser capaz de liberar o prāṇotthana,[14] a força prânica que desencadeia o despertar real da kuṇḍalinī. Para essa finalidade, a Ordem oferecia um treinamento sistemático em kuṇḍalinī-yoga, sempre direcionado as necessidades e dificuldades pessoais de cada um. Um treinamento tântrico fundamental se iniciava no VIIº, o Grau do Mestre do Templo, onde todos recebíamos o Śrī Devī Khaḍgamālā Sādhanā. Esta é uma prática de adoração a Mãe Divina «Śrī Devī» desenvolvida por Frater Asvk para os membros do Círculo Kaula. A palavra khaḍga significa espada e mālā significa guirlanda. A execução deste sādhanā cria uma aura protetora ou guirlanda de espadas sobre o magista. Trata-se de uma jornada através do Śrī Cakra pela recitação dos nomes das 98 yoginīs ou aspectos de devī que «guardam» os pontos de energia do cakra ao longo do caminho. Em outra oportunidade voltaremos a este ritual.


16 yantras das Nityas utilizados no Ritual da Serpente de Fogo.

Qualquer descuido durante a realização da operação poderia resultar em uma prática espiritual predatória, quer dizer, vampirismo. Para evitar isso, todos nós estávamos sempre cientes da proposta e objetivo do ritual, todos em uma mesma corrente de vibração, cientes de todas as implicações mágicas e kármicas.

Às vezes o ritual tinha um contexto todo thelêmico, às vezes era completamente tântrico. Nós executávamos versões diferentes dos rituais thelêmicos tradicionais como o Ritual da Marca da Besta, o Ritual Safira Estrela e o Ritual da Estrela de Sangue. Às vezes o ritual era feito sobre as bases da Bruxaria Therionica e a corrente lunar de Hécate.

Esse ritual sempre era executado por volta da meia noite na primeira noite de Lua Cheia. Em qualquer uma dessas configurações o trono da Sacerdotisa Oficiante ficava no Norte. Isso ocorria porque nesse dia a Lua ficava no quadrante oposto, o Sul, onde ficava o Sacerdote Oficiante. O Sol ficava sobre a sacerdotisa, no Norte. Isso era feito dessa maneira porque o sacerdote assumia a forma divina do deus Candra, transmissor do «néctar da imortalidade», representado astrologicamente pela Lua Cheia. A Sacerdotisa assumia a forma de Sekhmet, a deusa do calor e furor sexual, associada ao Fogo e ao dinamismo da Śakti.

O ápice do ritual ocorria quando o sacerdote precipitava a kuṇḍalinī no corpo da sacerdotisa. O Sacerdote Oficiante executava determinadas mudrās sobre o corpo da sacerdotisa, sem necessariamente tocá-la, fazendo passes magnéticos sobre certas zonas erógenas, às vezes com a Baqueta Mágica e às vezes com as mãos. Nesse momento a sacerdotisa não era sexualmente excitada, evitando o aterramento da energia mágica enquanto mantinha contrações fisiológicas «bandhas» selando e contendo o prāṇa no interior do corpo. Esse estímulo continuava até que a sacerdotisa literalmente tivesse febre. O objetivo desse processo era o despertar da Serpente de Fogo, elevando-a por todos os cakras ao ponto de «queimá-los» a fim de se estimular a produção e secreção de hormônios associados na corrente sanguínea da sacerdotisa. Nesse processo, o sacerdote trazia a sacerdotisa ao ponto do orgasmo, parando momentos antes do clímax. A excitação sexual somente ocorria, através dos procedimentos do VIIIº ou IXº Graus, quando a sacerdotisa encontrava-se em dificuldade para atingir o estado de consciência associado ao kāla que deveria produzir. Nesse caso, quando o procedimento era com as técnicas do VIIIº, eu e outros acólitos ajudávamos no processo de excitação. Outras vezes, quando o procedimento era através do IXº, então o Sacerdote Oficiante se encarregava de excitar a sacerdotisa. Em qualquer um dos casos, o orgasmo era evitado, pois a energia gerada deve chegar ao ponto de ser carregada magicamente antes de ser liberada na forma de kāla. No momento exato, quando a sacerdotisa chegava ao limite de sua excitação e ao nível de consciência desejado, então o orgasmo era liberado, produzindo o kāla correto associado. O kāla secretado na vulva da sacerdotisa era então coletado pelo sacerdote, às vezes oralmente, na intenção de aumentar seus poderes ocultos ou produzir o contato com forças supramundanas. Às vezes o kāla era coletado sobre talismãs preparados para o objetivo da operação ou em discos de metal alocados sobre os cakras da sacerdotisa durante o ritual. Nas operações, Frater Asvk carregava o ājñā-cakra da sacerdotisa a fim de atrair magneticamente a kuṇḍalinī para sua zona de poder. No último caso, os discos de metal, agora carregados com ojas, eram guardados em um recipiente para serem utilizados depois, em outras operações. Nessas condições os kālas da sacerdotisa eram carregados com a força mágica do ojas, determinando sua eficácia.

Embora a produção dos kālas exigisse uma atenção especial, o objetivo do ritual sempre era a produção da criança mágica. Para isso, a energia masculina é essencial. O fluido seminal do sacerdote é um agente fundamental para o «nascimento mágico». Da mesma maneira que ocorre com os kālas da sacerdotisa, o fluido seminal do sacerdote deve também ser carregado com ojas. O sacerdote deve elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras e evitar o orgasmo para não aterrar a energia antes que ela possa ser carregada energeticamente.

Esse é um poderoso ritual de Alquimia Sexual. Na medida em que o executamos, nosso corpo passa por profundas mudanças fisiológicas que se inicia com a secreção de hormônios na corrente sanguínea. Isso altera a respiração, o metabolismo, a qualidade da saliva, do suor, do sêmen e das secreções vaginais. Nessas condições, visões podem ser obtidas. A concentração mantida durante a excitação sexual, seja através do VIIIº ou IXº Graus, cria um poderoso estresse psíquico. Em outras palavras, a concentração e o foco mantidos para evitar o orgasmo cria uma reação em cadeia no corpo, fazendo com que suas funções se alterem, abrindo Portais que normalmente estão fechados. Como consequência, o transe é induzido. O resultado do ritual, quer dizer, a Criança Mágica, é visualizado na câmara do ājñā-cakra para que possa ser concebido com estrita economia de meios.

O sexo casual não produz um resultado assim. O controle das respostas sexuais automáticas do corpo é necessário, bem como treino e disciplina. Dessa maneira, Portais para os reinos além do visível podem ser abertos e explorados.

Na sequência, irei abordar os trabalhos da Célula Noturna com o Tarot das Sombras e o Culto de Lam para incursões qliphóticas.


[1] O Lado Noturno do Éden, Kenneth Grant. Tradução particular de Fernando Liguori. Existe outra versão deste livro em português disponível na internet.
[2] O termo espiritualidade das sombras pode assustar os leitores. Ele inclui temas como magia sexual, a busca do deus oculto, a espiritualidade feminina (culto ao sagrado feminino), a utilização de drogas e substâncias naturais psicoativas e o acesso às profundas camadas do subconsciente através de um processo conhecido como ressurgência atávica. Contudo, deve ser frisado veementemente que este termo, espiritualidade das sombras, conforme aqui tratado está isento da conotação pejorativa de «magia negra» ou «diabólica».
[3] Palavra hebraica que significa «casca», «concha», «couraça» ou «caco». Uma peça quebrada da Criação de acordo com algumas escolas tradicionais de Qabalah. O reino de espíritos malignos representados por esses «cacos quebrados». De acordo com Kenneth Grant, a palavra significa «prostituta», «mulher estranha» ou «mulher estrangeira». Termos que designam «diversidade» ou «alteridade». O mundo sombrio dos cascões. Cada Sephira da Árvore da Vida possui sua Qlipha correspondente, o reflexo da energia a qual ela representa e seu conjunto ou Qliphoth formam a Árvore da Morte.
[4] Como é conhecido Kenneth Grant, Sacerdote de Seth, um dos maiores expoentes da Tradição Tifoniana.
[5] Termo cunhado por Kenneth Grant. Ele se refere ao Abismo, Daath na Árvore da Vida ou a matéria escura circundante ao Abismo. Mas o termo é carregado e possui muitas implicações. Por exemplo, é a região entre o sonho e o sono sem sonhos, pictorizada pelo Deserto de Seth ou o Tridente de Chozzar, o «porco», um totem tifoniano cujo símbolo é um tridente. É o estado que separa a existência fenomênica do Ser numênico etc. Veja Hecate’s Fountain e Outer Gateways, Skoob Books, 1992 e 1994.
[6] O Śrī Cakra ou Śrī Yantra é uma figura geométrica que representa o corpo da Deusa. Este yantra é o maior símbolo da tradição do Śrī Vidyā. Śrī é uma palavra que significa «sagrado» ou «santo». Vidyā vem da mesma raiz sânscrita que Veda e significa «conhecimento». Portanto, é a tradição do conhecimento sagrado. Trata-se de uma cultura tântrica que sobrevive no Sul da Índia. Nos dias atuais, já não existe uma conexão entre o Śrī Vidyā e as escolas da tradição Kaula, como houve no passado, onde algumas escolas compartilhavam ensinamentos. O Śrī Vidyā é uma tradição śākta. Seu culto é a adoração a Śrī Devī, a Grande Deusa.
[7] Uma coleção de 22 tapetes de cores diferentes com o sigilo dos 22 gênios qliphóticos de Liber 231.
[8] Existem inúmeras variações de kālas «secreções vaginais», dependendo sempre da relação entre o ciclo lunar e menstrual da sacerdotisa. A secreção de hormônios específicos de certas glândulas conectadas aos cakras durante o ritual irá influenciar e até determinar a natureza do kāla. O corpo da sacerdotisa é um laboratório. Na medida em que ela alcança níveis mais avançados na iniciação, este laboratório se torna em um templo: suas funções biológicas possuem contrapartes psicoespirituais que estão sob o seu controle – consciente ou não – durante as operações. Quer dizer, a sacerdotisa pode estar em transe durante o ritual, proferindo mensagens oraculares o tempo todo, mas seu treino e iniciação lhe conferiram a habilidade de responder – mesmo que instintivamente – as mudrās e passes magnéticos do sacerdote. Os kālas em si mesmos são considerados magicamente inertes até serem carregados com energia mágica «ojas» pelo Sacerdote Oficiante. Isso significa que sem a atenção apropriada do sacerdote durante o ritual, os kālas mantêm apenas suas propriedades físicas fundamentais, como a reprodução, por exemplo. Mas quando são carregados magicamente, adquirem propriedades super-humanas. Na medida em que determinados cakras são «ativados» no corpo da sacerdotisa, todo o seu sistema passa por um processo sutil de mudança. A excitação de determinados cakras durante o ritual libera na corrente sanguínea hormônios específicos das glândulas conectadas aos cakras. Isso altera todas as secreções corporais, que são coletadas e utilizadas para finalidades específicas na magia.
[9] Qabalah Tântrica. O termo nasceu de uma reinterpretação da história da magia sexual no Ocidente. No senso comum, a magia sexual no Ocidente começa com os Cavaleiros Templários. Fundada em 1118 d.C., o objetivo dos Cavaleiros Templários era proteger os peregrinos que viajavam ao Oriente Médio durante a segunda Cruzada. Em 1312 a autoridade dos Templários foi suprimida pela Igreja Romana, a despeito de seu poder, influência e riqueza. Todos os membros da Ordem foram caçados e condenados por heresia, bruxaria e magia. A história conta que os Cavaleiros Templários aprenderam de Adeptos Sufis segredos da Alquimia Sexual. Tal segredo fora recebido diretamente de Iniciados tântricos hindus. Esse é o início da magia sexual no Ocidente, chegando até os dias de hoje através de autoridades como Paschal Beverly Randolph e Aleister Crowley. A Qabalah Tântrica nasce de um resgate da tradição hebraica em seus primórdios, nos tempos de Abraão. Naquela época, os hebreus não eram monoteístas, mas politeístas. Eles adoravam a deusa tanto em seus lares quanto no templo em Jerusalém até a destruição do segundo templo em 70 d.C. Existem inúmeras evidências que nos primórdios da tradição hebraica, assim como seus vizinhos politeístas, os mistérios eram celebrados em ritos sexuais de adoração ao Deus e a Deusa. Nesse caminho, por exemplo, a Arca da Aliança recebe uma nova interpretação de seus mistérios. Não era a Arca, as Tábuas dos Mandamentos ou a Torah que continham o secretum secretorum, mas a natureza espiritual do sexo, demonstrada pelos Querubins da Arca da Aliança em coito sexual. Era sabido que Deus falava através dos Querubins. De acordo com a Torah e a Qabalah, Deus cria através da Palavra: «E o Senhor disse: «Faça-se a Luz» e a Luz surgiu». Essa é a revelação do segredo qabalístico da magia sexual: profecia e divinação podem resultar do coito espiritualizado. O assunto merece um espaço maior para nos aprofundarmos.
[10] Veja Liber XV: A Missa Gnóstica em Documentos, Rituais & a Magia Sexual da O.T.O., Por Aleister Crowley e Fernando Liguori. Existem duas versões deste e-book na internet. Uma de 2001 e outra de 2014. A segunda versão foi atualizada e ampliada. Recomenda-se descartar a primeira versão que, segundo o autor, contém inúmeros erros e não está alinhada a Gnose Tifoniana.
[11] O texto Astrologia Draco-Estelar de Fernando Liguori é um relato de uma operação dessa natureza.
[12] Vigor, força, poder, energia, luz, fluído vital ou energia mágica. Para uma compreensão ampla do termo ojas veja o artigo Prāna, Tejas & Ojas: O Segredo da Alquimia Yogī, por Fernando Liguori.
[13] Soror Tanith ou Soror 789 ‘.’, Karen née Liguori.
[14] Veja o artigo Prāṇotthana ou Kuṇḍalinī, de Swāmi Santaram Saraswatī, traduzido por Fernando Liguori.

A Jornada nos Caminhos da Noite Parte 1

Parte . I .

INTRODUÇÃO

O lado noturno está sempre conosco. Ele é muito mais antigo que o lado diurno. Antes da luz começar a brilhar, a noite já existia. Alguns pesam que estamos lidando com uma simples polaridade. Por um lado, um mundo radiante de cores e formas, mais ou menos concebível, sensato e significativo. Como a bonita imagem da Árvore da Vida, possui cidades, hotéis, restaurantes, oportunidades comerciais e os inúmeros caminhos que lhe atravessam.
Por outro lado, o mundo caótico da incerteza e dos mistérios incompreensíveis. Ambos conectados pelo vazio que os torna possíveis. Eles parecem ser simétricos. Mas quando adentramos as profundezas do lado noturno descobrimos que não existe essa simetria. O lado noturno não é simplesmente um reflexo do lado diurno como muitos pensam e espalham.
O lado diurno é uma ilha pequenina de experiência em um oceano enorme, o lado noturno, cheio de correntes, cadeia de ilhas e continentes de possibilidades e impossibilidades. Tudo e Nada estão presente em toda parte. Nossa ilha não é o oposto de um vasto mundo oceânico, é apenas uma pequenina e compreensível parte dele.
Jan Fries, Nightshades: A Tourist Guide to the Nightside

O magista é aquele que se firma no caminho do poder. Ser magista é reconhecer este poder e integrá-lo no vida. Eu aprendi isso em 2006, após ser admitida em um grupo de magistas praticantes. Já fazia dois anos que eu participava da Loja Shaitan-Aiwaz[1] e quando cheguei ao IVº Grau tomei conhecimento de um caminho mágico extremamente poderoso: as Células de Seth ou os Caminhos da Noite. Este artigo fala de minha experiência pessoal nesse caminho de poder através do sistema e métodos da Ordo Tifoniana Occulta. Lawrence e Lorne Blair em seu livro The Ring of Fire, falam de uma possibilidade que se abre: «Tudo tem o seu oposto: alto e baixo, dia e noite, bem e mal e se pudermos integrar estes opostos, compartilharemos a força de ambos em nossas vidas, em nossa arte. É apenas assim que podemos ter acesso a toda energia da consciência.»

Estou no caminho da magia há quase vinte anos e por toda parte onde busquei e encontrei grupos ocultistas ou comunidades mágicas, pude observar que as pessoas apenas contemplam a face dos deuses da luz e simplesmente ignoram os deuses da escuridão. Mas o que é a escuridão? A incapacidade de ver o que está bem ao nosso lado. A escuridão somos nós mesmos.

Neste percurso, aprendi que precisamos, todos nós, de um crescimento espiritual equilibrado. Quando nos cegamos para estes terríveis poderes em nosso interior, lhes damos força e o poder de comando e controle sobre nós. Rompantes de violência e ódio são vestígios incontrolados dessas forças. São poderes fora do lugar.

Dion Fortune no livro A Sacerdotisa da Lua diz que a Ísis Negra se transforma na Ísis Branca. Acredito que isso tenha alguma relevância e relação com as Células dos Qliphoth. A Tradição Oculta fala que estas esferas escuras foram criadas primeiro, por isso são chamadas de primevas. Por serem incapazes de conter a luz, elas se partiram. Interpreto isso da seguinte maneira: a conexão humana com elas foi completamente destruída por um opressor secular, o medo. Nos tornamos completamente desequilibrados na presença de tamanho poder. Então, através de nosso medo, essa energia rebelde, criamos os horrores na mente que somente o medo pode criar.

Como Dion Fortune diz em seu livro, precisamos ir além destes medos para nos tornarmos a Ísis Branca, a pureza do conhecimento primevo do qual nos desconectamos.

As Células dos Qliphoth são consideradas malignas, assim como a mulher. Malignas como Eva. Portanto, a esse poder foi dado uma forma feminina, decepada da mente racional e patriarcal da humanidade.

As mulheres e os xamãs vêm carregando este poder por séculos. Quando os dois lados da Árvore estiverem integrados, ocorrerá aquela ruptura tão exaltada n’O Livro da Lei.

Um pouco de minha experiência

Aos dezesseis anos tive meu primeiro contato com a Filosofia de Thelema. Na época, eu conheci um jovem instrutor da A.'.A.'., Fernando Liguori (Frater Asvk-Aivaz). Eu não tinha idade para que pudesse tê-lo como meu instrutor, mas como começamos a nos relacionar, tive a oportunidade de mergulhar nessa tradição.

Nossa relação não durou muito, mas com o tempo nossa amizade cresceu, o que fortificou os laços de confiança entre nós. Em 2004, já com idade o suficiente, pedi afiliação a então conhecida O.T.O. Draconiana. Na época, fiz o diário mágico para entrar na Ordem e logo fui admitida ao Iº Grau. Em pouco tempo fui convidada para participar dos rituais da Loja Shaitan-Aiwaz, um Templo da Ordem que funcionou como uma zona de poder para muitos membros. Esses rituais mudaram completamente minha forma de ver a magia.

No IVº Grau pedi para participar da Célula Noturna. Era um grupo de poucos membros da Ordem que já faziam, há algum tempo, inúmeros experimentos mágicos-místicos com as Células de Seth. Como possuía a confiança do líder da Ordem, fui convidada a participar dos rituais do Soberano Santuário e recebi, para isso, o VIIº Grau Honorário. Ali começava minhas primeiras experiências com as Células dos Qliphoth e a ferramenta de trabalho que mais me identifiquei foi o Tarot das Sombras de Linda Falorio.

Nos meus primeiros trabalhos espirituais com as Células de Seth, o mecanismo era a união do mantra, yantra e tantra. Os yantras eram as cartas do Tarot das Sombras e os sigilos das sentinelas qliphóticas; os mantras eram a entoação dos nomes das sentinelas acompanhadas por tambores e o som de um sino tibetano; o tantra eram os rituais. Com essa combinação nós conseguimos reestabelecer a conexão perdida com os deuses da escuridão, mensageiros alados.

Com o treinamento, os primeiros rituais e meditações aconteciam por meio da transferência de atenção. Sob condições normais, a mente flutua de um sujeito ao outro. Por conta disso, temos de lidar na maioria das vezes com um conhecimento superficial das coisas. A atenção ou concentração pode ser dirigida através dos olhos para que possamos ver o que não é visto. Quando colocamos a mão sobre um livro e dirigimos nosso olhar, podemos sentir a mão e o livro porque nossa consciência está ali. Quando seguramos e dirigimos o olhar para alguma carta do Tarot das Sombras ou o sigilo de alguma sentinela qliphótica, podemos transferir a atenção da mão para carta (ou sigilo) e então para dentro da carta. Pode-se obter visões apenas dessa maneira. Mas isso não é tão fácil como parece. Para que eu pudesse aperfeiçoar a técnica, Frater Asvk-Aivaz ensinou-me um exercício que envolvia os cakras.

Em um local destinado às minhas práticas pessoais, eu deveria sentar-me em meditação, seguindo os passos que ele me ensinou. Em dado momento, concentrando-me sobre um cakra apenas, eu deveria entoar seu mantra e visualizar sua imagem, deidade governante e muitas outras características do cakra. Quando a visualização estava definida e não antes disso, eu deveria colocar minha mão sobre o gatilho do cakra, que geralmente fica na frente do corpo. Com a mão sobre o cakra eu deveria projetar minha consciência para dentro dele e ali acessar seu poder. Nessa experiência, cores, imagens, símbolos e um sem número de formas são projetadas na mente. Percebi em minhas práticas que os cakras mais inferiores podem ser experimentados com mais facilidade, devido a sua natureza energética. Já na minha experiência com os cakras superiores pude notá-los bem etéreos. Nesse processo descobri que a magia ocorre espontaneamente na natureza. Ela é a natureza. É a mente que interfere nesse processo natural.

Além da falta de concentração, tive problemas com os bloqueios de minha mente. Ao me deparar com a doutrina do Lado Noturno, me sentia como se estivesse correndo contra uma parede: eu simplesmente travava! Geralmente não me sinto segura com o desconhecido, com o que está fora de meu controle. Gosto de pensar que às vezes esses bloqueios nos são impostos por nossos espíritos guardiões, para nosso próprio bem. Mas Frater Asvk me auxiliou a ver que na grande maioria das vezes esses bloqueios são o resultado da inabilidade em nos vermos em um novo contexto. Em uma instrução particular ele me instruiu em um experimento meditativo para superar essa dificuldade, desenvolvendo a consciência do corpo astral. Na instrução ele dizia que na medida em que eu fosse tomando consciência e domínio de toda minha estrutura psíquica, expandindo minha noção de tamanho no espaço, logo conseguiria me adaptar melhor a novas situações. Reproduzo o experimento com permissão:

1.     Acordar sem alarde, com tranquilidade, antes do nascer do Sol. O melhor horário é por volta das 4:00. Segundo a Tradição Oculta esse é o melhor horário para executar práticas espirituais.
2.     Abertura da Kiblah.
3.     Execute o Ritual da Estrela de Fogo e o Ritual de Invocação Nu-Ísis.
4.     Na frente da Kiblah, de pé, execute o Refúgio Thelêmico para produzir o kavacha, armadura mágica.
5.     Sente-se para meditação.
6.     Fechamento da Kiblah.

Experimento

Desenvolvendo a Consciência do Corpo de Luz


Estágio 1: Preparação

Sente-se confortavelmente em uma postura meditativa. Torne-se estável na postura e relaxe todo seu corpo.
Coloque as mãos sobre os joelhos em jñāna ou cin-mudrā.
Gentilmente feche os olhos e respire apenas pelo nariz (pausa).
Relaxe todos os músculos do corpo físico.
Sinta um frescor por todo o corpo e com naturalidade sossegue todas as suas atividades.
Não existe nenhuma tensão ou rigidez em qualquer membro ou parte do corpo.
Se entregue completamente. Sinta como se estivesse flutuando em um oceano de paz. Ondas suaves cobrem todo seu corpo. Veja luz e energia iluminando tudo ao seu redor. Se entregue completamente a essa aura protetora de luz (pausa).
Traga sua consciência para o interior e desenvolva a experiência do espaço dentro do corpo.
Olhe para dentro do corpo e veja apenas espaço vazio.
A pele do seu corpo é como uma casca e por dentro, da cabeça aos dedos dos pés, existe apenas o vazio.
Concentre-se atentamente neste vazio interior (pausa).
Desenvolva a consciência do espaço, o espaço que compreende todo seu ser (pausa).

Estágio 2: Expansão e contração do espaço interior

Torne-se consciente da respiração.
Execute a respiração lenta e profunda.
Movimente sua consciência para dentro e para fora na medida em que inspira e expira.
Na medida em que desenvolve a consciência de cada respiração, comece a experienciar a respiração não apenas pelas narinas, mas através de cada poro e célula do corpo (pausa).
Respire através de todo o corpo. Sinta todo seu corpo respirando como uma unidade (pausa).
Agora, libere a consciência das narinas, pulmões e peito e respire apenas pelos poros. Experiencie todo seu corpo respirando (pausa).
Continue respirando através de cada poro e célula. Imagine os poros abrindo e fechando na medida em que inspira e expira.
Na medida em que inspira por cada poro, sinta que todo espaço interior de seu ser está se expandindo para fora em todas as direções. Todo espaço interior, da cabeça aos pés, está crescendo em tamanho.
Na medida em que expira através de cada poro, sinta que todo espaço interior está se contraindo, diminuindo em tamanho.
Use o poder de sua imaginação e sinta todo seu corpo respirando através de todos os poros enquanto observa a expansão e contração do espaço interior (pausa).
Na medida em que inspira profundamente sinta o ar entrando por cada poro e célula do corpo e que todo o espaço interior está se expandindo como uma bolha.
Então, expire vagarosamente através de cada poro e célula e sinta o espaço interior se contraindo.
Intensifique a experiência da expansão e contração do espaço interior (pausa).

Estágio 3: Visualização do corpo de luz

Agora, junto com a experiência da expansão e contração do espaço interior na medida em que inspira e expira, torne-se consciente do prāṇa permeando este espaço na forma de luz.
Com cada respiração o espaço interior se torna preenchido com partículas de luz branca que se movimentam em todas as direções com grande velocidade formando listras luminosas.
Observe este corpo de luz (pausa).
Na medida em que inspira o corpo de luz se expande.
Na medida em que expira o corpo de luz se contrai.
Concentre sua consciência totalmente na experiência da luz expandindo e contraindo na medida em que inspira e expira. Você está experimentando o campo de força de seu corpo de luz vibrando no ritmo da respiração (pausa).

Estágio 4: Expansão do corpo de luz

Nesse momento, visualize que seu corpo de luz se expande em todas as direções.
O seu corpo de luz se expande até as bordas do universo. Visualize seu corpo de luz até o fim do universo (pausa).
Aonde termina o universo, se inicia o Outro Lado.
Toque o Outro Lado (pausa).
Expanda seu corpo de luz além das bordas do universo. Vá até o Outro Lado, entre nele (pausa).

Estágio 5: Fim da prática

Prepare-se para vagarosamente finalizar a prática.
Contraia o corpo de luz. Traga-o bem próximo do corpo.
Deixe a visualização do corpo de luz.
Desfaça a experiência da respiração através dos poros.
Deixe a consciência do espaço vazio dentro do corpo e retorne ao corpo físico.
Foque sua atenção na ponta do nariz e sinta o ar entrando e saindo pelas narinas.
Torne-se consciente de todos os sons externos.
Vagarosamente movimente os dedos das mãos e dos pés.
Estique seus braços acima da cabeça e se espreguice.
Apenas quando estiver totalmente em seu corpo físico, abra seus olhos.[2]

Essa prática me ajudou a expandir os limites de minha consciência e vagarosamente fui assimilando melhor a doutrina e as práticas com as Células de Seth.

Ter acesso a um templo equipado é fundamental na prática. Embora o poder interior possa ser construído passo a passo a cada rito, a prática torna-se muito mais fácil quando executada em um ambiente carregado com o poder de outros ritos semelhantes. O templo é como o útero – na escuridão e no silêncio o poder permanece em crescimento. Se não é possível dedicar um quarto a construção de um templo, utilize um altar oculto, dentro de um armário ou estante. Um templo com paredes escuras ajuda muito nas práticas com as Células dos Qliphoth. A luz do sol dissipa as energias com as quais estamos operando. Apenas a luz de velas é necessária nesses ritos e às vezes eles são executados na mais completa escuridão.

Eu tive a oportunidade de fazer muitas práticas e rituais no templo da Loja Shaitan-Aiwaz. Ele possuía paredes negras e era completamente equipado. O templo é a morada da alma. O que ocorre na alma se reflete no templo.

Frater Asvk nos instruía que a movimentação no templo, nessas operações com os Qliphoth, deveria ser lenta e estável, como se estivéssemos nos movendo através das águas. Isso permitia que nos tornássemos conscientes das mudanças no mênstruo astral, facilitando a adaptação do corpo de luz.

As Operações da Loja Shaitan-Aiwaz

Eu tive a oportunidade de participar de muitas cerimônias mágicas no templo da Loja Shaitan-Aiwaz. A fórmula mágica que configurava o templo e dava direção aos nossos rituais era essencialmente Śākta.[3] Nossa abordagem do Absoluto era expansiva e o Divino era a Grande Mãe sob inúmeras formas, principalmente no Culto a Kālī do Círculo Kaula. Esse era o nome dado a um grupo seleto de Iniciados do Soberano Santuário da Ordem para operações mágicas que envolviam os Graus VIIIº, IXº e XIº em uma abordagem essencialmente tântrica. Esses rituais operavam uma alquimia psico-sexual que envolvia basicamente os marmas, as sandhis e os Qliphoth.[4] Embora seja um sistema cosmológico, o Śrī Cakra representa o corpo da Deusa. Através das técnicas espirituais da Medicina Āyurveda, os marmas e sandhis podem ser manipulados através de compressões e passes energéticos para abrir portais na consciência da Sacerdotisa Oficiante, o que permitia acesso fácil ao reino dos Qliphoth. Esse acesso a fazia destilar certos elixires sexuais, os kālas e permitia o despertar da Serpente de Fogo «kuṇḍalinī» no corpo da Sacerdotisa, quase sempre em estado de transe ofidiano.

Em todos esses rituais eu participei apenas como acolita. Quando Frater Asvk declarava o círculo mágico como daath, o maithuna começava e eu devia tencionar os chamados na Luz Astral. Essa era minha principal função nas operações do Círculo Kaula. A magia e o misticismo do Círculo Kaula era fundamentada sobre o trabalho com os cakras. Frater Asvk tornava disponível um corpo de conhecimento que associava as sete estrelas da Grande Ursa aos cakras, bem como os planetas e as sete carruagens da merkavah. Esse corpo de conhecimento tornava essas conexões tangíveis e reais, o que produzia um conhecimento secreto e essencialmente prático com o kuṇḍalinī-yoga, não apenas em práticas internas e pessoais como meditações e visualizações, mas também em rituais que envolviam o grupo, possibilitando a abertura e zonas de poder coletivas, cakras no corpo da Deusa.

A magia sexual monofocal do VIIº apenas me permitia participar das operações como ajudante. Solitariamente eu executava as instruções oficiais da Ordem e um trabalho mágico-sexual com a construção de talismãs e a cópula astral com um íncubo. Essa prática envolvia o estímulo sexual e a visualização de uma cópula com um deus ou sentinela dos túneis. Em alguns rituais coletivos eu auxiliava no estímulo sexual do Sacerdote e Sacerdotisa Oficiantes. Foi um período rico em aprendizados e descobertas íntimas.

Em uma instrução, Frater Asvk enviou um trabalho mágico-sexual do VIIº com Samael, a Desolação de Deus, a Essência do Dragão Vermelho. Já em estado ofita, antes da visualização da cópula, a invocação consistia:

Com a Baqueta Mágica, trace o pentagrama viparita do Fogo enquanto visualiza o Dragão Vermelho, Samael. No fim do traçado, entoe: HVHI (hay-yah) de forma calma, tranquila e prolongada.
Após a visualização entoe o chamado:
Eu te invoco em essência, Samael, marido de Lilith e pai de Cain. Invoco o Espírito do Fogo e da Terra.
Zazas zazas nasatananda zazas.
Agios Samael
[...]

Na sequência falarei mais sobre os trabalhos mágicos da Loja Shaitan-Aiwaz.


[1] Uma zona de poder da O.T.O. Draconiana, conhecida também pelo nome Ordo Draco-Thelemae, que operou durante nove anos.
[2] Carta de 23 de outubro de 2006.
[3] A construção de um templo e a elaboração dos rituais nele executados tem de respeitar a fórmula mágica operante do templo. A fórmula mágica é nossa relação com o Absoluto. Podemos nos relacionar com o Absoluto na forma do Ātma, Bhāgavan ou a Śakti Universal.
[4] Umas das principais práticas do Círculo Kaula da O.T.O. Draconiana envolvia o Śrī Cakra. Este yantra é um mapa semelhante em natureza a Árvore da Vida e as tabelas Enochianas empregadas pela Ordem Hermética da Aurora Dourada. A intercessão de seus quarenta e três triângulos são equivalentes aos marmas e sandhis do corpo humano. Um marma é um ponto onde três linhas – ou nāḍīs – se encontram no Śrī Cakra. Há 28 marmas. Sandhis são os pontos onde duas linhas se encontram no Śrī Cakra e são em 24 no total. A soma de 28 + 24 = 52 letras do alfabeto sânscrito e sua manipulação pode ser feita para criar e diagramar mantras.