sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A Magia & O Misticismo de Liber 418


Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.

[...] Falar a respeito de Deus é difícil. Tudo depende da definição que damos àquela palavra. Mas para mim não há dúvidas quanto à existência de seres poderosos e inteligentes, e de um nível de desenvolvimento muito superior ao da raça humana. É este silogismo que faz da Magia um imperativo: através dela podemos entrar em contato com tais inteligências ou podemos desenvolver qualidades em nossas mentes que se aproximem das deles. A existência do universo é uma prova de que assim deve ser. Em resumo, Magia é o ofício de entrar em contato com tais Seres; Misticismo é a arte de desenvolver a mente para se atingir um estado equivalente ao deles.
Aleister Crowley, 1947.


O ANO DE 1909 foi muito significativo para o cenário thelêmico: Aleister Crowley conquista o 7o Grau de Iniciação – o de Adeptus Exemptus 7°=4 da A.’.A.’. e escolhe omote OU MH; as iniciações da A.’.A.’. são abertas, pela primeira vez, para candidatos que não faziam parte do grupo inicial dela; sai a primeira edição de Liber 777 e no período de 03-11 a 19-12 Crowley e Victor Neuburg realizam operações ritualísticas utilizando-se do Sistema Enochiano de Magia. Tais operações ocorreram na Argélia, um país do norte da África, culminando em Liber 418 – também conhecido como A Visão & a Voz. Essas Operações foram tão místicas e profundas que, em meio a elas, mais precisamente em 3-12, Crowley ascende ao grau de Magister Templi 8°=3, assumindo o mote de V.V.V.V.V., durante sua jornada psíquica pelo 14o Aethyr.

De todos os eventos em epígrafe, vamos nos ater a Liber XXX AERUM Vel Saecvli Svb Figvra – CDXVIII – sendo os Anjos dos 30 Aethyrs – mais conhecido como A Visão & a Voz pois ele descreve, de forma objetiva, experiências relacionadas à exploração dos planos sutis. Além disso, nos faz perceber que a Magia Enochiana tem muito mais a oferecer: ela não é somente um sistema para se contatar com determinados seres mas também pode servir como um portal de exploração dos planos interiores e propiciar a consecução de estados mais exaltados de consciência, como aconteceu com Crowley.

Um Flash Sobre a Magia Enochiana

O sistema conhecido como Magia Enochiana foi transmitido ao Dr. John Dee, um catedrático da corte da rainha Elizabeth, através da sensitividade de Edward Kelley, no período de 1582 a 1587. Sabe-se que foi uma falange de seres espirituais que teriam se apresentado como sendo os mesmos anjos divinos que haviam instruído ao patriarca e profeta Enoch. Para tais comunicações, Kelly utilizava-se de uma bola de cristal e relatava suas visões a Dee que, então, as anotava.

A Magia Enochiana é um sistema de Teurgia (técnica para convocar e comandar seres angélicos), bem como de Goécia (um método para convocar e comandar seres demoníacos) e, basicamente, é composta de 02 partes:

1ª Ensinamento fragmentados: pequenas partes que não estavam em ordem lógica e que foram misturadas. Esses ensinamentos versavam sobre a invocação dos anjos planetários, utilizando um sistema de sigilos e quadrantes de Magia. É genericamente conhecida sob o nome de Heptarchia Mystica.

2a A parte que é mais utilizada pelos magistas, é composta pelas 04 Torres de Vigia, as Chaves ou Chamadas Enochianas e o vocabulário da Linguagem Enochiana.

Apesar de estarem separadas, é importante que o magista una, por sua arte, ambas as partes para poder trabalhar com o sistema em sua plenitude. Sobre os Portais e a Chaves é importante dizer que: as Chamadas são evocações poéticas que podem abrir os Portais para as cidades de sabedoria que são 49, ao todo. Entretanto, um dos Portais é muito sagrado para ser aberto; assim, as Chaves reais são 48. Os portais acessam às cidades de sabedoria que são reinos espirituais habitados por diferentes hierarquias de anjos, com funções distintas na Terra. Aquelas cidades celestiais são representadas por 49 números-quadrantes de letras extremamente complexos, que contêm 49 linhas e 49 colunas.

Conforme compreenderemos ao final deste artigo, a Magia Enochiana pode ter uma finalidade mais profunda e transcendental do que aquela que comumente se lhe atribui (Teurgia ou Goécia). Existem níveis de mistério e poder na Magia Enochiana que poucos ocultistas ousam explorar. O que devemos ter em mente é que o Sistema Enochiano também, a despeito de sua complexidade, pode servir a uma finalidade mais elevada; e que o magista deve buscá-la dentro de si. Um belo exemplo nos é dado por Crowley emLiber 418. Ali, o Sistema Enochiano se mostra desvelador, um agente facilitador, da obtenção de estados gloriosos de consciência, levando-nos aos portais da Grande Iniciação, conhecida Iluminação ou Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.

A Visão & a Voz

A Visão & a Voz é o registro das explorações que Crowley e Neuburg fizeram dos planos sutis a partir da utilização da 30a Chamada Enochiana. Nessas Operações, Neuburg (Frater O.V.) atuava como escriba das visões que Crowley tinha após as invocações. Usava-se uma bola de cristal como veículo para visões. Sabe-se que durante esses ritos, visões muito belas e interessantes eram obtidas. Essas visões mostraram-se muito profícuos e forneceram subsídios para muitos trabalhos futuros de Crowley, especialmente para a criação do Tarot de Thoth, que deve muito de seu simbolismo a essas Operações. Além disso, temas relevantes como a Travessia do Abismo e a realização da Grande Obra são tratados. Estaremos, portanto, discorrendo sobre essas duas temáticas muito significativas para todo buscador.

Como dissemos antes, durante essas Operações Crowley atingiu níveis elevados de consciência (o Grau de Mestre do Templo). Este é um dos mais exaltados graus daGrande Fraternidade Universal (também chamada de Grande Fraternidade Branca – sendo o termo Branca desprovido de qualquer conotação racista – antes, alude à fusão dos sete raios ou vias de iniciação). Conforme afirmamos nas Monografias da SETh: “a G’.’F’.’U’.’ é composta de consciências que examinam, dinamizam e dão impulso aos conhecimentos Arcanos, bem como veiculam novos conhecimentos aos seus representantes terrenos quando assim se faz necessário.” O que precisamos ter em mente quando lidamos com assunto tão delicado é que tais consciências estão além de nossa capacidade imediata de compreensão. O que se pode afirmar é que elas atingiram maestria pessoal e, por conseguinte, o domínio de algumas Leis Cósmicas e transcenderam a dualidade. Já são capazes de perceber que ao nível da Mônada, doPurusha ou do Iehida não existe nem o eu, nem o tu, mas sim um continnum de existência. Em outras palavras, estão cientes de que a sensação de que somos seres independentes e separados uns dos outros não é real.

Um dos objetivos do Ocultista é atingir essa consciência de unidade com todos os seres e vencer esse condicionamento a que estamos acostumados: o da separatividade. Atravessar o Abismo (cruzar Daäth) é justamente partir do Eu para o Não-Eu, do Ser para o Não-Ser, isto é, é cruzar a ponte da consciência humana (separativista) para se mergulhar em uma consciência mais profunda e abrangente, porque não dizer, divina. Implica, portanto, em um abandono de tudo aquilo que temos e somos. Em Thelema, tal processo é metaforicamente descrito como o derramar de cada gota de sangue na Taça de Babalon. Assim, quando se cruza o Abismo, há um renascimento e temos um novoBebê do Abismo que está apto para assimilar o Entendimento (a esfera de Binah).

No decurso desta Operação, Crowley cruzou o Abismo diversas vezes e confessa o estado de quase insanidade que era submetido ao passar por tais experiências. Talvez a música de Raul Seixas, Maluco Beleza, quando fala da maluques misturada com a lucidez possa ilustrar melhor esse processo. Assim, não podemos pensar que Cruzar o Abismo seja uma experiência que ocorra apenas uma vez. Na verdade, é um processo cumulativo e que pode levar anos. No caso de Crowley, as vivências relatadas em A Visão & a Voz foram por ele consideradas como a culminação de anos atravessando ‘abismos’. Na verdade, o Abismo faz parte da nossa caminhada, está sempre conosco e o atravessamos paulatinamente à medida que procuramos e direcionamos nossa consciência para planos mais sutis.

Muitas das vezes, a exploração de um Aethyr não se consolida imediatamente. Ao trabalhar com 14o Aethyr, por exemplo, Crowley não obteve muito sucesso e teve que repetir a operação. Numa dessas tentativas, ele foi impelido a parar o ritual e executar um rito cerimonial utilizando-se da Magia Sexual. Em suas Confissões, ele menciona que para cruzar este abismo

[...] eu tinha me apegado a certas concepções de conduta que eram perfeitamente adequadas para mim, sob o ponto de vista humano, mas que eram incompatíveis com a iniciação; eu não poderia cruzar o Abismo até que elas tivessem deixado completamente o meu coração.

Na noite de 3 de dezembro, ele retornou ao local da Operação e prosseguiu com seu trabalho com aquele Aethyr. Desta vez, ele obteve êxito e sua consciência se transportou à Cidade das Pirâmides como Nemo (Nenhum), um Mestre do Templo. A partir desta experiência, o lado mundano de Aleister Crowley ficou abaixo do Abismo e sua consciência transcendeu à identidade humana, permitindo o desabrochar do Adepto (Frater V.V.V.V.V. – Vi Veri Universum Vivus Vivi – Durante Minha Vida, Conquistei o Universo pelo Poder da Verdade). O ‘sangue’ havia sido derramado na Taça de Babalon, a individualidade transcendida e o prazer da dissolução no Oceano Cósmico sentida.

De acordo com a Tradição, só recebem a influência de Binah aqueles que chegaram à plena compreensão de que a personalidade é um instrumento para a Divindade. UmMestre do Templo é aquele que está plenamente aberto às influências de Yehida, o Eu Universal. Este Eu é a expressão positiva e negativa do Grande Agente Mágico ou Luz Astral, representado no Arcano VII, pela esfinge. Aliás, o Arcano VII é símbolo do Mestre do Templo. O campo de maestria de um Mestre do Templo é o poder da palavra atribuindo à letra cheth e ao 18° Caminho. Um Mestre do Templo conhece o segredo da Magia do verbo e do poder das letras. Não é ansioso e tem pouca curiosidade sobre o futuro. Ele vê o que está próximo e, às vezes, o que está distante; mas sabe que o futuro é o presente. Ele é capaz de “viajar” livremente pelos diversos níveis de consciência de seu próprio ser. Um antigo adágio Rosacruciano diz: Um Mestre do Templo tira suas forças da águia, isto é, pelo uso da estimulação das correntes nervosas do cérebro que, no ser humano comum, têm sua válvula de escape através da função sexual. UmMagister Templi recria seu corpo a partir da Morte (Arcano XIII). Assim, ele vive com alegria, livre das limitações do tempo e do espaço e das restrições de suas atividades pessoais. Pela influência que recebe do caminho de Zain, o Mestre do Templo é capaz de agir como um agente das forças criativas que a bíblia chama de Elohim, pois ele é um templo vivo do Senhor do Universo.

Desta forma, o ponto focal da iniciação é transcendência, isto é, é ir além da identidade humana e despertar-se para a verdade de que somos muito mais que um corpo físico. É estarmos cientes de que somos um conosco, com o outro, com a natureza e com o próprio universo. Quando falamos em consciência extraterrestre é exatamente isto que queremos dizer: uma consciência lúcida de sua verdadeira natureza que percebe a si mesma como sendo una à Criação; se sente parte do todo, sabe e cumpre seu papel (dharma) dentro do esquema Cósmico.

Normalmente, o Sistema Enochiano é empregado de duas maneiras: invocação de entidades ou projeção aos planos sutis. Mas quando levamos em consideração as consecuções místicas que Crowley obteve e que são relatadas em a Visão & a Voz, percebe-se que ele não fez dela apenas uma exploração convencional. Ratificamos que ele a utilizou como uma espécie de trampolim para acessar níveis profundos de iniciação. Tal proposição pode ser ratificada quando levarmos em consideração o número 418 que designa este Liber. Quatrocentos e dezoito (418) é o número da palavra místicaAbrahadabra que é símbolo da união do micro com o macrocosmo (a Grande Obra).

A amplitude de tais visões, obtidas a partir do trabalho com o Sistema Enochiano, podem ser vislumbradas nessa passagem extraído das Confissões de Crowley:

Quando atingi Bou Saâde e iniciei o trabalho com 20o Aethyr, comecei a compreender que essas visões eram, por assim dizer, cosmopolitanas. Elas me trouxeram a relação harmoniosa que perpassa a todas as doutrinas mágicas. O simbolismo dos cultos asiáticos; as idéias dos qabalistas, judeus e gregos; os arcanos gnósticos; o panteão pagão, de Mitras a Marte; os mistérios dos antigos egípcios; as iniciações de Elêusis; a saga escandinava; os rituais célticos e os druídicos; as tradições do México e da Polinésia; o misticismo de Molinos assim como o islâmico uniram-se harmonicamente sem o menor conflito. Todas as tradições do velho aeon surgiram reverentes a Hórus, a Criança Coroada e Conquistadora, o Senhor do aeon anunciado pelo O Livro da Lei. Essas visões cristalizaram, de forma dramática, as conclusões teóricas que eu havia parcialmente chegado, a partir do estudo comparativo das religiões. Além disso, tomei consciência de que esta Operação era muito mais do que uma exploração impessoal a qual eu tinha me proposto fazer. Senti que havia uma mão que segurava meu coração, que um sopro sussurrava palavras em uma língua desconhecida cujo sotaque era muito feio e, como em todo encantamento, ela me envolvia com uma energia poderosa que atuava em minha vontade, de uma maneira inescrutável.

A Visão & a Voz de Babalon em Liber 418

Para ter acesso às suas visões, Crowley utilizava uma grande pedra de topázio dourada, sobre uma cruz grega que tinha 49 pétalas de rosas, gravadas ao redor. De posse desta sagrada regalia, iniciava-se as Chamadas. Crowley comenta como era a natureza de suas visões durante as Operações:

Aprendi a não me preocupar em viajar com meu corpo astral para algum lugar específico. Percebi que o espaço não era nada em si mesmo; é meramente uma categoria convencional (uma de muitas), através da qual podemos distinguir um objeto do outro. Quando digo que estava em um Aethyr qualquer, quero dizer que simplesmente estou no estado característico e peculiar dele, isto é, sentindo sua natureza. Assim, meus sentidos podem receber as impressões sutis para os quais foram treinados a registrar, me torno ciente dos fenômenos que se passam em tais planos ou mundos, a exemplo de um ser humano comum que está ciente do plano físico. Eu descrevo o que vejo e repito o que ouço e Frater O.V. anota minhas palavras e, casualmente, ele observa algum fenômeno que considera peculiar.

É curiosa a presença do número 49 no total de pétalas que ornamentavam a cruz. Curiosa porque 49 é um numero associado à Babalon. Os thelemitas identificam aSephira Binah (o Entendimento) com Babalon. Também devemos observar que, em relação à fórmula de IHVH (o Tetragrammaton), Binah corresponde ao primeiro He, enquanto Malkuth ao segundo. Assim, temos uma fórmula de transcendência: o Hê final, a Terra (Malkuth ou a Divina Shekina) seria uma segunda manifestação de um mesmo princípio cósmico, o que permite à criação manifesta ascender a planos que normalmente escapam à nossa percepção imediata.

Binah é a primeira Sephira (emanação ou envoltório) que encontramos tão logo cruzamos o Abismo. Daí deriva seu Mistério: a impossibilidade de se discursar sobre Ela. Só a experiência direta é que poderá desvelar esse Grande Arcano. Na Visão & a Voz,Babalon foi acessada por Crowley no 2o (as descrições das visões no livro são feitas em ordem decrescente, do 30o a 1o Aethyr) Aethyr Enochiano, chamado de ARN, no qual é dito:

Todo homem que me viu jamais me esqueceu. Eu venho muitas vezes nas brasas do fogo, e sobre a suave pele branca de uma mulher, e na constância da cascata, e no vazio dos desertos e pântanos, e sobre grandes penhascos a beira-mar; e em muitos lugares estranhos, onde os homens não me buscam. E muitas milhares de vezes ele não me contemplou. E por fim Eu me lancei nele como uma visão golpeada em uma pedra e quem Eu chamo deve seguir.

Seguir o chamado da Deusa pressupõe disponibilidade para conviver como a desolação e superar os ordálios inerentes a tal consecução, até que estejamos aptos a cavalgarmos com Ela, sentindo todo o seu Prazer e Deleite. Na visão de ARN, Tifon, o Deus da Tempestade, leva Crowley ao desatino, mostrando-lhe como são inúteis todas as formas de adoração que ele conhecia. Tifon, assim, brada:

Desesperança! Desesperança! Pois podes enganar a Virgem e também adulares a Mãe; mas o quê dirás à antiga Prostituta que está entronizada na Eternidade? Pois se ela não quiser, não há força ou astúcia, ou qualquer saber que possa prevalecer sobre ela. Tu não podes cortejá-la com amor, pois ela é amor. E ela tem tudo, e não precisa de ti. E tu não podes cortejá-la com ouro, pois todos os reis e capitães da terra, e todos os deuses do céu, derramaram o seu ouro sobre ela. Assim ela tudo tem, e não precisa de ti. E tu não podes cortejá-la com sabedoria, pois o senhor dela é Sabedoria. Ela tem tudo isto, e não precisa de ti. Desespero! Desesperança!

Ao Adeptus Exemptus, entretanto, Crowley entregou o sutra sagrado Liber Cheth Vel Vallum Abiegni como sendo a fórmula de Realização da Grande Obra, através da devoção a Nossa Senhora Babalon. Segundo ele, o texto instrui o aspirante em como dissolver a sua personalidade na Vida Universal.

Michael Stanley, em seu artigo The Vision and the Voice, chama a nossa atenção para o fato de que, para além do caráter monoteísta que circundava as operações de Dee, uma leitura atenta dos diários dele, denuncia a presença de uma entidade feminina com características babalônicas por trás das comunicações. Essa entidade chamava-seMadimi. Algumas comunicações de Madimi revelam uma beleza poética que se aproximam muito daquelas que Crowley nos fornece em A Visão & a Voz. Seria essa mesma entidade que Crowley, quatro séculos depois, reencontraria?

Sabe-se, ainda, que Kelley nunca conseguiu ver Madimi no cristal, mas ouviu a sua voz. Certa vez, quando ele indagou o seu nome, ela respondeu furiosamente: Eu Sou o que mais queres? Quando Dee relutava em obedecer a certas imposições dela, ela o ameaçava. Certa vez, ela até mesmo chegou a propor uma troca de esposas aos dois, para que o trabalho mágico tivesse a continuidade desejada. Apesar do espanto, Kelly e Dee e suas esposas realizaram o pedido.

Ao investigarmos o 7o Aethyr, Kelley canalizou uma bela mensagem mas que, devido aos condicionamentos da época, foi considerada aterrorizante e foi a gota d’água que levou Dee a parar com as comunicações.

A seguir, reproduzimos fragmentos desta comunicação, conforme encontramos no artigo de Stanley. Reparem que o texto faz menção a um porvir da Deusa. Seria isso uma referência à chegada do Novo Aeon, alguns séculos depois?

Eu sou a filha da Fortaleza e em minha juventude fornico continuamente. Eu sou o Entendimento, e a Ciência reside em meu ser; os céus me oprimem e eles me cobrem e me desejam com apetite infinito; pois quase nada que seja terreno me abraçou, pois sou a sombra que recai com o Círculo de Pedras, e coberta com as nuvens da manhã. Eu sou uma prostituta para aquele que me violenta, e uma virgem para quem não me conhece. Purguem suas ruas, Ó vós filhos dos homens, e tornem suas moradas limpas; tornem-se santos, e vistam a retidão. Joguem fora vossas velhas prostitutas e queimem suas roupas; assim, trarei filhos a vós e eles serão os Filhos do Conforto. [...] Prepare para mim pois eu voltarei em breve para residir entre vocês.

É interessante notar a menção que o texto faz à Fortaleza, uma vez que Crowley chamou a carta A Força de A Luxúria; bem como a presença do termo Entendimento que se aplica à esfera de Binah. Conforme nosso artigo anterior, Jack Parsons & a Operação Babalon (Revista Sothis, Vol. I, N.5), falamos rapidamente do simbolismo de Babalonpresente no Tarot de Thoth, o Arcano ou Chave XI – a Luxúria. Ali também ressaltamos que boa parte da compreensão que Crowley obteve sobre o Mistério de Babalon, deve-se muito às suas experiências com o Sistema Enochiano durante esta Operação.

A partir das descrições de Babalon – quer via canalizações de Dee, quer através do texto de Parsons, dos escritos de Crowley ou mesmo do Tarot de Thoth, fica patente uma trilogia que nos ajuda a desvendar esse arcano: Beleza, Desejo e Magia. A Besta que Ela monta alude a uma energia de natureza primitiva e criativa, além da razão. ContemplarBabalon em toda sua nudez é contemplar sua própria morte ou aniquilação, isto é, a dissolução da ilusão de separatividade que mergulhamos.

Notem que a morte ou o amor dos santos é de fato um acréscimo de vida. A fórmula de 156 é a copulação constante ou um Samadhi com tudo.
A Visão & a Voz

Por falar em santo, ainda encontramos em A Visão & a Voz, mais precisamente no 12oAethyr, a santidade a que faz jus um Mestre do Templo: “o santo é aquele que aperfeiçoou sua devoção à Babalon” (Binah). Apesar desta feliz definição, faz-se mister também destacar uma outra presente em Liber XV: “são tidos como santos todos aqueles que adoraram o Senhor da Vida e que são capazes de espargir suas divinas bênçãos entre as legiões de seres vivos.”

O Quinto Aethyr:
Uma Flecha para a Grande Obra

A fórmula completa da Magia está descrita em 11 palavras: Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei. O significado básico desta fórmula é de que a lei básica, a tendência de cada indivíduo, é em direção à total transformação de si mesmo: de um ser limitado (o qual ele acredita que é) para a sua realidade última que é em essência (um ser transcósmico, extraterrestre, extradimensional).

Kenneth Grant, Outside Circles of Time

Para concluirmos este artigo, gostaríamos de fazer um fazer um comentário sobre um assunto fundamental para todos os estudantes do Oculto: a realização da Grande Obra. No 5o Aethyr, é predominante a visão de uma flecha. Esta flecha é a flecha da Vontade e da Verdade. A visão ali narrada é muito inspiradora e sublime, elucidando a essência da filosofia thelêmica.

Como já frisamos antes, há uma relação entre A Visão & a Voz e a concepção posterior dos Atus de Thoth. Quando falamos em Grande Obra, em termos de Tarot, é inevitável que não falemos do Arcano XIV (A Arte ou A Temperança).

Do ponto de vista astrológico, este arcano é atribuído ao signo de Sagitário que é regido por Júpiter. Sagitário é o arqueiro e a palavra hebraica para este signo é Queshet que também significa arco. No Tarot de Crowley, temos uma figura central andrógena que é perpassada por uma flecha que se eleva do plexo solar em direção aos centros psíquicos superiores. Esta flecha que é um símbolo de direção, do dardo veloz da Vontade, emana do fogo para consumir os pensamentos vagueantes.

Notamos que a personagem está concentrada e direciona conscientemente suas ações; logo, temos neste Atu a simbolização da Verdadeira Vontade. O arqueiro, a flecha e o alvo são um, há uma espontaneidade que vai além do caos e do controle. A Verdadeira Vontade não tem sua própria vontade, ela é a própria vontade. A flecha (que também aparece no arcano VI – os Amantes) é a fonte de todo o movimento; é um movimento infinito sem movimento e, portanto, do ponto vista da iluminação, não há movimento, nem matéria. Esta flecha mantém elos simbólicos com o Olho de Shiva. Mas por não haver movimento, o universo não é destruído. Ele é expandido e é engolido pelas vibrações da Pluma de Maät, que são as plumas da flecha; mas tais plumas não vibram.

Esses paradoxos paralisam as análises intelectuais, extrapolam os limites da razão. A Verdadeira Vontade não é algo que o indivíduo possa possuir. É esta Vontade que crialila, a brincadeira ou a ilusão da manifestação, e se expressa através dela. Tudo é um aspecto desta diversidade e nada aí está aparte ou separado. Tais paradoxos são também encontrados na expressão 0=2, familiar aos thelemitas. Também sabemos que existe uma estreita ligação entre Thelema e alguns apontamentos do TAO. Em Thelema, assim como no Yoga, a análise racionalista é inútil; aliás, o Yoga chama o racionalismo excessivo de cacá bishna (excremento de corvo). Antes, privilegia-se o insight, a intuição e o fruto direto das experiências quer mágicas, quer místicas. Nesta direção, Liber 418 é um exemplo.

Quanto ao Arcano XIV, não podemos deixar de considerar a letra hebraica que corresponde a ele: Samekh. Sendo a terceira das três letras serpentinas do alfabeto judeu, sua forma lembra a serpente que morde a própria cauda – o Ouroboros, da tradição gnóstica - símbolo de completude e eternidade. Como verbo, Samekh significa apoiar, sustentar, escorar ou estabelecer. Como substantivo significa apoio. A forma primitiva desta letra era de uma estaca para sustentar uma tenda. O que sugere estabilidade e firmeza para sustentar nossa Vontade. Também o número 14 não pode ser ignorado: 14 é o valor numérico da palavra Zauhab que significa ouro. Este é o ouro da luminescência, o ouro filosofal que representa a verdade perfeita.

O estado mental que esse Arcano evoca é o da presença real de Deus ou o Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião e a Verdadeira Vontade está intrinsecamente ligada a Ele (é personificada nele). A imagem do andrógeno representa a quintessência, a integração dos contrários.

A dicotomia, a dualidade, que é metaforizada na figura de Choronzon, é uma limitação própria do plano terreno que se dilui, se dissolve à medida que nos tornamos mais receptivos aos influxos de nosso Eu Interior. É esta aproximação, essa comunhão com as inteligências extraterrenas que é o foco da Magia; assim, qualquer outra atribuição dada a ela é equivocada. Magia é arte de se estabelecer contatos conscientes com inteligências superiores e o Yoga é o método de preparação do corpo para que este possa estabelecer tais contatos, bem como dar condições para que ele suporte os impactos próprios desses encontros.

Do ponto de vista iniciático, o Conhecimento e a Conversação com o Sagrado Anjo Guardião é um fenômeno universal e tem a ver com um despertar, uma iluminação, uma conscientização maior do Cósmico. A experiência é real independentemente da nomenclatura (Satori, Cruzar o Abismo, Consciência Cósmica, União com Deus,Iluminação...). E mais, de acordo com o as Visões do 17o Aethyr, uma vez estabelecido um contato efetivo com o Sagrado Anjo Guardião, o vínculo é permanente, não sendo, portanto, um fenômeno temporário ou que possa ser destruído pelo que quer que seja.

O Conhecimento e a Conversação não é um fim em si mesmo, mas é uma das fases mais gratificantes da senda. É um vislumbre do que está para além do nível terreno e para além do nível de Tiphereth, conforme a Visão & a Voz tangencia.

Os métodos para tal consecução são muitos: abstinências diversas, Magia sexual, Liber Samekh, as instruções do 8o Aethyr, Magia de Abramelin, dentre outras. Independentemente do método utilizado, o fator primordial em tais operações é a devoção em relação ao Anjo. Neste particular, um conhecimento sobre os fundamentos do Bhakti–Yoga (a união pela devoção) não pode ser desprezado.

A iluminação, o derramar o Sangue na Taça de Nossa Senhora Babalon, não é um processo gradual; antes é uma mudança súbita, intensa e letal para o ego: é a sua consumação nas chamas da transmutação, conforme ilustra o arcano XVI do Tarot. O tempo para cada um atingir essa consecução é individual. Uns levam mais, outros menos tempo. Portanto, não podemos dar espaço para a ansiedade quanto a isto, pois ela é um grande obstáculo. Como diz a Lei sem ânsia de resultado.

Por experiência, sabemos que três anos de intenso trabalho sobre si mesmo já nos permite vislumbrar aspectos da realidade transcendente. Dr. Spencer Lewis, da AMORC, dizia que para o Mundo Ocidental um despertar efetivo era mais lento, em função das condições em que vivemos, e apontava para uma média de 20 anos de profícuo trabalho iniciático. Independentemente de querelas temporais, citamos o dito anterior apenas como referência, o que não deve gerar expectativas. O mais importante é nos dedicarmos a cada dia com afinco na vivência da iniciação em todos os aspectos de nossa vida e meditarmos continuamente para que possamos, no devido momento, comungarmos com as hostes extraterrenas as sublimes bênçãos da existência universal, não-dual, una para sempre com toda a criação.

Amor é a lei, amor sob vontade.


SUPORTE TÉORICO

CASE, Paul. The True and Invisible Rosicrucian Order.
CROWLEY, Aleister. Liber 418 e O livro de Thoth.
SOTO. Curso de Magia Enochiana.

Tradição Tântrica



Texto retirado do Tantrālokaḥ de Abhinavagupta, destacadamente o mais avançado adepto tântrico de todos os tempos. Abhinava foi o responsável por toda reestruturação do Círculo Kaula por volta do Séc. XI. O Tantrālokaḥ é a maior obra tântrica já escrita.


No público em geral existe uma incompreensão ou má compreensão acerca do Tantra. Se acredita que a execução de práticas tântricas como o uso de fórmulas mágicas oumantras, invocações de espíritos e deidades místicas pode-se adquirir, como resultado, poderes mágicos (siddhis) e experiências inquietantes. Mas este entendimento acerca do Tantra é uma atitude tola, ingênua, infantil, pois o Tantra é uma cultura ampla que abrange todos os aspectos da vida. A tradição possui uma concepção particular da Realidade e estilo de vida. Ela apresenta um arranjo de valores que por um lado são eticamente corretos e por outro, prazerosos e satisfatórios ao indivíduo; portanto, é uma filosofia prática. Baseados na experiência indutiva (āgama ou āgamana) dos videntes eyogīs, o que foi largamente verificado por uma longa tradição de experimentação, a sabedoria tântrica forma a base para uma vida feliz e saudável, tanto para o indivíduo quanto para sociedade. O Tantra demonstra em como aceitar e utilizar o mundo e as circunstâncias do dia-a-dia de forma a se tornarem meios para auto-realização. Ele apresenta uma visão integral da vida que sintetiza o prazer (bhoga) e a liberação (mokṣa), assim como o envolvimento com o mundo (pravṛtti) e o caminho da renúncia (nivṛtti). O Tantra advoga um tipo especial de Yoga que vê tudo como sagrado e bom. A mensagem do Tantra é tanto adequada para a era em que vivemos quanto intemporal.

Outro entendimento incorreto, muito comum entre os acadêmicos, é que a tradição vêdica somente forma a tendência básica da cultura indiana e que a tradição tântrica seja uma corrente tangencial, a margem social ou mesmo degenerada e pervertida. Esse é um mal entendido colossal e nunca esteve tão longe da verdade. As āgamas ou tantras possuem uma importância equivalente aos vedas na formação da cultura indiana. A tradição tântrica possui algo muito importante a dizer e isso não deveria ser ignorado se é que desejamos ter uma visão completa da filosofia, religião e cultura da Índia.

Tanto os vedas (nigama) quanto os tantras (āgama) têm um caráter revelatório, pertencentes a um conhecimento da realidade que é extra-empírico ou esotérico. Se isso é real, porque precisamos dos tantras se já existem os vedas? Os tantras são redundantes ou trazem uma menagem diferente? Lado a lado com os vedas, os tantraspossuem um significado especial, um significado que complementa os vedas. De acordo com os vedas e os tantras, a Realidade Última é Consciência (citi ou saṃvit), conhecida pelo nome de Brahman ou Śiva. A natureza dessa Consciência é tanto conhecimento (jñāna) e atividade ou dinamismo (kriyā) e é este aspecto dinâmico da Relidade que é responsável pela manifestação do mundo. Este conceito de dinamismo, embora não explicitamente explicado, está implicitamente presente nos vedas e nas upaniṣads e o implícito é feito explícito nos tantras. A elocução das upaniṣads concernente a Criação claramente sugerem a existência de um princípio dinâmico em Brahman. É dito nasupaniṣads que o mundo saiu ou foi emanado de Brahman e que Ele quis: deixe que eu me torne muitos e reproduza. Estas declarações sugerem kriyā ou spanda. A declaração de que todas as coisas vêm da própria bem-aventurança se refere em termos inequívocos a spanda. Tais declarações não podem ser explicadas como fábulas ou fantasias míticas (ākhyāyikās) como os vedantins o fazem.

Portanto, as upaniṣads aceitam o aspecto dinâmico da Realidade, mas elas não explicam completamente este dinamismo. Mas essa tarefa foi cumprida pelos tantras. Nos tantras, o dinamismo da Realidade foi completamente explanado; o aspecto imanente de Brahman foi trazido à tona. Como resultado, no Tantra há uma atitude extremamente positiva em relação a Criação.

Os tantras complementam os vedas em um outro sentido. O Veda é chamado de nigamaou nigamana, que significa dedução. O Tantra é chamado de āgama ou āgamana, que significa indução. Acredita-se que o Veda foi revelado de uma fonte superior – os videntes não eram os autores dos vedas, eles apenas os recebiam ou os percebiam. Portanto, as declarações contidas no Veda têm de ser aceitas como premissas das quais conclusões foram deduzidas. Então o conhecimento vêdico são deduções (nigamana) provindas de premissas reveladas. O Tantra, por outro lado, se baseia na evidência da experiência dos videntes e yogīs. É uma tradição yogī. Abhinavagupta dá o nome deanubhava-sampradāya, a tradição da experiência.

Não estou dizendo que o Veda não acredita na verificação do conhecimento revelado ou que o Tantra não acredita na revelação. Ambos acreditam em ambos, mas o conhecimento vêdico vem principalmente do processo de revelação, enquanto que o conhecimento tântrico vem através da experiência. Na tradição indiana, revelação e experiência são consideradas complementares – o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. O conhecimento vêdico é confirmado na experiência e esta confirmação experimental é a função do Tantra. Neste sentido, Tantra (āgama) é complementar ao Veda (nigama).

A forma externa do Tantra sugere que ele foi revelado pelo Senhor Śiva, da maneira em que é apresentado o seu diálogo com Pārvatī, sua consorte. Portanto é possível conceber o Tantra como uma revelação, mas a natureza especial do Tantra é que ele é baseado na experiência. Os videntes e yogīs experimentaram a verdade e o Tantra pode ser tido como o registro de suas experiências, sendo o diálogo entre Śiva e Pārvatī um artifício literário cuja intenção é tornar atraente este registro.

Abhinavagupta interpreta o diálogo entre Śiva e Pārvatī como um diálogo dentro de nossa própria consciência, entre os dois níveis de consciência. Ele diz: O Ser, que é alto-luminoso e que está presente em todas as formas, tanto questiona e responde a si mesmo como se estivesse dividindo a si mesmo como inquiridor e inquirido, mas ao mesmo tempo. Também é dito que o Senhor Śiva foi quem, tomando a forma de professor e discípulo, revelou o Tantra por meio de perguntas e respostas. Portanto, o diálogo é entre o buscador interior e do Ser que responde. Aquele que questiona é o ser inferior (aṇu) e o Ser que responde é Śiva, o Absoluto. A mesma interpretação pode ser dada ao diálogo entre Arjuna e Kṛṣṇa na Bhagavadgītā.

Mesmo que o diálogo fosse compreendido literalmente e o Tantra fosse considerado uma tradição revelatória, não haveria discrepância. As noções gêmeas de que por um lado o Tantra foi revelado por Deus e por outro ele foi experimentado por videntes e yogīs são compatíveis, pois como eu disse acima, o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. A tradição tântrica aceita os dois pontos de vista.

Assim, podemos inferir que a tradição tântrica, sendo altamente significante em seu próprio contexto, é também complementar a tradição vêdica das upaniṣads. As ideias tântricas que estão implícitas e às vezes explicitamente expressas nos vedas e nasupaniṣads, estão completamente reveladas nos tantras. Portanto, Veda e Tantra formam a mesma linha de pensamento quando olhamos mais atentamente. Aqueles que compilaram os tantras em um período pós-vêdico estavam conscientes dessa continuidade e unicidade entre as tradições vêdica e tântrica; eles deixaram isso bem claro nas escrituras, está lá, para todos terem acesso. No Kulārṇava-tantra o Senhor Śiva diz a sua consorte, Pārvatī: Os seis sistemas da filosofia vêdica são os membros do meu corpo como os pés, estômago, mãos e cabeça; aqueles que os diferencia está desmembrando meu corpo. E todos estes são os seis membros do Kula; portanto, ó minha amada, conheça a disciplina vêdica para se tornar uma kaulika tāntrika.

O Tanta não desfruta o status de ser complemetar ao Veda. Seu complemento é apenas incidental. De fato, o Tantra tem um status autônomo e idenpendente. Seria bastante rasoável ver o início da tradição tântrica no tempo em que os videntes, sem nenhuma fidelidade ao Veda, independentemente questionavam a vida, fazendo investigações práticas na busca da consciência e finalmente encontando suas respostas. As descobertas dos videntes tântricos complementa o conhecimento vêdico ou qualquer outra tradição, mas da mesma maneira, incidental. O significado da tradição tântrica reside não em seu complemento ao Veda ou qualquer outra tradição, mas no seu potencial automono como uma filosofia de vida completa e perfeita.

De alguma maneira, o Tantra é mais completo e mais importante que o Veda. A razão por trás desta declarasçao é simples. O Tantra é o Veda mais o Tantra; o Veda é o Veda mais o Tantra em sua forma implícita. Quer dizer, o Tantra, além de sua própria sabedoria, incorporta completamente a sabedoria do Veda, mas o Veda contém a sabedoria do Tantra apenas na forma implícita e requer que o Tantra a faça explícita.

Além do mais, os ensinos das āgamas são epistemologicamente mais sólidos do que os ensinos do nigama. O que é obtido pela experiência é conhecimento científico e ele é confirmado por si mesmo, ele não precisa da revelação para confirmá-lo. Ao contrário, a revelação requer a experiência para sua confirmação. Revelação sem experiência permanece como um objeto de fé e não se transforma em conhecimento. A confirmação vem da experiência, não da revelação.

O Tantra pode ser chamado de ciência e ao chamar o Tantra de ciência, não estou mudando o significado essencial do termo «ciência» e nem o utilizando incorretamente. A razão é o princípio geral que subjaz o método científico. Ciência é o estudo racional de qualquer coisa. A razão torna claro que o estudo baseado na especulação ou na fé não pode ser seguro; nós só podemos depender daquilo que podemos observar e cognizar. Portanto, a ciência não se baseia na fé ou na especulação, mas na experiência ou cognição. A razão também deixa claro que normalmente nós só possuímos um modo de experiência, que é tanto empírico como sensorial. Experiência no contexto da ciência significa experiência empírica. Portanto, a ciência também pode ser definida coo um estudo empírico.

Mas utilizando a mesma faculdade da razão, torna-se claro que a ciência é baseada na experiência empírica não pela definição mas simplesmente porque no presente a ciência sabe de nenhum modo de experiência que não seja empírica. Se outro modo de experiência for descoberto, não haverá hesitação por parte de ninguém em chamá-lo de cintífico. Então o único obstáculo seria provar que a experiência é genuína e não um devaneio, uma alucinação ou uma ilusão. Ela se torna científica pela virtude de ser uma experiência.

O Tantra é baseado na experiência dos videntes, yogīs e experimentos espirituais. A eles é solicitado investigar a natureza interior e os potenciais da humanidade, fazendo amplos experimentos tanto no nível individual quanto no social. Seu laboratório é o ser humano e, por extenção, a sociedade. Eles não possuem métodos modernos ou facilidades para o registro dos ensinamentos, processo de arquivo de dados; mas eles têm o seu próprio método particular. A fim de registrar suas descobertas de forma agradável e interessante, não adotam a linguágem científica prosaica, mas expressam suas descobertas em termos poéticos utilizando metáforas, símbolos e alegorias.

As descobertas dos videntes tântricos foram verificadas e confirmadas por uma duradoura tradição de yogīs que perciste até os dias de hoje. Qualquer um pode verificar a verdade destes resultados por si mesmo e isso não envolve risco algum. Assim, o Tantra é uma ciência – uma ciência espiritual. Da mesma maneira que existe a ciência material, existe também a ciência espiritual, cuja metodologia é a investigação espiritual. A ciência material tem a tecnologia como uma fórmula de aplicação. Da mesma maneira, a ciência espiritual também tem uma tecnologia e essa tecnologia é chamada de Yoga. O Tantra apresenta o Yoga de uma forma bem variada. Da mesma maneira que a tecnologia da ciência material é utilizada nos mais diversos campos, o yoga tântrico, a tecnologia da ciência espiritual, é aplicado nas mais distintas áreas da natureza humana.

Não devemos nos ocupar pensando que tudo o que foi escrito no extenso corpo dostantras foi baseado na experiência somente. Da mesma maneira que nem tudo o que está escrito nos vedas é revelação, nem tudo o que está escrito nos tantras é experiência. Os textos tântricos também contêm muito material hipotético, hiperbólico ou até mesmo irrelevante. Se formos ter uma visão realista do Tantra sem nenhum tipo de apego sentimental indevido aos textos tântricos, devemos cuidadosamente extirpar elementos desnecessários para compreender a verdadeira posição tântrica.

Não há dúvida de que a razão seja a única ferramenta disponível para cumprir a tarefa e o único critério de avaliação. Nem o sobrenatural se opõe a razão. Estar além da razão significa ser incognoscível pela razão, não pelo irracional ou anti-racional. Portanto, a razão é a melhor ferramenta e o melhor critério para determinar a real intenção do Tantra, da mesma maneira que é a melhor ferramenta para julgar qualquer coisa. Mesmo quando aceitamos a revelação (śruti), o fazemos porque a razão nos diz que não podemos conhecer ou experienciar a Realidade através da razão ou a percepção sensorial. É apenas pela utilização da razão que nos tornamos conscientes das limitações da razão em si e reconhecemos a necessidade de aceitar a revelação. Que a Realidade está além da razão está claro pela própria razão. A razão é requerida não apenas para tornar a revelação inteligível, mas por nos fazer conscientes do caráter da revelação em primeiro lugar.

A posição do Tantra soa não somente lógica e epistemológica, mas também ontológica e axiológica. O Tantra provê uma visão ampla do mundo, satisfatoriamente explicando todos os aspectos da Realidade. Seu conceito metafísico de consciência dinâmica (cit-śakti) com liberdade (svātantrya) como sua natureza, consistentemente explica todos os problemas da Realidade, incluindo a vida e o mundo. As descobertas tântricas apontam o fenômeno da consciência, que chamamos de Ser ou Puro Eu, que aparece em um nível superficial como a ponta de uma grande Realidade que jaz profunda em nosso interior. Consciência é como um iceberg, apenas uma pequena porção dela é visível sobre a superfície ou como um poço artesiano, que está conectado invisivelmente a um profundo e vasto reservatório de água. Se aceitarmos essa premissa, significa que podemnos explorar os níveis profundos de nossa realidade interna passo-a-passo. A auto-realização pode ser alcançada gradualmente. Mesmo em nosso estado normal de consciência temos um grau determinado de auto-realização, pois o poder da consciência (cit-śakti oukuṇḍalinī-śakti) já está operando em nós na forma das faculdades mentais e processos fisiológicos. É óbvio que esta pequena porção da Consciência irá se manifestar de maneira distinta nas mais variadas pessoas, seja naturalmente ou pelo processo deliberado de descoberta das qualidades da Consciência. Nós podemos estender este processo a manifestação completa da Consciência, auto-realização ou a obtenção de um elevado estado natural de espiritualidade.

A contribuição mais significante do Tantra é no campo axiológico – o campo dos valores. Os videntes tântricos, como os videntes indianos em geral, estavam conscientes desde os primórdios que existem dois tipos básicos de valores na vida. Os valores éticos ou morais por um lado e os valores prazerosos ou que proporcionam felicidade por outro. Os valores morais morais são tecnicamente chamados de śreya, quer dizer, aquilo que é bom; os valores que proporcionam felicidade ou prazer são tecnicamente chamados depreya, quer dizer, aquilo que é prazeroso. No sistema indiano existem quatro valores fundamentais: dharma (satisfação moral), artha (satisfação monetária), kāma (satisfação dos desejos) e mokṣa (auto-realização). Moralidade está conectada aquilo que é bom; a satisfação monetária e dos desejos está conectada aquilo que é prazeroso. Os antigos videntes também estavam conscientes de que na vida existe uma dicotomia muito grande entre aquilo que é bom e aquilo que é prazeroso. As pessoas têm de minar ou suprimir totalmente aquilo que é prazeroso em detrimento daquilo que é bom. Os videntes concluiram portanto que valores que são meramente «bons» sem nenhum elemento de «prazer» são claramente inadequados, nada práticos.

Portanto, os videntes tântricos descobriram um sistema que sintetiza aquilo que é bom eaquilo que é prazeroso, verdade e beleza ou o bom em nós mesmos e o bom nos outros. Eles encontraram a resposta naquilo que chamamos de auto-realização, mokṣa. Mokṣanão é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos na vida. Todos os poderes ou talentos para se trabalhar eficientemente e graciosamente em todos os aspectos da vida vêm do Ser, assim como todo poder elétrico que movimenta o ventilador e ascende a lâmpada vem da usina hidroelétrica. Toda criatividade, artística ou não, vem do Ser. É a partir do Ser que o entendimento iluminado sobre qualquer coisa vem a mente como um lampejo espontâneo (pratibhā). Portanto, quanto mais sintonizados com o Ser estivermos, mais seus poderes florescerão. Portanto, uma pessoa auto-realizada é um professor melhor, um filósofo melhor, um cientista melhor, um líder melhor, um empresário melhor, um gerente melhor etc.

A auto-realização incorpora em si mesma tanto a moralidade quanto a satisfação dos desejos. A moralidade está naturalmente presente em mokṣa por duas razões: primeiro, o Ser que é alcançado em mokṣa é naturalmente bom. É por isso que ele se chama Śiva, que literalmente significa o benigno ou o auspicioso. É ilógico pensar que más ações poderiam surgir de um ser naturalmente benigno. Rāmakṛṣṇa Paramahaṃsa costumava dizer que assim como apenas mel pode cair de um favo de mel, apenas boas ações podem vir do estado-Śiva, quer dizer, o estado de consciência bhairávica.

Segundo, no estado de mokṣa ou auto-realização, o auto-realizado se sente em unidade com o todo, com tudo o que existe. Ele se torna um com tudo. É natural que tal pessoa faça o bem para todos. O que obstrui o Ser é a ignorância (ajñāna). A ignorância é definida como senso de dualidade (dvaita-prathā ou bheda-buddha). É o sentido de que algo ou alguém é o outro. Quando o senso de dualidade é dissipado e o auto-realizado reconhece sua unidade com tudo o que é realizado – quer dizer, o amor universal – então uma das características mais essenciais da auto-realização é conquistada.

O sentido de dualidade é a raiz da imoralidade. Uma pessoa só pode explorar alguém quando ela o considera como algo distinto de si mesma. Mas se ela o considerasse como parte de si mesma, como poderia explorá-la? Uma pessoa auto-realizada não explora ou causa prejuízo a ninguém, pois a auto-realização é um estado de perfeito amor universal. Ao contrário, um auto-realizado ajuda a todos, pois isso é um estado espontâneo de sua moralidade.

Portanto, a auto-realização sintetiza tanto a satisfação dos desejos quanto a moralidade, tanto o prazer quanto o que é bom. Na auto-realização, o maior interesse é o bem das pessoas e o bem das pessoas é o bem de si mesmo e isso é tanto bom quanto prazeroso. Invocando o peso da experiência, me arrisco a dizer que o amor é um dos maiores exemplos ou fenômenos dessa síntese. No amor, o bom para o amante é o bom para o ser amado, o amor se torna um. Uma mãe, por exemplo, sente sua unidade com o filho e sente feclicidade pela felicidade do filho. O amor naturalmente proporciona boas ações por parte do amante em relação ao amado. Contudo, além de promover essa atividade benéfica em relação a pessoa amada, o amor provê satisfação incomensurável, prazer e alegria a pessoa amada. O arrebatamento do amor é tão profundo que apenas o verdadeiro amante pode compreendê-lo em toda sua inteireza. Usando uma frase de Shakespeare, a benção que ele dá é a que ele recebe. O amor é a verdadeira natureza do Ser e um auto-realizado é um verdadeiro amante. O amor é a principal característica dos santos e sábios que alcançaram a auto-realização. Quanto mais realizamos o Ser, maior será o fluxo natural do amor em nós.

A singularidade da concepção tântrica de mokṣa ou auto-realização é dupla: primeiro, de acordo com o Tantra, mokṣa não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos e conquistas em todos os aspectos da vida; segundo, de acordo com o Tantra,mokṣa não consiste meramente de aquilo que é bom, mas de aquilo que é prazeroso, é uma síntese de ambos. Essa noção de mokṣa modifica a classificação popular indiana dos quatro valores inerentes a vida. De acordo com a classificação popular, dinheiro (artha) e satisfação dos desejo (kāma) estão sob aquilo que é prazeroso e a moralidade (dharma) e auto realização (mokṣa) estão sob aquilo que é bom. Mas de acordo com a classificação tântrica, apenas a moralidade está sob aquilo que é bom, na medida em quemokṣa é a síntese de tanto o que é bom quanto o que prazeroso, então é um valor superior.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A Jornada nos Caminhos da Noite Parte 3

Parte . I I I .

O CULTO DE LAM

Anteriormente, eu falei um pouco sobre minha experiência com o Lado Noturno no percurso me minha caminhada na Ordo Tifoniana Occulta, antes conhecida como O.T.O. Draconiana.[1] Falei sobre as operações mágicas da Loja Shaitan-Aiwaz, o Ritual da Serpente de Fogo, a função da sacerdotisa no ritual, a utilização dos kālas na magia sexual, os Qliphoth etc. Cada tema abordado sob a perspectiva da Magia Tifoniana. Nessa terceira parte vou falar sobre minha experiência no Culto da Lam.

Por volta de 1919, Aleister Crowley (1875-1947) estava envolvido na confecção de uma série de desenhos conhecidos como Almas Mortas. Influenciado pelos psicocromos ou almas-pintadas de Leon Engers Kennedy (1891-1970), o artista que pictorizou Crowley como yogī, ele expôs seus desenhos no Greenwich Village, Nova Iorque, onde, pela primeira vez, revelou ao mundo a imagem de Lam. Naquele mesmo ano ele publicou a imagem no frontispício de seu comentário sobre A Voz do Silêncio de Blavatsky, publicado no The Blue Equinox. A imagem de Lam foi produto de uma séria de rituais mágicos ocorridos em 1918, conhecidos como a Operação de Amalantrah. A imagem foi recebida pela médium Roddie Minor (1884-1979) – «O Camelo» – a Mulher Escarlate de Crowley na ocasião.

Crowley nunca publicou qualquer explicação sobre a imagem de Lam.[2] Todavia, por volta de 1941, ele recebeu em seu apartamento de Londres, na Rua Jermyn, a visita de uma americana que observou o retrato de Lam na parede. Os fatos indicam que ela achou repulsivo o retrato e perguntou a Crowley quem era. «Meu Guru», ele respondeu. Em minha experiência, Lam é a máscara de um estado dinâmico de Gnose, não uma mera entidade. O contato com Lam é a entrada no continuum de Maat ou o vácuo extraterrestre de Nuit.

Meus primeiros passos no Culto de Lam

Eu iniciei os trabalhos com o Culto de Lam quando fui admitida ao IVº O.T.O. Nos dois Graus subsequentes, o Vº e o VIº, estive envolvida na exploração das Células Sethianas através de dois métodos básicos: o Tarot das Sombras e a exploração ctoniana utilizando Lam ao mesmo tempo como um Portal e uma Capsula de Exploração.

Minha porta de entrada no Culto de Lam foi o Manifesto da O.T.O. Tifoniana Concernente ao Culto de Lam escrito por Kenneth Grant. Seguindo as instruções desse pergaminho mágico, eu iniciava minhas práticas dentro de um Círculo Mágico. Naquela época, era uma tarefa imprescindível como ordálio do IVº Grau construir um Templo onde eu pudesse no futuro, ao me tornar Preceptora da Ordem, receber e instruir outros membros dos Graus abaixo do meu. Eu não consegui construir um Templo equipado, a exemplo da Loja Shaitan-Aiwaz, mas ergui um santuário que proporcionava espaço para traçar um Círculo de Proteção. Começava com o Ritual do Pentagrama nas oito direções do espaço seguido pelo Ritual do Hexagrama. Sentava-me de frente para imagem de Lam e silenciosamente invocava Aiwass. Na maioria das vezes sentia minhas pernas fracas e por alguns segundos perdia a orientação espaço-temporal. Com o tempo eu conseguia perceber uma mudança clara no meu nível de consciência, como se estivesse utilizando uma planta de poder mais branda. Nesse estado eu visualizava a cabeça de Lam como uma nave que ao mesmo tempo me protegia e me transportava a dimensões que tinha intenção de explorar, fosse através de um sigilo mágico ou yantra qliphótico. Eu olhava através dos olhos de Lam e sentia meu rosto idêntico à imagem. A partir daí eu me via dentro de um mundo de experiências místicas. Recebia mensagens, visões de entidades e formas geométricas, sigilos. No início eu não consegui lidar bem com essas experiências. Sempre tive dificuldade com o inusitado, como relatei anteriormente. Mas com o tempo e a ajuda de Frater Asvk essas experiências se tornaram mais tangíveis e conquistei certa habilidade em me identificar com Lam, o que promoveu um entendimento mais profundo – e bem particular – da Gnose Thelêmica.

O trabalho de grupo na O.T.O. foi suplantado pelo trabalho individual – como na A\A\ – e cada membro da Ordem se tornava um foco de energia na Terra e a projeção de uma Estrela no espaço. Desta maneira, uma complexa rede de entrelaçadas correntes de energia emergia, modelada através dos aspirantes que trabalhavam individualmente, estimulando a construção de uma egrégora. Esta egrégora provou ser o foco ou núcleo de energia para o contato com inteligências além da capacidade humana. Em 1944, Crowley escreveu:

«Minhas observações sobre o Universo convencem-me que existem Seres de inteligência e poder de uma qualidade muito superior do que qualquer coisa que nós possamos conceber como humano; eles não são necessariamente baseados nas estruturas nervosas e cerebrais que nós conhecemos; a única chance para a humanidade avançar como um todo é fazer com que individualmente cada humano entre em contato com estes Seres.»

A magia, conforme a concebemos, trata-se da comunicação com entidades não humanas. O trabalho com Lam e outras Inteligências supra-humanas tem como consequência a expansão e o aprofundamento da consciência humana, bem como a penetração da consciência em outras dimensões. Essa consequente expansão e aprofundamento da consciência também capacita o Iniciado a transcender as aparentes limitações de uma visão do tempo linear e sequencial. Um exemplo disso ocorre quando se considera a sucessão dos aeons e suas relações com a Precessão dos Equinócios. De acordo com esta visão, nos encontramos atualmente nos primórdios do Aeon de Horus, que durará aproximadamente 2,000 anos antes de ser sucedido pelo Aeon de Maat, a Era da Verdade e da Justiça. O tempo, contudo, é parte e parcela da ilusão da manifestação e não tem sua «manifestação» na direta experiência mágica ou mística. Os aeons representam níveis de Iniciação e ocorrem simultaneamente. A consciência apropriada para cada um dos níveis ou extratos está disponível para o Iniciado, que está a partir daí capacitado a se locomover de um nível para outro à vontade. Restrições temporais são dissolvidas através da experiência direta da consciência pã-dimensional e atemporal.

O retrato de Lam é usado como um Portal para penetração da consciência em outras dimensões. Em suas fronteiras, a infinitude cósmica e o inconsciente coletivo mesclam-se e se unem. Em épocas anteriores, os navegantes eram orientados pelas posições das estrelas. Os ocultistas dos dias atuais são psiconautas que navegam no oceano sem fim do Sagrado Anjo Guardião, sendo guiados pela luz da consciência enquanto cruzam ilhas obscuras e esquecidas.

Os iniciados que trabalham individualmente com o Culto de Lam têm alcançado a consciência da corrente energética de Aiwass, entrando periodicamente em contato, através de Lam, com o atual Chefe Secreto da humanidade, o que nos encoraja a progredir. Nosso lema é Asta Aiwass Vina, o que significa que «Nós somos Guiados por Aiwass».

Em minha experiência com o Culto de Lam eu recebi indicações muito claras de que Aiwass e Lam são a mesma Inteligência e que a corrente energética de Aiwass se materializa como Lam quando emerge através da consciência humana.[3]

Aiwass é uma Inteligência desencarnada, uma Mente que vibra em uma frequência extremamente alta, sem forma e sem fronteiras, mas que pode às vezes se focalizar e agir através da consciência humana. O potencial energético é maior do que o sistema nervoso humano pode suportar por um breve período de tempo. Ele se funde através de uma variedade de mecanismos de defesa, portanto, que agem como absorvedores e transformadores. As vibrações tornam-se mais lentas até que estejam compatíveis com a ressonância psíquica humana. Neste ponto, o campo energético humano age como uma antena e o psiconauta tem a sensação de que Aiwass está dentro dele. Ele age somente como um receptor, aparentado talvez como um rádio ou televisão recebendo sons ou imagens do exterior. Aiwass sempre está além do alcance de nossa percepção, simplesmente porque ela está sempre se movimentando. Aiwass pode ser considerado como um lago de consciência com inúmeras fronteiras, uma Mente Cósmica esperando-nos nos limites de nossa realidade.

Está claro de Crowley sabia da relação entre Lam e Aiwass. Em uma conversa particular com Frater Asvk, ele me disse na época: « Lam é Aiwass. Crowley quando olhava para seu desenho de Lam sussurrava Aiwass e o considerava «o Caminho e a Vida». Lam é Aiwass! Lam é a manifestação de Aiwass como um de seus aspectos na consciência humana ou um avātar de Aiwass.

Eu comecei a unir a exploração qliphótica e o Culto de Lam quando iniciei meus trabalhos na Célula Noturna. O Tarot das Sombras de Linda Falorio foi imprescindível nesse processo. A Célula Noturna tinha um trabalho próprio de exploração qliphótica com esse Tarot, assunto que pretendo desenvolver na sequência desse texto. Utilizando o Tarot das Sombras, Frater Asvk proveu a seguinte instrução:

Seguindo os procedimentos mágicos de costume, sente-se de frente a carta que representa a sentinela. Procure, por alguns instantes, assimilar o máximo de informações possíveis sobre a carta. Isso é necessário para que possa se familiarizar com os símbolos da carta que representa o túnel.
Em seguida, olhe fixamente para o retrato de Lam até que a sonolência sobrevenha. Com o olhar fixo naturalmente se concentrará nos olhos; eles parecerão alargarem-se e absorverão sua consciência. Neste momento você sentirá uma estranha sensação de que se encontra dentro da cabeça de Lam. Dois caminhos estão agora abertos: um para cima, outro para baixo. Se for para baixo a descida será acompanhada por uma sensação aérea que pode chegar à força de um furacão. Uma profunda escuridão vai engolfar a mente na medida em que entra no escuro túnel atrás da boca de Lam. Nesta quietude o contato pode ser estabelecido com a rede de túneis que se ramificam para baixo em direção à base de Lam. Estes transportam a mente para dentro de um violento vórtice e a consciência parecerá difusa em uma variação de formas que são transportadas rapidamente para cima se fundindo em uma única forma. A fusão ocorrerá entre os olhos de Lam, na região do ājñā-cakra. O mantra Ipsoslam ou Lamipsos deve então ser vibrado conforme forem os túneis para cima ou para baixo.

Ipsos é a Palavra do Aeon de Maat enquanto que ipsoslam é um mantra para invocação de Lam. Através dessa técnica de projeção e visualização, eu utilizava Lam como um Portal. As cartas do Tarot das Sombras eram as chaves que abriam o portal para minha jornada nos caminhos da noite.

O Culto de Lam no Soberano Santuário da Gnose

Demônios, Anjos, Deuses e Inteligências cósmicas são partes de uma realidade subjetiva para muitos ocultistas e gosto de pensar que as fronteiras entre as realidades subjetivas e objetivas não estão fixas. Talvez o exemplo mais familiar nos tempos modernos de um contato real com Inteligências extraterrestres seja a recepção d’O Livro da Lei via uma entidade poderosa e desencarnada conhecida como Aiwass. Mas esse tipo de contato sempre foi negligenciado pelos thelemitas que se focam apenas na busca e nos significados ocultos d’O Livro da Lei e as soluções para seus muitos mistérios. As Chaves deste grimório mágico só podem ser decifradas sob a «influência» de uma inteligência praeter-humana. Em minha experiência com o Culto de Lam aprendi que é de importância primária estabelecer este tipo de contato. A O.T.O. desenvolveu métodos efetivos para este trabalho excitante, embora perigoso. Um deles é baseado no controle onírico através da magia sexual. O método envolve o congresso sexual com entidades supramundanas através de uma técnica que nos induz ao sonho lúcido. Aqui, o fator crítico é o estado de gnose do magista que, durante a operação mágica deve estar com o subconsciente completamente aberto, em um estado nem desperto ou completamente adormecido. Esta técnica de controle sexual onírico foi formulada a partir do sistema de sigilização de Austin Osman Spare[4] e do sistema de lucidez erótica-letárgica da O.T.O.[5] Antes de cair adormecido, o magista deve praticar karezza[6] (estimulo sexual que não culmina na ejaculação), enquanto visualiza vividamente um sigilo[7] especialmente elaborado para simbolizar o objetivo desejado da operação. A libido é desta maneira impedida de se expressar imediatamente, buscando sua satisfação no mundo dos sonhos. Quando a técnica é dominada, o sonho torna-se extremamente intenso e é tomado por um súcubo «mulher-sombra» ou íncubo «homem-sombra», com quem o congresso sexual acontece espontaneamente. Mesmo com um grau moderado de proficiência, o magista estará consciente da contínua presença do sigilo. Ele deve manter o sigilo sobre a Sombra «súcubo ou íncubo» a todo o momento, inclusive com profunda visualização durante o intercurso sexual. O sigilo torna-se carregado pela energia gerada pelo rito e no devido curso o objetivo da operação se materializa.

Em uma instrução intitulada Os Amantes de Nuit para o Soberano Santuário da Ordem, Frater Asvk apresentou um conjunto de técnicas sexuais atualizando o Culto de Lam para os Graus VIIº, VIIIº e IXº O.T.O. As técnicas envolviam a visualização de Lam como a kuṇḍalinī tanto nos rituais de magia sexual monofocal do VIIº, magia sexual duofocal do VIIIº ou magia sexual polifocal do IXº.

Na minha prática pessoal, realizava um trabalho com os cakras visualizando Lam como a Serpente de Fogo. Diferente da técnica publicada pela Starfire,[8] o método empregava a excitação sexual sem culminar no orgasmo. Às vezes eu utilizava a maconha para o aumento da gnose, quando a experiência ganhava outros patamares. Tentei utilizar ayahuasca uma vez, mas o estado de transe que a planta proporcionou me tirou completamente da realidade e foi impossível adicionar a gnose sexual.

Ainda estou esperando por novas instruções...


[1] Embora o sistema seja o mesmo, i.e. a tradição Draco-Tifoniana, não existe relação entre a extinta O.T.O. Draconiana e o atual trabalho do Círculo Tifoniano.
[2] Isso permitiu o desenvolvimento de um «culto» distinto dentro da O.T.O.
[3]Um pioneiro nas experiências com o Culto de Lam foi o fundador da Associação Psicotrônica na Iugoslávia, Zivorad Mihajlovic-Slavinski (1937). Bispo da O.T.O. Antiqua de Michel Bertiaux e Xº Grau da O.T.O. Tifoniana, Zivorad publicou livros importantes como Yoga: Treinamento Psíquico [Yoga: Psychic Training], As Chaves da Magia Psíquica [The Keys of Psychic Magic] e muitos outros, além de uma novela intitulada A Aurora de Aiwaz [The Dawn of Aiwaz]. Ele é Fundador da Ecclesia Gnostica Alba (EGA), uma comunidade de iniciados com muitos afiliados. Em uma de suas experiências, ele relatou: «Eu pude perceber Aiwass-Lam agindo através de outra Inteligência que se identificou como Tesla. Em uma incursão mágica através do Culto de Lam eu travei contato com a consciência da corrente energética de Aiwass. Na ocasião recebi uma distinta mensagem: «Sim, eu ajo através de Tesla: seu nome contém a prova!» Durante meses essa mensagem me perseguiu, pois não conseguia decifrá-la. Mas um dia me vi brincando com minha mente quando percebi que Tesla podia ser lido como AL-SET. AL é naturalmente uma referência a O Livro da Lei, enquanto Seth refere-se à Aiwass.»
[4] Culto Zos Kia «C.Z.K.».
[5] Lucidez erato-comatosa, técnica formulada por Ida Nellidof para o VIIº O.T.O. Crowley teceu um comentário sobre o tema em Liber 414: De Arte Mágica.
[6] Os ensinamentos da magia sexual monofocal do VIIº O.T.O. incluíam o linga e yoni-pūjā, técnicas tântricas de adoração ao falo e a vulva.
[7] Neste Grau é requerido que o magista tenha uma capacidade de visualização firme, constante e estável. Para isso é necessário uma mente unidirecionada. Veja os artigos A Concentração & sua Importância e Manaskriyā, partes #1 e #2, por Fernando Liguori.
[8] Veja Lam Workshop.

A Jornada nos Caminhos da Noite Parte 2

Parte . I I .

QABALAH TÂNTRICA

Quando terminei os ordálios do IIIº Grau e fui admitida ao IVº, o Grau do Mestre Magista, fui apresentada aos trabalhos da Célula Noturna e ao Culto de Lam. Imediatamente comecei a trabalhar com essas duas células, unificando, finalmente, suas práticas. Meu interesse no Caminho Noturno começou quando fui apresentada a uma tradução do Liber 231 de Aleiater Crowley (1875-1947) e o comentário de Kenneth Grant (1923-2011) no livro Nightside of Eden.[1] Essa instrução apareceu primeiro em Os Livros Sagrados de Thelema, publicados no Brasil pela Editora Madras, em duas edições distintas.

Penso que essa instrução é um portal por onde o ocultista moderno pode ter acesso a Espiritualidade das Sombras.[2] Trata-se de um texto sobre o Reino das Cascas, os Qliphoth.[3] Eles representam a antítese das Sephiroth e constituem, portanto, o Lado Negro da Árvore da Vida.

De acordo com o sistema de interpretação da Ordem Hermética da Aurora Dourada sobre a Árvore da Vida, existe um espaço entre as sete Sephiroth inferiores e as três superiores ou Supernas. Este espaço entre as Sephiroth é conhecido pelo nome de Abismo. Acredita-se que ali é o reino de outra Sephira, Daath. No diagrama da Árvore, essa Sephira é às vezes pictorizada em pontilhado ao invés de um círculo traçado – como as outras Sephiroth. Isso significa que Daath não é considerada uma Sephira como as outras, mas um «mundo sombrio».

No Séc. XVIII, um ativista-espiritual messiânico chamado Jacob Frank (1726-1791) enfatizou a importância de Daath em seu sistema religioso que incorporava conceitos judeus, cristãos e islâmicos. Esse foi um período na história em que ouve muita especulação acerca da natureza de Daath. Mas foi o Corvo de Londres[4] quem apontou Daath como um tipo de anti-sephira, o «Portal Exterior» para uma região conhecida como Zona Malva.[5]

Liber 231 traz a descrição dos Qliphoth. De acordo com – uma – tradição qabalista, este é o mundo dos cascões da esfera destroçada no momento da Criação e ocupam vinte e dois «anti-caminhos» na Árvore da Morte, o Lado Noturno ou Reverso da Árvore da Vida. Uma das pesquisas da Célula Noturna era a equivalência entre os 22 anti-caminhos dos Qliphoth ou Túneis de Seth com os marmas e sandhis espalhados pelo Śrī Cakra,[6] conhecimento que utilizávamos nos rituais do Círculo Kaula. Na prática, nós utilizávamos a Mesa Qliphótica[7] como portais para o outro lado na forma dos marmas e sandhis no corpo da Sacerdotisa Oficiante.


Śrī Cakra, o yantra que representa o corpo ou a vulva da Deusa.

Aleister Crowley não deixou nenhuma instrução em como utilizar as «22 escalas da serpente» de Liber 231. As operações da Loja Shaitan-Aiwaz, portanto, exploravam inúmeras possibilidades na tentativa de mapear suas potencialidades. Uma delas era a Mesa Qliphótica. Uma coleção de vinte e dois tapetes confeccionados nas cores distintas de cada sigilo qliphótico, de acordo com as informações fornecidas no Liber 777 de Crowley. O tapete era colocado sob a Sacerdotisa Oficiante. Quando o Círculo Mágico era o Śrī Cakra, o tapete qliphótico ficava no chão, quando era o Pantáculo de Daath, o tapete ficava sobre o altar e a sacerdotisa sobre ele. Em ambos os casos, o Círculo Mágico representava a vulva da Deusa. A ênfase em todos os rituais do Círculo Kaula era a produção e utilização dos kālas[8] magicamente carregados. As convocações das sentinelas abriam as Células dos Qliphoth e os kālas secretados pela sacerdotisa eram o combustível que a capacitava a explorá-las.

A abertura e exploração da Zona Malva se dava através da combinação bem fundamentada entre a Qabalah e o Tantra.[9] Em um ritual derivado da Missa Gnóstica,[10] o qual Frater Asvk chamava de Magia Estelar, Astrologia Draco-Estelar[11] ou o Ritual da Serpente de Fogo, um conjunto de convocações qliphóticas para abertura de Daath eram utilizadas junto com técnicas específicas da tecnologia espiritual do Tantra como mudrās e passes magnéticos sobre os cakras, marmas e sandhis da sacerdotisa a fim de se conseguir a secreção bem sucedida de kālas magicamente carregados com ojas.[12]

O Ritual da Serpente de Fogo

Esse ritual é uma versão altamente iniciada da Missa Gnóstica de Crowley e foi elaborado para uma prática em dupla, ambos iniciados no IX° Grau: o sacerdote e a sacerdotisa ou o magista e a bruxa – no sentido popular, não wiccano. O ritual admitia a possibilidade de acólitos e uma prática em grupo, mas sempre com um casal de oficiantes. Quando comecei a assistir e auxiliar nessas operações, a Grã-Sacerdotisa da Ordem era Soror Tanith[13] e quase todas as cerimônias que participei foram oficiadas por ela.

Um objetivo do ritual, como mencionei acima, era a produção e coleta bem sucedida dos kālas, as secreções vaginais magicamente carregadas com ojas. O ritual era uma operação altamente complexa, pois os kālas da sacerdotisa estão associados às fases lunares «tithis» e a deidades específicas associadas a cada fase, chamadas de nityas. Um processo altamente meticuloso para alinhar a célula qliphótica, cakra, sandhi e marma, a fase lunar e deidade regente se iniciava para que o processo alquímico do ritual pudesse ser estabelecido com sucesso. Antes de cada ritual Frater Asvk preparava a carta astrológica da operação, quando ele definia a deidade associada à fase lunar e específica ao kāla que a Sacerdotisa Oficiante deveria emitir.

Frater Asvk, em uma instrução privada da Ordem, enumera as deidades associadas a cada kāla secretado pela sacerdotisa. Existem dezesseis kālas, dos quais apenas quinze são considerados visíveis. A lista dos kālas e as deidades «lunares» associadas segue. Eu omiti a tradução para o português por questões de espaço.


Kāla
Nitya
1. Manada
1. Kāmeśvāri
2. Puśa
2. Bhāgamalini
3. Tuṣṭhi
3. Nityaklinna
4. Puṣṭhi
4. Bheruṇḍa
5. Rati
5. Vahnivasini
6. Dhruti
6. Mahā Vajreśvāri
7. Sasicini
7. Śiva Duti
8. Candrika
8. Tvarita
9. Kanta
9. Kula Sundarī
10. Jyotṣṇa
10. Nitya
11. Śrī
11. Nila Pataka
12. Pṛti
12. Vijāya
13. Angada
13. Sarvamangala
14. Pūrna
14. Jvalamalini
15. Pūrnamruta
15. Cidrupa
16. Amṛta
16. Mahā Tripura Sundarī

O requisito primordial era que a Sacerdotisa Oficiante pudesse ser uma iniciada capaz de elevar a kuṇḍalinī. Mas nem todas as pessoas estão preparadas a este nível. Como medida paliativa, Frater Asvk insistia que, mesmo que a sacerdotisa não pudesse elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras, ela deveria pelo menos ser capaz de liberar o prāṇotthana,[14] a força prânica que desencadeia o despertar real da kuṇḍalinī. Para essa finalidade, a Ordem oferecia um treinamento sistemático em kuṇḍalinī-yoga, sempre direcionado as necessidades e dificuldades pessoais de cada um. Um treinamento tântrico fundamental se iniciava no VIIº, o Grau do Mestre do Templo, onde todos recebíamos o Śrī Devī Khaḍgamālā Sādhanā. Esta é uma prática de adoração a Mãe Divina «Śrī Devī» desenvolvida por Frater Asvk para os membros do Círculo Kaula. A palavra khaḍga significa espada e mālā significa guirlanda. A execução deste sādhanā cria uma aura protetora ou guirlanda de espadas sobre o magista. Trata-se de uma jornada através do Śrī Cakra pela recitação dos nomes das 98 yoginīs ou aspectos de devī que «guardam» os pontos de energia do cakra ao longo do caminho. Em outra oportunidade voltaremos a este ritual.


16 yantras das Nityas utilizados no Ritual da Serpente de Fogo.

Qualquer descuido durante a realização da operação poderia resultar em uma prática espiritual predatória, quer dizer, vampirismo. Para evitar isso, todos nós estávamos sempre cientes da proposta e objetivo do ritual, todos em uma mesma corrente de vibração, cientes de todas as implicações mágicas e kármicas.

Às vezes o ritual tinha um contexto todo thelêmico, às vezes era completamente tântrico. Nós executávamos versões diferentes dos rituais thelêmicos tradicionais como o Ritual da Marca da Besta, o Ritual Safira Estrela e o Ritual da Estrela de Sangue. Às vezes o ritual era feito sobre as bases da Bruxaria Therionica e a corrente lunar de Hécate.

Esse ritual sempre era executado por volta da meia noite na primeira noite de Lua Cheia. Em qualquer uma dessas configurações o trono da Sacerdotisa Oficiante ficava no Norte. Isso ocorria porque nesse dia a Lua ficava no quadrante oposto, o Sul, onde ficava o Sacerdote Oficiante. O Sol ficava sobre a sacerdotisa, no Norte. Isso era feito dessa maneira porque o sacerdote assumia a forma divina do deus Candra, transmissor do «néctar da imortalidade», representado astrologicamente pela Lua Cheia. A Sacerdotisa assumia a forma de Sekhmet, a deusa do calor e furor sexual, associada ao Fogo e ao dinamismo da Śakti.

O ápice do ritual ocorria quando o sacerdote precipitava a kuṇḍalinī no corpo da sacerdotisa. O Sacerdote Oficiante executava determinadas mudrās sobre o corpo da sacerdotisa, sem necessariamente tocá-la, fazendo passes magnéticos sobre certas zonas erógenas, às vezes com a Baqueta Mágica e às vezes com as mãos. Nesse momento a sacerdotisa não era sexualmente excitada, evitando o aterramento da energia mágica enquanto mantinha contrações fisiológicas «bandhas» selando e contendo o prāṇa no interior do corpo. Esse estímulo continuava até que a sacerdotisa literalmente tivesse febre. O objetivo desse processo era o despertar da Serpente de Fogo, elevando-a por todos os cakras ao ponto de «queimá-los» a fim de se estimular a produção e secreção de hormônios associados na corrente sanguínea da sacerdotisa. Nesse processo, o sacerdote trazia a sacerdotisa ao ponto do orgasmo, parando momentos antes do clímax. A excitação sexual somente ocorria, através dos procedimentos do VIIIº ou IXº Graus, quando a sacerdotisa encontrava-se em dificuldade para atingir o estado de consciência associado ao kāla que deveria produzir. Nesse caso, quando o procedimento era com as técnicas do VIIIº, eu e outros acólitos ajudávamos no processo de excitação. Outras vezes, quando o procedimento era através do IXº, então o Sacerdote Oficiante se encarregava de excitar a sacerdotisa. Em qualquer um dos casos, o orgasmo era evitado, pois a energia gerada deve chegar ao ponto de ser carregada magicamente antes de ser liberada na forma de kāla. No momento exato, quando a sacerdotisa chegava ao limite de sua excitação e ao nível de consciência desejado, então o orgasmo era liberado, produzindo o kāla correto associado. O kāla secretado na vulva da sacerdotisa era então coletado pelo sacerdote, às vezes oralmente, na intenção de aumentar seus poderes ocultos ou produzir o contato com forças supramundanas. Às vezes o kāla era coletado sobre talismãs preparados para o objetivo da operação ou em discos de metal alocados sobre os cakras da sacerdotisa durante o ritual. Nas operações, Frater Asvk carregava o ājñā-cakra da sacerdotisa a fim de atrair magneticamente a kuṇḍalinī para sua zona de poder. No último caso, os discos de metal, agora carregados com ojas, eram guardados em um recipiente para serem utilizados depois, em outras operações. Nessas condições os kālas da sacerdotisa eram carregados com a força mágica do ojas, determinando sua eficácia.

Embora a produção dos kālas exigisse uma atenção especial, o objetivo do ritual sempre era a produção da criança mágica. Para isso, a energia masculina é essencial. O fluido seminal do sacerdote é um agente fundamental para o «nascimento mágico». Da mesma maneira que ocorre com os kālas da sacerdotisa, o fluido seminal do sacerdote deve também ser carregado com ojas. O sacerdote deve elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras e evitar o orgasmo para não aterrar a energia antes que ela possa ser carregada energeticamente.

Esse é um poderoso ritual de Alquimia Sexual. Na medida em que o executamos, nosso corpo passa por profundas mudanças fisiológicas que se inicia com a secreção de hormônios na corrente sanguínea. Isso altera a respiração, o metabolismo, a qualidade da saliva, do suor, do sêmen e das secreções vaginais. Nessas condições, visões podem ser obtidas. A concentração mantida durante a excitação sexual, seja através do VIIIº ou IXº Graus, cria um poderoso estresse psíquico. Em outras palavras, a concentração e o foco mantidos para evitar o orgasmo cria uma reação em cadeia no corpo, fazendo com que suas funções se alterem, abrindo Portais que normalmente estão fechados. Como consequência, o transe é induzido. O resultado do ritual, quer dizer, a Criança Mágica, é visualizado na câmara do ājñā-cakra para que possa ser concebido com estrita economia de meios.

O sexo casual não produz um resultado assim. O controle das respostas sexuais automáticas do corpo é necessário, bem como treino e disciplina. Dessa maneira, Portais para os reinos além do visível podem ser abertos e explorados.

Na sequência, irei abordar os trabalhos da Célula Noturna com o Tarot das Sombras e o Culto de Lam para incursões qliphóticas.


[1] O Lado Noturno do Éden, Kenneth Grant. Tradução particular de Fernando Liguori. Existe outra versão deste livro em português disponível na internet.
[2] O termo espiritualidade das sombras pode assustar os leitores. Ele inclui temas como magia sexual, a busca do deus oculto, a espiritualidade feminina (culto ao sagrado feminino), a utilização de drogas e substâncias naturais psicoativas e o acesso às profundas camadas do subconsciente através de um processo conhecido como ressurgência atávica. Contudo, deve ser frisado veementemente que este termo, espiritualidade das sombras, conforme aqui tratado está isento da conotação pejorativa de «magia negra» ou «diabólica».
[3] Palavra hebraica que significa «casca», «concha», «couraça» ou «caco». Uma peça quebrada da Criação de acordo com algumas escolas tradicionais de Qabalah. O reino de espíritos malignos representados por esses «cacos quebrados». De acordo com Kenneth Grant, a palavra significa «prostituta», «mulher estranha» ou «mulher estrangeira». Termos que designam «diversidade» ou «alteridade». O mundo sombrio dos cascões. Cada Sephira da Árvore da Vida possui sua Qlipha correspondente, o reflexo da energia a qual ela representa e seu conjunto ou Qliphoth formam a Árvore da Morte.
[4] Como é conhecido Kenneth Grant, Sacerdote de Seth, um dos maiores expoentes da Tradição Tifoniana.
[5] Termo cunhado por Kenneth Grant. Ele se refere ao Abismo, Daath na Árvore da Vida ou a matéria escura circundante ao Abismo. Mas o termo é carregado e possui muitas implicações. Por exemplo, é a região entre o sonho e o sono sem sonhos, pictorizada pelo Deserto de Seth ou o Tridente de Chozzar, o «porco», um totem tifoniano cujo símbolo é um tridente. É o estado que separa a existência fenomênica do Ser numênico etc. Veja Hecate’s Fountain e Outer Gateways, Skoob Books, 1992 e 1994.
[6] O Śrī Cakra ou Śrī Yantra é uma figura geométrica que representa o corpo da Deusa. Este yantra é o maior símbolo da tradição do Śrī Vidyā. Śrī é uma palavra que significa «sagrado» ou «santo». Vidyā vem da mesma raiz sânscrita que Veda e significa «conhecimento». Portanto, é a tradição do conhecimento sagrado. Trata-se de uma cultura tântrica que sobrevive no Sul da Índia. Nos dias atuais, já não existe uma conexão entre o Śrī Vidyā e as escolas da tradição Kaula, como houve no passado, onde algumas escolas compartilhavam ensinamentos. O Śrī Vidyā é uma tradição śākta. Seu culto é a adoração a Śrī Devī, a Grande Deusa.
[7] Uma coleção de 22 tapetes de cores diferentes com o sigilo dos 22 gênios qliphóticos de Liber 231.
[8] Existem inúmeras variações de kālas «secreções vaginais», dependendo sempre da relação entre o ciclo lunar e menstrual da sacerdotisa. A secreção de hormônios específicos de certas glândulas conectadas aos cakras durante o ritual irá influenciar e até determinar a natureza do kāla. O corpo da sacerdotisa é um laboratório. Na medida em que ela alcança níveis mais avançados na iniciação, este laboratório se torna em um templo: suas funções biológicas possuem contrapartes psicoespirituais que estão sob o seu controle – consciente ou não – durante as operações. Quer dizer, a sacerdotisa pode estar em transe durante o ritual, proferindo mensagens oraculares o tempo todo, mas seu treino e iniciação lhe conferiram a habilidade de responder – mesmo que instintivamente – as mudrās e passes magnéticos do sacerdote. Os kālas em si mesmos são considerados magicamente inertes até serem carregados com energia mágica «ojas» pelo Sacerdote Oficiante. Isso significa que sem a atenção apropriada do sacerdote durante o ritual, os kālas mantêm apenas suas propriedades físicas fundamentais, como a reprodução, por exemplo. Mas quando são carregados magicamente, adquirem propriedades super-humanas. Na medida em que determinados cakras são «ativados» no corpo da sacerdotisa, todo o seu sistema passa por um processo sutil de mudança. A excitação de determinados cakras durante o ritual libera na corrente sanguínea hormônios específicos das glândulas conectadas aos cakras. Isso altera todas as secreções corporais, que são coletadas e utilizadas para finalidades específicas na magia.
[9] Qabalah Tântrica. O termo nasceu de uma reinterpretação da história da magia sexual no Ocidente. No senso comum, a magia sexual no Ocidente começa com os Cavaleiros Templários. Fundada em 1118 d.C., o objetivo dos Cavaleiros Templários era proteger os peregrinos que viajavam ao Oriente Médio durante a segunda Cruzada. Em 1312 a autoridade dos Templários foi suprimida pela Igreja Romana, a despeito de seu poder, influência e riqueza. Todos os membros da Ordem foram caçados e condenados por heresia, bruxaria e magia. A história conta que os Cavaleiros Templários aprenderam de Adeptos Sufis segredos da Alquimia Sexual. Tal segredo fora recebido diretamente de Iniciados tântricos hindus. Esse é o início da magia sexual no Ocidente, chegando até os dias de hoje através de autoridades como Paschal Beverly Randolph e Aleister Crowley. A Qabalah Tântrica nasce de um resgate da tradição hebraica em seus primórdios, nos tempos de Abraão. Naquela época, os hebreus não eram monoteístas, mas politeístas. Eles adoravam a deusa tanto em seus lares quanto no templo em Jerusalém até a destruição do segundo templo em 70 d.C. Existem inúmeras evidências que nos primórdios da tradição hebraica, assim como seus vizinhos politeístas, os mistérios eram celebrados em ritos sexuais de adoração ao Deus e a Deusa. Nesse caminho, por exemplo, a Arca da Aliança recebe uma nova interpretação de seus mistérios. Não era a Arca, as Tábuas dos Mandamentos ou a Torah que continham o secretum secretorum, mas a natureza espiritual do sexo, demonstrada pelos Querubins da Arca da Aliança em coito sexual. Era sabido que Deus falava através dos Querubins. De acordo com a Torah e a Qabalah, Deus cria através da Palavra: «E o Senhor disse: «Faça-se a Luz» e a Luz surgiu». Essa é a revelação do segredo qabalístico da magia sexual: profecia e divinação podem resultar do coito espiritualizado. O assunto merece um espaço maior para nos aprofundarmos.
[10] Veja Liber XV: A Missa Gnóstica em Documentos, Rituais & a Magia Sexual da O.T.O., Por Aleister Crowley e Fernando Liguori. Existem duas versões deste e-book na internet. Uma de 2001 e outra de 2014. A segunda versão foi atualizada e ampliada. Recomenda-se descartar a primeira versão que, segundo o autor, contém inúmeros erros e não está alinhada a Gnose Tifoniana.
[11] O texto Astrologia Draco-Estelar de Fernando Liguori é um relato de uma operação dessa natureza.
[12] Vigor, força, poder, energia, luz, fluído vital ou energia mágica. Para uma compreensão ampla do termo ojas veja o artigo Prāna, Tejas & Ojas: O Segredo da Alquimia Yogī, por Fernando Liguori.
[13] Soror Tanith ou Soror 789 ‘.’, Karen née Liguori.
[14] Veja o artigo Prāṇotthana ou Kuṇḍalinī, de Swāmi Santaram Saraswatī, traduzido por Fernando Liguori.