sábado, 23 de julho de 2022

A Filosofia Antiga

Desde a Antiguidade, o termo magia tem ganhado conotações pejorativas e tem sido associado a prestidigitação e trapaças de todos os tipos. Tanto mageia quanto goēteia eram sinônimos de feitiçaria, um tipo de prática mágico-cerimonial de caráter inferior devido às inclinações particulares de quem pratica, e não pelos métodos ou procedimentos que se realiza, muito embora esse também seja um tema deveras debatido. O Séc. III d.C. apresentou uma disputada questão na taxonomia e na definição de suas práticas e qualidade de ritual. Em meio a essa disputa, a teurgia neoplatônica também foi acusada ter equivalência com a prática da magia (goēteia, feitiçaria). Jâmblico, filósofo e teurgo, era um homem que combinava o refinamento e a profunda inquirição espiritual filosófica com a devoção e a teofania de um hierofante de mistérios. Ele se esforçou em demonstrar que a teurgia tratava-se de uma prática cerimonial de tipo superior, aliada a um estilo de vida filosófico. Jâmblico ensinava que a teurgia é o complemento religioso-cerimonial da filosofia, acreditando que somente a devoção inspirada poderia levar o filósofo do ver para o ser em um arrebatado estado de união com o divino (henosis).

Como veremos adiante, a filosofia antiga é um estilo de vida, uma maneira distinta de olhar a realidade. A teurgia, neste mesmo caminho, não difere da filosofia, antes disso, a complementa. É correto dizer que filosofia e teurgia são artes irmãs. Nos primeiros séculos da era cristã, principalmente entre os Sécs. III e IV onde esse embate crescia fervorosamente, o cristianismo se apresentava como uma alternativa filosófica, uma vez que orientava um estilo de vida sacramental em concordância com o Logos. Nesse processo, ele rejeitou e perseguiu os rivais da filosofia helênica que perseguiam os mesmos objetivos espirituais, mas com metodologias dialéticas e teúrgicas distintas. Porfírio, professor de Jâmblico, classificava os cristãos em dois grupos, os letrados e os iletrados. Os iletrados eram a maioria, os polloi kai alloi, os letrados eram a minoria, os hairetikoi. Estes poucos eram os gnósticos, àqueles que possuíam hairesis, uma firme e oposta doutrina filosófica.

Os gnósticos foram completamente exterminados pelos cristãos e a ekklesia, antes orientada pela philosophia verissima de Platão, agora orientava-se aos mistérios menores. A lógica e os aspectos psíquico-cosmológicos da filosofia foram aceitos, mas a espiritualidade pagã foi furiosamente sufocada. A teurgia e metafísica neoplatônicas de Jâmblico e Proclo transformaram-se na teologia mística de Pseudo Dionísio, mas a dimensão teúrgica do neoplatonismo foi demonizada e perseguida.

Uma vida filosófica é essencialmente mística. Um filósofo na Antiguidade era um místico. No entanto, o embate acalorado e por vezes deveras sangrento entre cristãos e pagãos também mudou completamente a orientação das academias de filosofia que por fim foram completamente fechadas e seus professores e alunos perseguidos. Houve nesse período um maciço ingresso no cristianismo, que se apoderava dos ideias filosóficos espirituais de imortalidade da filosofia, deixando apenas uma casca de discurso racional amorfo. O cristianismo se valeu dos exercícios espirituais da filosofia, renegando esta apenas a um conjunto de especulações. É essa filosofia desprovida de estilo de vida filosófico que chegou até nós nos dias de hoje em nossas universidades. A filosofia moderna é um fruto direto desta corrupção do neoplatonismo tardio e pagão em virtude da apropriação cristã de sua espiritualidade. A partir do Séc. IV d.C. a filosofia nunca mais seria a mesma. Ela daria lugar a especulação filosófica abstrata de uma atividade intelectual desprovida de identidade própria, perdendo completamente suas dimensões teológica, religiosa e teúrgica.

O resgate da filosofia antiga pode, dessa maneira, ser estabelecido através da prática da teurgia. A filosofia compreendida como um desenvolvimento da tradição órfica, pitagória e platônica, não se trata de uma explicação teórica da realidade, do mundo, mas antes disso, de um rito de renascimento, o que implica em transcender a finitude material. O objetivo de uma vida filosófica inclui a habilidade de viver bem no aqui e no agora, pois o pano de fundo noético de cada filósofo, quer dizer, o Uno inefável, está presente em toda parte. Nos termos da cultura egípcia, trata-se portanto de uma transição ao reino de Osíris (duat) ou corpo alquímico da deusa Nuit (o céu), às vezes representado como um templo na forma de vaca (a deusa Hathor). Para um filósofo, portanto, aprender a viver bem se trata de aprender a morrer e essa paideia (educação) filosófica é análoga a construção da tumba real, quer dizer, a maṇḍala teúrgica de palavras (hekau) e os espíritos hieróglifos animados (medu neter), a incorporação das Formas platônicas. Essa tumba filosófica é a própria cripta de iniciação do filósofo, onde ele passará pela transformação alquímica no templo de Osíris no duat. O termo grego filósofo tem equivalência com o termo egípcio mer rekh, que significa amante do conhecimento, que dizer, àquele que busca por uma teofania divina com os neteru (deuses) em henosis. Esse elemento teofânico dá acesso ao espírito da sabedoria, quando o deus Thoth é assentado na ponta da língua e a deusa Maat no santuário do coração. Como todo hierofante de mistérios egípcios, o filósofo busca a ressurreição no reino de Osíris-Rá. A revolução intelectual helênica despertada por Pitágoras e Platão modernizou e adaptou este conhecimento egípcio, transformando o antigo Faraó-Hórus, o theios aner, no Filósofo-Sacerdote platônico buscando união com os princípios elevados noéticos (neteru) adentrando a barca de Rá. O Atum-Rá egípcio equivale ao Intelecto Divino ou cosmos noético (kosmos noetos) de luz espiritual.