sábado, 23 de julho de 2022

Os Primeiros Filósofos

 


Os primeiros filósofos eram seres espirituais, humanos que encarnaram preparados para acessar verdades sutis que mentes profundamente embrutecidas eram incapazes de perceber. Uma das descobertas dos homens de saber da Antiguidade foi a Alma (psiché). Estes filósofos eram mestres da introspecção, através da qual foi a eles possível perceber a própria Alma com clareza e precisão, suas partes, funções e o meio adequado de harmonizá-las e nutri-las. Através destes filósofos, através do trabalho que eles fizeram sobre si mesmos como seres espirituais encarnados, é possível a nós sondar os rincões de nós mesmos pelos apontamentos que eles deixaram. Foi um trabalho de colosso, pare para pensar, daqueles primeiros filósofos naturalistas que iniciaram o trabalho de sondar a realidade que os cercavam até que, após séculos de aperfeiçoamento do mecanismo de busca e pesquisa, quer dizer, o refinamento do aparato intelectual, descobrissem a Alma e seu poder de animar a matéria. A eles devemos um trabalho que não precisamos nos esforçar em descobrir. A eles devemos muito...
Que a Alma é única em si mesma, indivisível, é uma ideia de Aristóteles, uma ideia inovadora na época dele.[1] Ele definiu a Alma como o primeiro princípio, a primeira causa de algo, seu propósito de ser. A Alma de um relógio é demonstrar o tempo. A Alma de um cão é ser cão. A Alma, para Aristóteles, era a causa do corpo. Sem corpo não há Alma ou mesmo a necessidade dela. Essa era uma direta resposta de Aristóteles ao platonismo que argumenta que não apenas existe a Alma, mas que também ela é a intermediária entre a consciência humana e o Mundo das Ideias, o nous. A Alma na tradição neoplatônica trata-se de algo maravilhoso, pois diferente de tudo no universo, a Alma humana não é prisioneira de formas distintas de se olhar a realidade. Retornando a lectio divina de A República, a nossa Alma é àquilo que nos leva para fora da caverna.
Platão descreve a Alma em três partes.[2] No Fedro ele diz que a Alma é como uma carruagem de dois cavalos. Faça um pequeno exercício mental aqui: imagine-se no comando de uma carruagem com dois cavalos. Você sabe para onde vai e qual o melhor caminho deve seguir para chegar lá. De seu assento na carruagem, a visão é clara e o caminho se mostra a sua frente, às vezes com buracos, noutras partes com muito mato, mas em outras a passagem está limpa. Mas embora tudo isso seja claro para seu intelecto em acordo com o Logoi, afinado – ou sintonizado – a sua racionalidade, a carruagem ainda é puxada por dois cavalos. Um desses cavalos é uma égua espirituosa e inteligente, a qual você batizou de Timós. Ela às vezes se assusta com as sombras na estrada, fica intrigada com odores diversos pelo caminho ou corre atrás de algo só para ver o que é. Ela às vezes é fechada e não sai do lugar, onde para empacada sem se mexer. O outro cavalo é um macho garanhão o qual você batizou de Eros. Ele sabe o que quer e pega o que quer quando bem deseja no calor da ação. Seu apetite é enorme e ele sempre para quando vê algo verde para comer, seja bom ou ruim. Além de ser forte, ele puxa Timós com ele. Timós, por outro lado, às vezes acompanha Eros, mas noutras vezes o puxa para trás e até briga com ele. Não obstante, você tem em suas mãos o arreio que controla estes dois cavalos através dos quais pode controlá-los e levar a carruagem até a clareira descampada da henosis.
O Logoi ou Logos é a parte superior (intelectual) da Alma, àquela que comanda os dois cavalos, um reflexo da Mente de deus, o Nous. É nessa parte da Alma que vive o espírito da lógica, da razão e do entendimento. Quando a parte superior da Alma é cultivada através de um estilo de vida filosófico, ela comanda as outras duas partes da Alma: Timós, a parte emocional da Alma e Eros, a parte instintiva da Alma. Timós administra todas as emoções, sejam elas boas, sublimes, refinadas, elevadas, filantrópicas ou egoístas, compassivas, ferozes, ciumentas e medrosas. É interessante notar que no grego antigo a palavra thymos significava aspiração, mas no grego moderno significa raiva. Eros é a parte da Alma que administra os apetites por sexo, comida e prazeres. Quando a parte superior da Alma, o Logoi, está no controle de Eros, os apetites demonstram-se comedidos. No entanto, quando Eros está a movimentar-se a revelia da estrutura da Alma, sucumbe-se aos vícios, a pornografia, glutonaria etc.
A prática filosófica, que implica ascese e disciplina espiritual, aliada ao exercício da teurgia que eleva a Alma até os planos de luz e perfeição, é um estilo de vida que harmoniza as três partes da Alma e transforma a personalidade.
A maioria de nós se preocupa em agir de maneira que a parte superior da Alma controle estes dois cavalos descontrolados. A incompreensão sobre a natureza deles ou a dificuldade de lidar com eles, tem levado o homem a construir sistemas religiosos e filosóficos para lidar melhor com eles. Há sistemas que são acusados de controladores, pois eles insistem em solapar qualquer atividade da Alma emocional, como se fosse possível não ter ou produzir emoções. Os estoicos são, de forma imatura e sofista, acusados disso. No entanto, o que os estoicos ensinam é que somos mais felizes quando não tentamos controlar coisas que estão fora de nosso controle. Uma vez que o que está dentro do escopo de nosso controle são as emoções e as reações aos eventos da vida, os estoicos ensinam que o caminho da felicidade é controlar as emoções, mas isso não significa tolhe-las. Na verdade, eles dizem que as emoções servem poderosamente a propósitos valiosos. Sem as emoções a vida não vale a pena ser vivida. Os estoicos dizem que é possível ser feliz agora, nesse exato momento, independente das circunstâncias. Quando bem controladas, as emoções podem elevar a Alma ao plano das virtudes também, onde vive o espírito da compaixão. Um homem sem compaixão, quer dizer, que não tem pacto com o espírito da compaixão, torna-se frio e insensível. É o pacto com o espírito da compaixão que torna o homem senciente, que vem da palavra sentir.
A teurgia é o agente potencializador da Alma emocional. Através do processo de fervorosa devoção as deidades através de invocações, cantos e litanias, a Alma emocional é invadida pelos códigos de luz dos deuses e das virtudes. Neste processo ocorre a cura de emoções negativas e depressivas, torpes e violentas, o que muda a qualidade do sentir e torna o teurgo mais tolerante, amoroso e caridoso. A transformação não ocorre da noite para o dia e às vezes, dependendo da qualidade da Alma, o teurgo pode levar anos até que veja alguma mudança.
Será que é possível eliminar completamente os apetites da Alma? Místicos de todas as partes e de todos os tempos têm tentado, no entanto, uma carruagem de apenas um cavalo não chega muito longe na estrada da henosis. A ascese espiritual é tida em alta medida na tradição neoplatônica, pois proporciona as condições necessárias para que o Logoi assuma completa e definitivamente o controle de Timós e Eros, ensinando-lhes limites.
Usualmente, pensa-se que o corpo detém a Alma. No entanto, procure pensar que é a Alma que possui um corpo. Quando o Logoi está no comando de Timós e Eros, naturalmente um estilo de vida mais saudável é assumido pelo teurgo. Quando Eros anseia por chocolate, batata frita, coca cola e pornografia antes de dormir, o Logoi oferece uma noite de descanso, contemplação, banho a luz de velas e um bom caldo com rapadura de sobremesa, preces e invocações antes de dormir. Essa prática pode ser assumida por qualquer pessoa após uma longa jornada de trabalho. Muitos peregrinos saem do trabalho para o smartphone; da confusão de um dia de labuta para a bagunça de uma vida desregrada e indisciplinada. Para que o Logoi assuma o completo controle de Timós e Eros, um estilo de vida apropriado deve ser cultivado, que alinhe exercícios espirituais acompanhados de ritos teúrgicos.
Eros, a Alma animal sempre faminta, não anseia verdadeiramente por qualquer coisa no reino da geração, mas ao contrário, anseia o fantasmata dos objetos, produzidos pela interação dos sentidos ou pela memória. Se nós lembramos como é o gosto da bata frita e desejamos comê-la, o impulso é devido a um fantasmata da memória, não por causa da batata frita em si. O mesmo ocorre com os impulsos sexuais e quando os consumimos, inconscientemente alimentamos os fantasmatas da memória. E embora muitos peregrinos não deem a atenção devida a exploração da Alma, não costumam levar em consideração o poder de Eros na magia. Quando desejamos mudar algo em nossas vidas através da prática da magia, seja uma amarração, uma maldição ou um feitiço para prosperidade, significa que desejamos muito. É como se Eros não mantivesse seu curso na estrada e se distraísse com todos os objetos de seus desejos ao seu redor. Nessas circunstâncias, Eros estaria sendo assombrado por fantasmatas vindo de todos os lados em um conflito caótico de desejo e aversão. Nesse caminho a magia não funciona, pois é impossível a carruagem manter-se no curso da henosis. Quando o Logoi está no controle, Eros é ensinado a se focar na meta, o que é essencial ao sucesso da magia.
Enquanto Eros, a Alma animal, é atraído pelo canto da sereia, os fantasmatras produzidos pela memória e a interação dos sentidos com os objetos, Timós, a Alma emocional, é atraída pela miragem, os construtos de pensamentos produzidos acerca dos fantasmatas. O homem não se sente triste ou feliz por causa dos objetos e ou circunstâncias, mas pelo o que ele pensa sobre os objetos e as circunstâncias. Se nós ganhamos uma aposta, nos sentimos felizes. Se nós perdemos a aposta, nos sentimos tristes. Tristeza ou felicidade não têm nada a ver com a aposta. Se nós ganhamos a aposta e ficamos felizes, logo ficamos tristes pelas pessoas não valorizem isso como nós valorizamos. A maioria dos pensamentos que produzimos sobre medo, dúvida, raiva, sensualidade, ódio, depressão, violência etc., são construtos irracionais, quer dizer, desaprovados pelo Logoi. Esse tipo de construção mental só ocorre quando o Logoi não tem controle ou mesmo comanda Timós e Eros. São construções irracionais por nascem diretamente da experiência das Almas animal e emocional. Nessas circunstâncias, o Logoi não consegue aprovar ou desaprovar qualquer pensamento torpe produzido pelas emoções descontroladas e os impulsos ao acaso do reino da geração. Portanto, a disciplina para aprender a lidar com Timós, a Alma emocional, trata-se do Logoi reconhecer os pensamentos que dirigem os impulsos antes mesmo de Timós os perceber. Em outras palavras, seu controle não está em avaliar as emoções, mas nos pensamentos que as provocam. Quando estamos em uma carruagem, olhamos adiante na estrada, não no cavalo.
Um exercício espiritual para aprender a fazer isso é escrever e classificar em um diário os pensamentos que servem como gatilhos para disparos emocionais. É mais difícil fazê-lo de memória. O método mais eficaz é anotar imediatamente o ocorrido de uma situação logo que ela ocorra. Em exemplo: se você está em uma fila nas Lojas Americanas esperando a sua vez de ir até o caixa pagar por algum produto e fica irritado com a senhora que dissimuladamente passou na sua frente, se pergunte: por que estou irritado? Porque a senhora que passou na minha frente não tem educação! Mas essa resposta é o fantasmata! Agora você deveria avaliar os pensamentos produzidos sobre este fantasmata. Quais são eles? Você passou um bom tempo esperando na fila para que uma pessoa simplesmente entre na sua frente? Que a senhora deveria ter vergonha de fazer isso? Que a senhora seja atropelada na rua por ter entrado na sua frente? Só porque ela é mais velha isso não lhe dá o direito de passar na sua frente? Quando esse exercício espiritual é colocado em ação, é possível cavar com uma pá até se chegar a raiz condicionadamente irracional dos pensamentos. Comece por observar a irracionalidade de seus pensamentos. Avalie se eles são sustentados por uma moral coletiva ou pessoal; se eles têm respaldo na constituição ou se são baseados em leis coletivas ou comportamento cultural. Será que você não apenas projeta os seus valores pessoais no comportamento da senhora? Quando estamos na fila de um banco e pensamos: o caixa deveria ser mais rápido, construímos um pensamento irracional, sem a lógica do Logoi. Seria mais lógico e racional dizer: eu gostaria muito que o caixa fosse mais rápido.
Esse tipo de prática é um exercício de ascese espiritual capaz de colocar o Logoi no comando de Timós e Eros. O que Platão reconheceu em sua avaliação da Alma, é que ela se trata de um sistema. O Logoi raciocina, Timós sente e Eros deseja. Essas partes da Alma estão em comunicação umas com as outras e o Logoi deve comandar Timós e Eros como um capitão comanda uma embarcação, a menos que haja um motim. Platão compreendia que todos nós somos como embarcações em motim, quando os tripulantes se digladiam diante de um capitão fraco e sem punho. O trabalho consiste, dessa maneira, em proporcionar ao Logoi através da teurgia (que inclui um estilo de vida filosófico) as condições naturais para que ele exerça suas funções, uma conexão ou sintonia entre a mente do teurgo e a Mente de Deus.

NOTAS:
[1] Aristóteles possuía uma visão integral da Alma, mas a classificou em a. vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva dos seres vivos; b. sensitiva, que compreende a sensibilidade e movimento próprios ao animal; e c. intelectiva ou dianoética, que é própria do homem.
[2] Elas são chamadas de espécies por Platão, sendo: o poder racional pelo qual a Alma raciocina e domina os impulsos corpóreos; o poder concupiscível ou irracional que preside os impulsos animalescos, desejos e necessidades do corpo; e o poder irascível que auxilia o princípio racional e luta por àquilo que a razão elege como causa justa.