sábado, 23 de julho de 2022

Os Símbolos na Teurgia

A Teurgia Clássica Neoplatônica tem sido associada a espiritualidade transmitida pelos Oráculos Caldeus, tanto no sentido cosmológico como soteriológico. Essa é uma discussão que ainda está em aberto. Alguns estudiosos têm argumentado que a Teurgia Clássica é apenas a versão helênica de um conjunto de práticas mágicas e místicas de várias tradições espirituais que floresceram no Oriente Médio e Egito. Uma versão teúrgica de várias ideologias de realeza que propunham o Estado como um espelho do cosmos.[1] Estas tradições espirituais e suas tecnologias místicas e mágicas que propunham uma harmonia entre todas as partes da Alma humana e o continuum do cosmos, quer dizer, a teurgia propriamente dita, se transformou e sobreviveu como um mecanismo de aperfeiçoamento – ou enriquecimento – da Alma e seu processo de salvação, tema sobre o qual toda tradição Platônica se debruça.

Nesse caminho, a Teurgia Clássica Neoplatônica cujo expoente mais destacado é Jâmblico (245-325 d.C.) seria a helenização de uma tradição metafísica comum de renascimento e imortalidade solar compartilhado, por exemplo, pelos pitagóricos, órficos, dionisíacos, caldeus, babilônios, egípcios e no Extremo Oriente, védicos.

Dito isso, faz sentido olhar a theourgia não em um sentido Neoplatônico apenas, que leva em consideração o neologismo cunhado no Séc. III d.C. a partir dos Oráculos Caldeus, mas de maneira mais simples, como a obra dos deuses (theon erga) e a teofania que essa obra implica. Assim temos teurgia como:

O poder divino mágico e criativo que sustenta e permeia tudo o que existe: os mundos material, psíquico e espiritual. Como veremos abaixo, o teurgo que se coloca a praticar a obra dos deuses não a inicia ou a finaliza, pois isso não compete sua individualidade finita ou posição no cosmos como Alma encarnada na matéria. Ele apenas torna-se um agente da demiurgia do próprio Demiurgo na obra dos deuses.

Toda metaestrutura eidética do cosmos-estado e seu raciocínio de realeza ontogenética e escatológica, suportado por mitos soteriológicos ritualizados que seguem os ritmos diários do cosmos.

Para que os dois pontos acima sejam aceitos como válidos, deve haver uma cosmovisão que os respalde. E ela existe: espírito e matéria se entrelaçam dentro de uma mesma substância. Essa cosmovisão subjaz a própria hierofania dos deuses no mundo e, portanto, sustenta que não existe diferença entre os deuses e suas imagens (estatuetas, símbolos ou ídolos, estações do ano, paisagens, templos, árvores ou seres humanos como dramatis personae). Quando elas são utilizadas como veículos para invocar o nome ou a essência da substância dos deuses, tornam-se animadas, quer dizer, magicamente transformadas de uma mera imagem material em um ídolo magnetizado ou infundido com a substância noética que ele representa. A matéria é a manifestação da Luz noética que soa e provê vida; dito de outra forma, o – ou no – mundo a luz noética vibra e permeia em todas as coisas, animando tudo com vida e substância espiritual. As imagens (sinthemāta) sagradas, dessa forma, são veículos da presença do divino.

Em De Mysteriis, fica nítido o apelo que Jâmblico faz aos mistérios do Egito. Neste ensaio, o qual responde inúmeras indagações e postulados acerca da teurgia feitos por seu professor, Porfírio (cerca de 234-304 d.C.), Jâmblico sustenta a visão Platônica de que a teologia egípcia é teúrgica pelo fato de imitar a engenharia dos cosmos e a energia criativa dos deuses como agentes ou vetores de força da grande engrenagem do Universo. Na teologia egípcia, uma ação que esteja em ressonância direta com o cosmos é uma ação ritualística, quer dizer, uma ação executada liturgicamente. Essa ação, no entanto, não é individual. Nos rituais de teurgia, os sacerdotes egípcios se identificavam com os deuses. Esse tipo de ação ritual está presente até nos Papiros Mágicos Gregos, onde a consciência individual chega a ser anulada em detrimento da possessão divina. Os filósofos e sábios caldeus, hermetistas e representantes da genuina tradição dos maghdim, não se colocavam como executores individuais da teurgia, mas apenas símbolos ou máscaras que imitavam a demiurgia do cosmos. Ao fazê-lo, eles apenas compartilhavam diretamente com os deuses da Obra Divina (theourgia), como veículos dela, não seus executores, iniciadores ou finalizadores. A teurgia ocorre no continuum perpetuamente como a obra dos deuses. O teurgo apenas participa dela através do ritual. Essa visão sobreviveu particularmente no Neoplatonismo e no Neopitagorismo.

A Imagem Sagrada dos deuses, sua sinthemāta, são animadas com seus veículos pneumáticos noéticos e elas podem ser, como acima demonstrado, árvores, o sol, a lua e as estrelas, as montanhas, estações e o por do sol, mas também pedras, estatuetas ou ícones. Neste último caso pode-se fazer um paralelo com a doutrina tântrica do nyāsa, cujo objetivo é infundir ritualisticamente prāṇa (essência vital) em uma estatueta ou no próprio corpo físico, transformando ou transubstanciando sua matéria densa em um corpo divino, simbolizado no conceito filosófico de āsana, não como assento, mas como perfeição adquirida. É neste sentido e não àquele do assento, que o Yogasūtra do sábio Patañjali diz que āsana leva o praticante a se tornar imune dos pares de opostos. Continuando, uma ação que não seja ritualizada não é uma ação divina, mas apenas um ato secular ordinário. Uma ação ritualizada estabelece um padrão eidético na mente, fazendo daquele que o executa um mediador da luz neótica entre a matéria e os planos de luz e perfeição.

A compreensão do que é um ritual de teurgia é necessária para o fechamento de nosso raciocínio. Um ritual de teurgia invoca a perfeição divina. Essa é a interpretação de inúmeros teúgos da Antiguidade até os dias de hoje. Através da execução de um rito teúrgico, um portal de acesso é aberto, fazendo do teurgo um mediador entre o céu e a terra. O ritual em si ocorre no reino dos deuses, que o testemunham e participam dele em um eterno continuum, quer dizer, a própria demiurgia do cosmos. É isso que torna um ritual de teurgia sagrado, pois através dele espírito e matéria se entrelaçam dentro de uma mesma substância. Nesse caminho, o ritual dá ao teurgo o acesso a esse perpétuo entrelaçamento de matéria e espírito.

Da mesma maneira que um teurgo neoplatônico se transforma no deus que ele invoca, o teurgo tântrico também assume a forma do deus no iṣta-devatā. Esse é o ponto crucial da ritualística teúrgica, quando o corpo do teurgo se torna um verdadeiro templo, um agalma ou imagem viva transformada em acordo a iconografia cultural e ritualística. Um teurgo em seu ritual, dessa maneira, é um agathos aner, uma imagem do próprio divino e encarnação da virtude e de tudo o que é belo, harmônico e estável, como uma estatueta de Kouros.

Na Teurgia Clássica Neoplatônica, um símbolo (snmbolon) é um portal de acesso direto e capaz de estabelecer uma conexão inefável com o divino transcendente por ele representado e essa é a mecânica do talismã.[2] Um talismã no contexto da teurgia trata-se de uma conexão ontológica com aquilo que ele representa, uma conceituação distinta da concepção moderna na qual o talismã é apenas uma representação metafórica daquilo que se pretende representar. Um símbolo (sunthāmata) na teurgia pode ser uma pedra, ervas, ossos, incenso, um encantamento, hino, música, ritual, texto sagrado ou qualquer outro objeto material que esteja conectado a uma deidade por simpatia e em amor.[3] Os nomes bárbaros  ou voces magicae são poderosos encantamentos considerados um símbolo do divino transcendente na teurgia. Estes onomata barbara são considerados nomes inefáveis ininteligíveis e inexprimíveis no contexto ritual ou inscritos em estatuetas e outros aparatos ritualísticos como talismãs.[4] Jâmblico explica que os nomes bárbaros são nomes secretos dos deuses e por isso eles operam em um nível de realidade supraracional, entregues aos homens pelos próprios deuses.

Falando sobre os procedimentos da teurgia, Jâmblico sustenta que os rituais teúrgicos são símbolos consagrados a eternidade e as entidades superiores.[5] O ritual como um símbolo do transcendente desperta na Alma suas qualidades superiores, quer dizer, eles ativam na Alma seu elemento divino, pois o teurgo, por meio dos símbolos inefáveis do ritual, envolve a si mesmo no papel hierático dos deuses. Em outras palavras, os símbolos do ritual criam um tipo peculiar de afinidade ou reconhecimento de sua causa divina na Alma, capacitando o teurgo elevar-se aos reinos de luz e perfeição, a morada dos deuses e das virtudes.[6] Os símbolos (sunthāmata), portanto, compõem todo o material utilizado pelo teurgo, desde as estatuetas telestéticas e os nomes bárbaros nelas inscritos, a vestimenta sagrada para execução dos rituais, os encantamentos proferidos etc.


NOTAS:

[1] Veja Algis Uždavinys, Philosophy & Theurgy in Late Antiquity, p. 293.

[2] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 1, 21; 138, 1-5; 210, 11.

[3] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 5, 23.

[4] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 7, 4-5; 8, 5.

[5] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 1, 11.

[6] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 4, 2.

Os Primeiros Filósofos

 


Os primeiros filósofos eram seres espirituais, humanos que encarnaram preparados para acessar verdades sutis que mentes profundamente embrutecidas eram incapazes de perceber. Uma das descobertas dos homens de saber da Antiguidade foi a Alma (psiché). Estes filósofos eram mestres da introspecção, através da qual foi a eles possível perceber a própria Alma com clareza e precisão, suas partes, funções e o meio adequado de harmonizá-las e nutri-las. Através destes filósofos, através do trabalho que eles fizeram sobre si mesmos como seres espirituais encarnados, é possível a nós sondar os rincões de nós mesmos pelos apontamentos que eles deixaram. Foi um trabalho de colosso, pare para pensar, daqueles primeiros filósofos naturalistas que iniciaram o trabalho de sondar a realidade que os cercavam até que, após séculos de aperfeiçoamento do mecanismo de busca e pesquisa, quer dizer, o refinamento do aparato intelectual, descobrissem a Alma e seu poder de animar a matéria. A eles devemos um trabalho que não precisamos nos esforçar em descobrir. A eles devemos muito...
Que a Alma é única em si mesma, indivisível, é uma ideia de Aristóteles, uma ideia inovadora na época dele.[1] Ele definiu a Alma como o primeiro princípio, a primeira causa de algo, seu propósito de ser. A Alma de um relógio é demonstrar o tempo. A Alma de um cão é ser cão. A Alma, para Aristóteles, era a causa do corpo. Sem corpo não há Alma ou mesmo a necessidade dela. Essa era uma direta resposta de Aristóteles ao platonismo que argumenta que não apenas existe a Alma, mas que também ela é a intermediária entre a consciência humana e o Mundo das Ideias, o nous. A Alma na tradição neoplatônica trata-se de algo maravilhoso, pois diferente de tudo no universo, a Alma humana não é prisioneira de formas distintas de se olhar a realidade. Retornando a lectio divina de A República, a nossa Alma é àquilo que nos leva para fora da caverna.
Platão descreve a Alma em três partes.[2] No Fedro ele diz que a Alma é como uma carruagem de dois cavalos. Faça um pequeno exercício mental aqui: imagine-se no comando de uma carruagem com dois cavalos. Você sabe para onde vai e qual o melhor caminho deve seguir para chegar lá. De seu assento na carruagem, a visão é clara e o caminho se mostra a sua frente, às vezes com buracos, noutras partes com muito mato, mas em outras a passagem está limpa. Mas embora tudo isso seja claro para seu intelecto em acordo com o Logoi, afinado – ou sintonizado – a sua racionalidade, a carruagem ainda é puxada por dois cavalos. Um desses cavalos é uma égua espirituosa e inteligente, a qual você batizou de Timós. Ela às vezes se assusta com as sombras na estrada, fica intrigada com odores diversos pelo caminho ou corre atrás de algo só para ver o que é. Ela às vezes é fechada e não sai do lugar, onde para empacada sem se mexer. O outro cavalo é um macho garanhão o qual você batizou de Eros. Ele sabe o que quer e pega o que quer quando bem deseja no calor da ação. Seu apetite é enorme e ele sempre para quando vê algo verde para comer, seja bom ou ruim. Além de ser forte, ele puxa Timós com ele. Timós, por outro lado, às vezes acompanha Eros, mas noutras vezes o puxa para trás e até briga com ele. Não obstante, você tem em suas mãos o arreio que controla estes dois cavalos através dos quais pode controlá-los e levar a carruagem até a clareira descampada da henosis.
O Logoi ou Logos é a parte superior (intelectual) da Alma, àquela que comanda os dois cavalos, um reflexo da Mente de deus, o Nous. É nessa parte da Alma que vive o espírito da lógica, da razão e do entendimento. Quando a parte superior da Alma é cultivada através de um estilo de vida filosófico, ela comanda as outras duas partes da Alma: Timós, a parte emocional da Alma e Eros, a parte instintiva da Alma. Timós administra todas as emoções, sejam elas boas, sublimes, refinadas, elevadas, filantrópicas ou egoístas, compassivas, ferozes, ciumentas e medrosas. É interessante notar que no grego antigo a palavra thymos significava aspiração, mas no grego moderno significa raiva. Eros é a parte da Alma que administra os apetites por sexo, comida e prazeres. Quando a parte superior da Alma, o Logoi, está no controle de Eros, os apetites demonstram-se comedidos. No entanto, quando Eros está a movimentar-se a revelia da estrutura da Alma, sucumbe-se aos vícios, a pornografia, glutonaria etc.
A prática filosófica, que implica ascese e disciplina espiritual, aliada ao exercício da teurgia que eleva a Alma até os planos de luz e perfeição, é um estilo de vida que harmoniza as três partes da Alma e transforma a personalidade.
A maioria de nós se preocupa em agir de maneira que a parte superior da Alma controle estes dois cavalos descontrolados. A incompreensão sobre a natureza deles ou a dificuldade de lidar com eles, tem levado o homem a construir sistemas religiosos e filosóficos para lidar melhor com eles. Há sistemas que são acusados de controladores, pois eles insistem em solapar qualquer atividade da Alma emocional, como se fosse possível não ter ou produzir emoções. Os estoicos são, de forma imatura e sofista, acusados disso. No entanto, o que os estoicos ensinam é que somos mais felizes quando não tentamos controlar coisas que estão fora de nosso controle. Uma vez que o que está dentro do escopo de nosso controle são as emoções e as reações aos eventos da vida, os estoicos ensinam que o caminho da felicidade é controlar as emoções, mas isso não significa tolhe-las. Na verdade, eles dizem que as emoções servem poderosamente a propósitos valiosos. Sem as emoções a vida não vale a pena ser vivida. Os estoicos dizem que é possível ser feliz agora, nesse exato momento, independente das circunstâncias. Quando bem controladas, as emoções podem elevar a Alma ao plano das virtudes também, onde vive o espírito da compaixão. Um homem sem compaixão, quer dizer, que não tem pacto com o espírito da compaixão, torna-se frio e insensível. É o pacto com o espírito da compaixão que torna o homem senciente, que vem da palavra sentir.
A teurgia é o agente potencializador da Alma emocional. Através do processo de fervorosa devoção as deidades através de invocações, cantos e litanias, a Alma emocional é invadida pelos códigos de luz dos deuses e das virtudes. Neste processo ocorre a cura de emoções negativas e depressivas, torpes e violentas, o que muda a qualidade do sentir e torna o teurgo mais tolerante, amoroso e caridoso. A transformação não ocorre da noite para o dia e às vezes, dependendo da qualidade da Alma, o teurgo pode levar anos até que veja alguma mudança.
Será que é possível eliminar completamente os apetites da Alma? Místicos de todas as partes e de todos os tempos têm tentado, no entanto, uma carruagem de apenas um cavalo não chega muito longe na estrada da henosis. A ascese espiritual é tida em alta medida na tradição neoplatônica, pois proporciona as condições necessárias para que o Logoi assuma completa e definitivamente o controle de Timós e Eros, ensinando-lhes limites.
Usualmente, pensa-se que o corpo detém a Alma. No entanto, procure pensar que é a Alma que possui um corpo. Quando o Logoi está no comando de Timós e Eros, naturalmente um estilo de vida mais saudável é assumido pelo teurgo. Quando Eros anseia por chocolate, batata frita, coca cola e pornografia antes de dormir, o Logoi oferece uma noite de descanso, contemplação, banho a luz de velas e um bom caldo com rapadura de sobremesa, preces e invocações antes de dormir. Essa prática pode ser assumida por qualquer pessoa após uma longa jornada de trabalho. Muitos peregrinos saem do trabalho para o smartphone; da confusão de um dia de labuta para a bagunça de uma vida desregrada e indisciplinada. Para que o Logoi assuma o completo controle de Timós e Eros, um estilo de vida apropriado deve ser cultivado, que alinhe exercícios espirituais acompanhados de ritos teúrgicos.
Eros, a Alma animal sempre faminta, não anseia verdadeiramente por qualquer coisa no reino da geração, mas ao contrário, anseia o fantasmata dos objetos, produzidos pela interação dos sentidos ou pela memória. Se nós lembramos como é o gosto da bata frita e desejamos comê-la, o impulso é devido a um fantasmata da memória, não por causa da batata frita em si. O mesmo ocorre com os impulsos sexuais e quando os consumimos, inconscientemente alimentamos os fantasmatas da memória. E embora muitos peregrinos não deem a atenção devida a exploração da Alma, não costumam levar em consideração o poder de Eros na magia. Quando desejamos mudar algo em nossas vidas através da prática da magia, seja uma amarração, uma maldição ou um feitiço para prosperidade, significa que desejamos muito. É como se Eros não mantivesse seu curso na estrada e se distraísse com todos os objetos de seus desejos ao seu redor. Nessas circunstâncias, Eros estaria sendo assombrado por fantasmatas vindo de todos os lados em um conflito caótico de desejo e aversão. Nesse caminho a magia não funciona, pois é impossível a carruagem manter-se no curso da henosis. Quando o Logoi está no controle, Eros é ensinado a se focar na meta, o que é essencial ao sucesso da magia.
Enquanto Eros, a Alma animal, é atraído pelo canto da sereia, os fantasmatras produzidos pela memória e a interação dos sentidos com os objetos, Timós, a Alma emocional, é atraída pela miragem, os construtos de pensamentos produzidos acerca dos fantasmatas. O homem não se sente triste ou feliz por causa dos objetos e ou circunstâncias, mas pelo o que ele pensa sobre os objetos e as circunstâncias. Se nós ganhamos uma aposta, nos sentimos felizes. Se nós perdemos a aposta, nos sentimos tristes. Tristeza ou felicidade não têm nada a ver com a aposta. Se nós ganhamos a aposta e ficamos felizes, logo ficamos tristes pelas pessoas não valorizem isso como nós valorizamos. A maioria dos pensamentos que produzimos sobre medo, dúvida, raiva, sensualidade, ódio, depressão, violência etc., são construtos irracionais, quer dizer, desaprovados pelo Logoi. Esse tipo de construção mental só ocorre quando o Logoi não tem controle ou mesmo comanda Timós e Eros. São construções irracionais por nascem diretamente da experiência das Almas animal e emocional. Nessas circunstâncias, o Logoi não consegue aprovar ou desaprovar qualquer pensamento torpe produzido pelas emoções descontroladas e os impulsos ao acaso do reino da geração. Portanto, a disciplina para aprender a lidar com Timós, a Alma emocional, trata-se do Logoi reconhecer os pensamentos que dirigem os impulsos antes mesmo de Timós os perceber. Em outras palavras, seu controle não está em avaliar as emoções, mas nos pensamentos que as provocam. Quando estamos em uma carruagem, olhamos adiante na estrada, não no cavalo.
Um exercício espiritual para aprender a fazer isso é escrever e classificar em um diário os pensamentos que servem como gatilhos para disparos emocionais. É mais difícil fazê-lo de memória. O método mais eficaz é anotar imediatamente o ocorrido de uma situação logo que ela ocorra. Em exemplo: se você está em uma fila nas Lojas Americanas esperando a sua vez de ir até o caixa pagar por algum produto e fica irritado com a senhora que dissimuladamente passou na sua frente, se pergunte: por que estou irritado? Porque a senhora que passou na minha frente não tem educação! Mas essa resposta é o fantasmata! Agora você deveria avaliar os pensamentos produzidos sobre este fantasmata. Quais são eles? Você passou um bom tempo esperando na fila para que uma pessoa simplesmente entre na sua frente? Que a senhora deveria ter vergonha de fazer isso? Que a senhora seja atropelada na rua por ter entrado na sua frente? Só porque ela é mais velha isso não lhe dá o direito de passar na sua frente? Quando esse exercício espiritual é colocado em ação, é possível cavar com uma pá até se chegar a raiz condicionadamente irracional dos pensamentos. Comece por observar a irracionalidade de seus pensamentos. Avalie se eles são sustentados por uma moral coletiva ou pessoal; se eles têm respaldo na constituição ou se são baseados em leis coletivas ou comportamento cultural. Será que você não apenas projeta os seus valores pessoais no comportamento da senhora? Quando estamos na fila de um banco e pensamos: o caixa deveria ser mais rápido, construímos um pensamento irracional, sem a lógica do Logoi. Seria mais lógico e racional dizer: eu gostaria muito que o caixa fosse mais rápido.
Esse tipo de prática é um exercício de ascese espiritual capaz de colocar o Logoi no comando de Timós e Eros. O que Platão reconheceu em sua avaliação da Alma, é que ela se trata de um sistema. O Logoi raciocina, Timós sente e Eros deseja. Essas partes da Alma estão em comunicação umas com as outras e o Logoi deve comandar Timós e Eros como um capitão comanda uma embarcação, a menos que haja um motim. Platão compreendia que todos nós somos como embarcações em motim, quando os tripulantes se digladiam diante de um capitão fraco e sem punho. O trabalho consiste, dessa maneira, em proporcionar ao Logoi através da teurgia (que inclui um estilo de vida filosófico) as condições naturais para que ele exerça suas funções, uma conexão ou sintonia entre a mente do teurgo e a Mente de Deus.

NOTAS:
[1] Aristóteles possuía uma visão integral da Alma, mas a classificou em a. vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva dos seres vivos; b. sensitiva, que compreende a sensibilidade e movimento próprios ao animal; e c. intelectiva ou dianoética, que é própria do homem.
[2] Elas são chamadas de espécies por Platão, sendo: o poder racional pelo qual a Alma raciocina e domina os impulsos corpóreos; o poder concupiscível ou irracional que preside os impulsos animalescos, desejos e necessidades do corpo; e o poder irascível que auxilia o princípio racional e luta por àquilo que a razão elege como causa justa.


A Experiência Filosófica

No texto De Sócrates a Patãnjali, nós estudamos que:

O diálogo socrático é um exercício espiritual do yoga ocidental. Ele convida a descoberta de si mesmo, da realidade interior essencial, distanciando o que não somos daquilo que verdadeiramente somos. Isso permanece urgente nos dias de hoje: nós chegamos a um período na história do homem em que a identidade de rótulo obscureceu completamente o conhecimento de nós mesmos. Por identidade de rótulo Patañjali descrevia um poderoso entrave ou perturbação na realização ou exercício do yoga, uma mazela poderosa que afasta o homem de sua verdadeira realidade interior e ele a chamou de abhiniveśaḥ. A prática do yoga oriental opera da mesma maneira que a filosofia ou yoga ocidental, quer dizer, através de uma purificação interior. As impurezas que queremos eliminar são quaisquer crenças, hábitos ou memórias que condicionem o pensamento a percorrer caminhos que não são os nossos, ou seja, que nos façam pensar com a cabeça de outras pessoas. Quando cometemos esse erro, de nos deixarmos guiar pela opinião alheia, nossa capacidade de percepção fica prejudicada por esta perturbação descrita por Patañjali.

O diálogo socrático tem por objetivo desconstruir esse conjunto de ideias ou acúmulo de detritos culturais, essa linguagem cultural ao qual estamos acorrentados no cativeiro do senso comum e politicamente correto. O diálogo socrático é um exercício espiritual que possibilita a transcendência desse acúmulo de detrito cultural e ir direto a Fonte, o Absoluto e de lá absorver da própria realidade a experiência filosófica.

Outra opção oferecida pela filosofia é a meditação, aspecto importante do método filosófico de transformação e integração. A experiência filosófica se revela no silêncio. É no refúgio do silêncio que o filósofo encontra a essência profunda de sua filosofia. Por meditação não entendamos técnica meditativa. Existem inúmeras técnicas cujo objetivo é levar a meditação, que se trata de um momento quando a Alma intelectiva transcende o reino da mentação e penetra nas profundezas da Realidade. Sentar-se por alguns minutos colocando em prática alguma técnica meditativa não significa estar meditando de verdade. As técnicas per si são ótimas ferramentas terapêuticas, pois o seu exercício organiza as forças da mente e equilibra as funções da Alma, colocando o Logoi no comando das Almas animal e emocional,[3] mas ainda sim não se trata da experiência da meditação. É só o tempo, disciplina e prática que poderão levar qualquer filósofo do exercício meditativo a meditação profunda.

Essa disciplina como estudamos no texto A Purificação Filosófica, proporciona o ambiente ideal para o desenvolvimento interior, regrado a purificações, orações, teose e henosis a Alma intelectiva encontra caminho seguro a seu pleno desenvolvimento. Um exercício meditativo fundamental ao desenvolvimento filosófico é um tipo de visualização onde convoca-se através da imaginação os caminhos que levaram um filósofo as suas conclusões. Espera-se que após um tempo de treinamento acessando a fonte da experiência filosófica de muitos filósofos, cada um esteja preparado para acessar a filosofia de sua própria Alma.

O êxtase místico alcançado por meio de orações e invocações é um poderoso acesso a experiência filosófica verdadeira. Na teurgia, orações, hinos e encantamentos são indistintos e eles contêm os nomes bárbaros em sequências de vogais. Quando entoados repetidamente pelo filósofo, eles proporcionam um êxtase místico que pode se revelar em visões ou profecias. Jâmblico dizia que o êxtase místico produzido por um rito teúrgico complementa e vai além da experiência filosófica obtida por meio da meditação.[4]

Na teurgia um símbolo é um portal de acesso direto e capaz de estabelecer uma conexão inefável com a Realidade transcendente por ele representado e essa é a mecânica do talismã.[5] Um talismã no contexto da teurgia trata-se de uma conexão ontológica com aquilo que ele representa, uma conceituação distinta da concepção moderna na qual o talismã é apenas uma representação metafórica daquilo que se pretende representar. Um símbolo (sunthāmata) na teurgia pode ser uma pedra, ervas, ossos, incenso, um encantamento, hino, música, ritual, texto sagrado, oração ou qualquer outro objeto que esteja conectado a uma deidade por simpatia e em amor.[6] Os nomes bárbaros ou voces magicae são poderosos encantamentos considerados um símbolo do divino transcendente na teurgia. Eles são considerados nomes inefáveis ininteligíveis e inexprimíveis no contexto ritual ou inscritos em estatuetas e outros aparatos ritualísticos como talismãs.[7] Jâmblico explica que os nomes bárbaros são nomes secretos dos deuses e por isso eles operam em um nível de realidade supraracional. Alguns exemplos de orações teúrgicas podem ser encontrados nas obras do filósofo neoplatônico Proclo, que habitualmente abria com uma oração como prefácio de suas obras principais. Por exemplo, no início de seu Comentário sobre Parmênides, a oração de Proclo invoca toda a hierarquia celeste, desde os deuses hiper-cósmicos até os anjos, daimones e heróis, solicitando auxílio apropriado de cada hierarquia divina para a recepção da divindade e visão mística de Platão.[8] No De Misteriis, uma das questões centrais levantadas por Porfírio diz respeito a execução e propósitos da oração teúrgica e da invocação religiosa:

Mas as invocações [...] são dirigidas aos deuses como se estivessem sujeitos à influência externa, de modo que não são apenas os daimones sujeitos, mas também os deuses.[9]

Porfírio parece estar apontando para uma crítica popular e contemporânea sobre orações e invocações na Antiguidade: isto é, se os deuses são imutáveis, eternos e não estão sujeitos a paixões, uma posição aceita pela maioria dos filósofos da Antiguidade, qual é o propósito das orações e invocações? Elas pretendem influenciar, compelir ou constringir os deuses? Ora, uma vez que era aceito por qualquer um com treinamento filosófico que Deus ou os deuses não estão sujeitos a paixões, e que a ordem cósmica é (inteiramente ou em grande parte) determinada como um produto da providência de Deus, tornou-se uma questão amplamente debatida se alguém poderia influenciar os deuses ou o curso dos eventos através de orações ou sacrifícios.

Jâmblico responde a este desafio de três maneiras: em primeiro lugar, através de uma discussão sobre o Um da Alma, que é o princípio divino da Alma humana, a semente ou Logoi do Nous plantado no homem. Em segundo lugar, através de uma discussão sobre a assimilação e a semelhança com a deidade, que Jâmblico considera ser o objetivo central do ritual e da invocação. Em terceiro lugar, através de uma discussão sobre a natureza e significado da providência divina, o amor divino e a vontade divina em conexão com o exercício de orações e invocações.

Falar destes três pontos iluminados por Jâmblico está além dos objetivos deste opúsculo de meditação, mas vamos tecer algumas linhas sobre o Um da Alma, que está intimamente relacionado ao papel da providência e da vontade divinas dentro do ritual teúrgico.

Em resposta às perguntas de Porfírio sobre o uso de invocações e se esse uso implica que os deuses estão sujeitos a influências externas, Jâmblico começa sua defesa da teurgia explicando como o ritual teúrgico opera:

Das operações de teurgia realizadas em qualquer ocasião, algumas têm uma causa que é secreta e superior a todas as explicações racionais, outras são como símbolos consagrados desde toda a eternidade aos seres superiores, outras preservam alguma outra imagem, mesmo como a natureza em seu papel generativo imprime [sobre coisas] formas visíveis a partir de razões-princípios invisíveis; outras ainda são realizadas em honra de seus assuntos, ou têm como objetivo algum tipo de assimilação ou estabelecimento de familiaridade.[10]

Embora as invocações religiosas possam parecer coercivas, Jâmblico afirma que o filósofo está sintonizando-se com os deuses, utilizando os símbolos que foram semeados em todo o cosmos pelos próprios deuses. Jâmblico também afirma que alguns ritos teúrgicos visam um tipo de assimilação ou estabelecimento de familiaridade com o divino. O que exatamente isso quer dizer? Mais a frente no De Mysteriis, Jâmblico enfatiza a inerente duplicidade dos rituais, que parece corresponder à dupla natureza da própria Alma humana:

Por um lado, [o ritual] é realizado por homens e, como tal, observa nossa posição natural no universo; mas, por outro lado, [o filósofo] controla os símbolos divinos e, em virtude deles, é elevado à união com os poderes superiores, e dirige-se harmoniosamente de acordo com sua dispensação, o que lhe permite apropriadamente assumir o manto dos deuses. É em virtude desta distinção, portanto, que a arte invoca naturalmente os poderes do universo como superiores, na medida em que o invocador é um homem, e ainda, por outro lado, dá-lhes ordens, uma vez que se investe, em virtude dos símbolos inefáveis, com o papel hierático dos deuses.[11]

Jâmblico afirma que, de uma perspectiva, os rituais teúrgicos são realizados por seres humanos. No entanto, todos os humanos carregam uma semente ou princípio divino dentro de suas Almas. Em seu Comentário sobre o Fedro, Jâmblico se refere a este princípio como o Um da Alma. Se valendo de símbolos divinos, como os nomes bárbaros usados nas invocações, o filósofo ativa este princípio divino da Alma, permitindo-lhe assumir o manto dos deuses e ascender aos reinos de luz e perfeição, ao invés de sugerir que os deuses descem. Assim, a vocalização ritual dos nomes bárbaros funciona como um poderoso ato teúrgico de fala que capacita o filósofo a assumir um papel divino ao ascender, por similaridade e assimilação, ao divino. Os nomes bárbaros, portanto, funcionam como palavras de passe dos mistérios que certificam a aptidão do filósofo a penetrar na Realidade e lá receber Gnose da experiência Filosófica. Quando o filósofo ora e invoca os deuses, ele é capaz fazê-lo por causa do princípio divino em sua Alma que tem o potencial de ser despertado e ativado de modo a tornar-se consciente das constantes iluminações dos deuses. O daimon pessoal, por exemplo, que está em constante contato com este princípio divino da Alma, se aproxima do filósofo em momentos de orações e invocações, quando esse princípio divino é ativado, possibilitando receber suas instruções por meio da intuição, através de visões etc.


NOTAS:

[1] Com a palavra filósofo no Colegiado da Luz Hermética nós entendemos um amante da sabedoria que se aproxima de seu objeto de desejo através do aperfeiçoamento da Alma Intelectual (meditação), o aperfeiçoamento da Alma Emocional através da devoção e piedade aos deuses, virtudes, heróis e daimones (teurgia) e o aperfeiçoamento da Alma Animal através da disciplina de um estilo de vida filosófico.

[2] Os cursos de filosofia disponíveis nas academias brasileiras têm se limitado a ministrar aulas de pesquisa histórico-filológica e hermenêutica. Essas duas matérias são importantes para uma compreensão da tradição filosófica e para interpretação dos temas fundamentais da filosofia. No entanto, essas duas matérias, filologia e hermenêutica, são membros fundamentais que fazem parte do método filosófico, composto de sete matérias importante para formação filosófica. São elas: Anamnese, meditação, exame dialético, filologia, hermenêutica, exame da consciência e técnica expressiva. Veja Olavo de Carvalho, A Filosofia & seu Inverso (p. 133). No método filosófico adotado no Colegiado da Luz Hermética se inclui a matéria teurgia.

[3] Para uma introdução sobre a Alma humana, suas partes e relações, veja Lição 2.1: Teurgia & a Arte do Sacerdócio Magístico.

[4] Jâmblico, De Mysteriis, 7, 35-39.

[5] Jâmblico, De Mysteriis, 1, 21; 138, 1-5; 210, 11.

[6] Jâmblico, De Mysteriis, 5, 23.

[7] Jâmblico, De Mysteriis, 7, 4-5; 8, 5.

[8] Nos seus comentários sobre a vida de Pitágoras, Jâmblico diz que a oração propicia a graça dos deuses.

[9] Jâmblico, De Mysteriis, 1, 12.

[10] Jâmblico, De Mysteriis, 1, 11.

[11] Jâmblico, De Mysteriis, 4, 2.

O Uno na Matéria

No Séc. III d.C. a religião pagã de Roma, que incluía um complexo conjunto de práticas espirituais tradicionais e regionais, estrangeiras e inovadoras, encontrava-se hesitante diante dos Mistérios apresentados pelo Cristianismo. Na medida em que as práticas espirituais pagãs começaram a perder sua força e os templos dedicados aos deuses começaram a ficar vazios, houve um emergente movimento filosófico que começou a se organizar para oferecer salvação a Alma, mas completamente a parte do espírito religioso cultivado pela cristandade. Este movimento filosófico foi o Neoplatonismo.

Como vimos anteriormente, o neoplatonismo foi um movimento liderado por muitos filósofos que não concordavam sobre todos os pontos. E esse foi o motivo pelo qual o Cristianismo triunfou, pois onde o Neoplatonismo oferecia uma diversidade de ideias, conceitos e práticas místicas e mágicas, o Cristianismo era mais simples em teoria e no exercício. Qualquer teólogo dirá que a fé, doutrina e filosofia da cristandade não é fácil ou simples. Mas embora isso seja correto, toda sua complexidade se desenvolveu nos embates filosóficos traçados entre os filósofos e sacerdotes neoplatônicos e os primeiros teólogos do Cristianismo. Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) foi um dos primeiros teólogos a utilizar os argumentos da Filosofia contra os neoplatonicos.[1]

Pela grande quantidade de filósofos que compunham o Neoplatonismo, muitas eram as questões de relevância levantadas. E muito embora o Cristianismo procurasse respostas simples para essas questões que não atendiam aos filósofos, elas atendiam a uma grande massa que não estava interessada em questões como essas. Dentre as questões mais importantes, uma destaca-se: o que existe?

O processo pelo qual a matéria existe foi um tema amplamente debatido pelos neoplatônicos da Antiguidade. O estudo sobre essa matéria tem várias camadas. Nós vamos trabalhar a camada mais superficial nestas primeiras Lições por razões práticas, apenas para tornar a teurgia um exercício mais prático. Na Lição 7 iremos nos debruçar mais profundamente sobre o tema da matéria.

Tente imaginar a matéria sem nenhum tipo de qualidade, um objeto livre de adjetivos que possam descrevê-lo, livre de substantivos para classificá-lo. No fim você chegará a um conceito que os filósofos chamaram de hylé, uma palavra grega para matéria, floresta ou mata, madeira ou viga, estrutura. Imagine argila. Considere que esta argila não possui qualidades. Se nós lhe impusermos qualquer qualidade, ela se tornará alguma coisa. Se dermos a ela forma e cor, ela pode se tornar uma faca, uma caneca, um grampeador. Se adicionarmos a ela propriedades químicas, ela pode se tornar nitrogênio, vapor de água ou xênon. E com a ciência que temos hoje, podemos quebrá-la em elétrons, prótons etc. Seja como for, para transformar essa matéria em alguma coisa, é preciso impor sobre ela ideias, características, qualidades.

Agora, para que essa criação da matéria funcione, nós precisamos transformar ideias que não têm forma ou existência temporal e espacial em matéria condensada no tempo e no espaço. Primeiro nós precisamos dar a ela um início, pois tudo o que existe está situado dentro do tempo, quer dizer, deve existir no tempo. Segundo, nós precisamos dotar-lhe de localização, pois tudo o que existe está em algum lugar. Portanto, duas coisas existem entre o Mundo das Ideias e o Mundo da Matéria: tempo e espaço.

É lógico que podemos constituir uma cadeia que nos defina o que vem antes da matéria, traçando sua procedência, mas antes de fazê-lo, devemos definir o que vem antes. Se o tempo é algo que existe antes da matéria, então algumas coisas também existirão antes do tempo, dessa maneira, o antes que queremos sondar não pode ser antes dentro do tempo. Ao invés disso, pense no antes como uma estrutura ordenada: toda estrutura é construída de uma vez só, mas as vigas vêm antes das paredes e as paredes vêm antes do telhado. Se nós retirarmos o telhado, as paredes não caem, mas se nós tirarmos as paredes, o telhado desaba. Assim, podemos dizer que uma coisa vem antes da outra ou nos termos da cosmologia neoplatônica, uma emanação depende – ou é dependente – da outra, conectadas em uma cadeia.

Uma vez que nós temos tempo e espaço, podemos começar a falar de qualidades. Por exemplo, algo pode ser da cor vermelha, brilhante, grande ou doce. Podemos inserir quantidade: três, quatro, cinco, seis etc. Nós não veremos, dessa maneira, número ou qualidade separados da matéria. Ou seja, nós não podemos ver alguma coisa vermelha sem que ela seja vermelha, mesmo que seja apenas um raio de luz. Nós nunca veremos três sem que alguma coisa não seja três. Mas nós podemos abstrair a ideia da cor vermelha e do número três de algum objeto, isso significa que a ideia vem antes do objeto. Assim, a ideia existe antes da matéria, que apenas a reflete.

Assim, tempo e espaço, qualidade e quantidade – as ideias sobre as coisas – existem antes da matéria e esta depende das ideias. Remova o tempo e o espaço, a qualidade e a quantidade, e você notará que a matéria não pode existir como a experimentamos. Tempo, espaço, qualidade e quantidade são ideias e como tal na nossa experiência, existem apenas na consciência. No entanto, nossa experiência da consciência é material, quer dizer, é algo que experimentamos dentro do tempo, assim, deve haver algum tipo de consciência fora do tempo e anterior a ele, onde as ideias fora do tempo existem. Essa outra consciência é chamada pelos neoplatônicos de Nous e a parte dele onde as ideias de tempo, espaço, qualidade e quantidade existem é chamada de Psiché.[2] 

Inúmeros neoplatônicos chegaram a conclusões cosmológicas distintas. No curso de nossas lições, principalmente as Lições 6, 7, 8 e 9, nós iremos nos debruçar sobre a cosmologia e a interpretação da Alma na visão de Jâmblico. Mas o objetivo da Lição 2 que agora estamos estudando é procurar simplificar ao máximo a interpretação cosmológica de Jâmblico para tornar os exercícios espirituais e a prática dos rituais mais fáceis de serem compreendidos e então executados. Vamos começar assim:

Existe uma ideia no nous, podemos dizer, E = mc2. Essa ideia existe a parte da mente humana, que pode captá-la ou não. No entanto, a mente humana pode captá-la, mas aqui é necessário compreender que nós simplesmente não recebemos mensagens e atuamos como macacos autômatos. Nós pensamos e pensamos pensamentos intemporais. Nós reconhecemos a verdade intemporal destes pensamentos, embora não sejamos intemporais. Como explicar este paradoxo?

O Hermetismo, um movimento esotérico que nasceu da confluência entre as culturas grega e egípcia, tenta explicar este paradoxo com argumentos obscuros a maioria das pessoas: assim como é acima é abaixo e assim como é abaixo é acima. Nossa mente, nossa consciência, reflete a realidade do cosmos. Assim podemos modificar o diagrama acima para:

Nossa psiché é a Alma, recebendo – ou se alimentando – das percepções que vêm do corpo (hylé) e as percepções que vêm da mente (nous). Dessa maneira, a Alma humana se alimenta das percepções sensoriais de hylé e dos fantasmas do nous, alguns deles produzidos pela memória e outros pelo próprio nous. Estes fantasmas são imagens que se precipitam na tela da mente, impressões sensoriais não recebidas pelos sentidos. Se eu pedir para que você visualize um gato em sua mente ou imagine o cheiro de uma rosa ou o som de uma onda estalando nas escarpas de um rochedo a beira mar, você produzirá fantasmas sensoriais. De fato, nós construímos estes fantasmas quando vemos, cheiramos, tocamos, degustamos ou sentimos algo. Não percebemos a matéria como ela é, mas sim os fantasmas que construímos na mente sobre as experiências sensoriais. É por isso que memórias trazidas a tona podem mexer tanto conosco: elas são fantasmas que criamos a partir das experiências sensoriais. No curso de nossos estudos, você tomará conhecimento que estes fantasmas são entidades, daimones com os quais deverá aprender a lidar.

Os fantasmas também podem ser produzidos – ou virem diretamente – pelo nous. Nosso nous é a Mente, não o construto pensante, mas a mente que pode produzir os pensamentos da eternidade, intemporais. Vamos ver como:

Visualize um ponto (pausa). Agora mova este ponto para qualquer direção a qualquer distância, traçando uma linha (pausa). Agora, mova essa linha perpendicularmente para baixo a 90° (pausa). Repita o processo para o outro lado na intenção de formar um quadrado na tela da mente (pausa). Agora, movimente este quadrado perpendicularmente para fora do plano dele, de forma que ele se transforme em um cubo (pausa). Agora mova esse cubo novamente a 90° perpendicularmente até que ele forme um hipercubo (pausa). Este hipercubo é um objeto que não existe no mundo e com a devida prática, ele pode ser visualizado com facilidade pela mente. Essa imagem não existe na matéria, mas somente no reino do nous como uma ideia e é possível ter acesso a ela através da mente, construindo a partir desse processo um fantasma.


Exercício Espiritual: Contemplando a Matéria

Este exercício espiritual é uma contemplação da matéria. A intenção é, com a prática, que você possa se tornar consciente de como as forças espirituais agem sobre a matéria. Para isso, você deverá experimentar a matéria em unidade com ela. Embora seja um exercício simples, ele servirá como treinamento para outros procedimentos teúrgicos como colocar o veículo pneumático de um deus dentro de uma estatueta.

Passo 1: Sente-se de maneira confortável em um lugar onde não possa ser incomodado. Para esse exercício espiritual, escolha um objeto para contemplar. Pode ser um objeto sagrado, uma pedra ou qualquer outra coisa.

Passo 2: Analise todas as qualidades do objeto escolhido. Comece descrevendo o objeto através de adjetivos ou substantivos, como se estivesse o descrevendo para outra pessoa. Descreva o objeto detalhadamente e se possível, coloque os detalhes em uma folha de papel ou seu diário mágico. Com o tempo não será mais necessário fazer anotações, pois com treino sua mente conseguirá categorizar todas as qualidades do objeto, incluindo os fantasmas que ele invoca: visuais, táteis etc.

Passo 3: Agora deixe o objeto de lado. Leia em suas anotações ou traga a sua memória as características do objeto e construa em sua mente um fantasma dele. Procure visualizar com riqueza de detalhes cada característica do objeto (pausa).

Com o fantasma do objeto nítido na tela de sua mente, procure descaracterizá-lo. Remova dele o seu cheiro. Em seguida remova a sua cor. Remova dele a sua textura. Continue a descaracterizar o fantasma de suas qualidades incidentais (pausa).

Passo 4: Após descaracterizar o fantasma de suas qualidades incidentais, procure descaracterizá-lo de suas qualidades essenciais. Mas você não pode se enganar. Quando retirar o fantasma sua cor, não o visualize branco ou com outra cor. O visualize sem cor, pois a cor como qualidade já não mais o caracteriza. Em outras palavras, não substitua uma cor por outra. As qualidades devem ser removidas, não substituídas.

Procure descaracterizar o fantasma até que ele já não tenha nenhuma qualidade. Isso é muito difícil e o sucesso, quando ele existe, só ocorre após anos de treinamento, pois o que permanece sem qualidade é matéria pura, a hylé sem nenhuma impressão do nous. Trata-se apenas de matéria, receptiva e maleável.

Ao praticar esse exercício espiritual, você sentirá a cada investida que a experiência sempre deixa no ar àquela sensação de que alguma coisa resta sob qualquer – e total – descaracterização. Algo tênue, meramente existente, que está ali, não se sabe onde ou como. Mas observe que tudo àquilo que nós chamamos de existente, são fantasmas que criamos em nossa mente em detrimento das experiências com os sentidos e órgãos dos sentidos. Quando você passa perto de uma pedra e a chuta, existe uma sensação e uma experiência é produzida a partir disso. No entanto, isso não significa, por exemplo, que a pedra é pesada, pois essa concepção é um fantasma da mente.


Exercício Espiritual: Contemplando o Uno

Este exercício espiritual complementa o anterior, onde nós procuramos contemplar a natureza da matéria através de nossa imaginação e visualização, descobrindo através disso que, a parte de nossos sentidos as caracterizações que a experiência deles constrói na mente, a matéria é uma névoa de possibilidades. No presente exercício nós procuraremos contemplar o Uno. Embora simples em estrutura, não se trata de um exercício fácil e ele deve ser praticado com regularidade, anos a fio e seu aperfeiçoamento um requerimento que se exige para a prática da teurgia, cuja meta é a henosis.

É possível para nós experienciarmos o Uno ou a Matéria porque existimos em cada um dos níveis da existência: nós somos corpo, mente e Alma e como tal pertencemos ao Uno. Aprenda essa lição essencial da teurgia: pelo fato da Alma poder se alimentar na medida em que penetra os vários níveis de existência, dos reinos inferiores as esferas superiores, ela se enriquece dos códigos de luz de todo o cosmos. Por isso é dito que, e nós vamos ver isso profundamente em outras lições, o teurgo apenas participa da teurgia que os deuses já empreendem. Ele não inicia ou finaliza um ritual de teurgia. O que ele faz é participar da teurgia dos deuses através dos rituais que ele executa. Esse é o verdadeiro sentido de participar da demiurgia do cosmos, um eterno continuum fora do tempo e espaço. Esse continuum é acessado através da henosis nos rituais de teurgia. Dessa maneira, a prática da teurgia alimenta a Alma com os códigos de luz do Uno na medida em que procuramos elevá-la até Ele.

Antes de começar seu exercício, reflita e contemple (lectio divina) a seguinte passagem do Corpus Hermeticim:

Faça-te crescer até corresponder à grandeza sem medida, por um salto que te libere de todo corpo; eleva-te acima de todo tempo, torna-te o Aíòn: então compreenderás Deus. Sabendo que não é impossível para ti, estima-o imortal e capaz de tudo compreender, toda arte, toda ciência, o caráter de todo ser vivente. Sobe acima de toda altura, desce mais que toda profundidade, reúna em ti as sensações de todo o criado, do fogo e da água, do seco e do úmido, imaginando que estás ao mesmo tempo na terra, no mar, no céu e que ainda não nasceste e que estás no ventre materno, que és adolescente, ancião, que estás morto e que estás além da morte. Se alcanças com o pensamento essas coisas ao mesmo tempo: tempo, lugar, substância, qualidade, quantidade, podes compreender Deus.[3]

Passo 1: Para realizar esse exercício, sente-se confortavelmente. Você pode empreendê-lo ao ar livre ou dentro de sua câmara de iniciação. Com o tempo e quando estiver familiarizado com o exercício, você poderá executá-lo até mesmo quando estiver fazendo outras tarefas.

Passo 2: Inicie algumas respirações profundas. Caso esteja sentado, procure manter suas costas eretas e o corpo imóvel, mas de maneira relaxada, sem provocar tensão no seu corpo.

Execute a respiração quadrada: inspire e conte até quatro; prenda respiração com pulmões cheios e conte até quatro; expire e conte até quatro; prenda a respiração com os pulmões vazios e conte até quatro. Faça quantos ciclos como este forem necessários até que sinta seu corpo e sua mente completamente relaxados.

A intenção desse passo 2 não é apenas relaxar o seu corpo e sua mente, mas induzir a mente a se tornar calma e serena diante das dificuldades. Para algumas pessoas, o simples fato de se sentar imóvel e praticar esse exercício de respiração é muito difícil. Você deve procurar vencer a tensão com relaxamento e a ansiedade com paciência.

Passo 3: Feche os olhos. Projete sua consciência para fora de si mesmo e veja o seu corpo sentado na cadeira, como se estivesse vendo um filme, como um espectador.

Passo 4: A cada expiração, procure se distanciar. Expire e se distancie de seu corpo na cadeira. Expire e se distancie do lugar onde está fazendo este exercício. Expire e se distancia da sua cidade. Expire e se distancie de seu estado. Expire e se distancie do Brasil. Expire e se distancie do Planeta Terra. Expire e se distancie de sua galáxia. Expire e se distancie de todo o Universo.

Continue esse exercício com calma. Não tenha pressa em se distanciar. Mantenha o foco na distância, mantendo firme sua concentração e visualização. Tenha paciência.

Nesse caminho, mantenha a visualização de todo o Universo e se detenha a observá-lo de longe, por alguns minutos. Você vê galáxias inteiras, centenas de sóis e planetas, estrelas e luas, pessoas, animais, lugares. Aonde você se encontra, é possível contemplar todo o Universo.

Passo 5: Mantendo todo o Universo em sua perspectiva, dissolva todos os seus limites. Faça com que sua estrutura entre em colapso e não mais existam diferenças entre pessoas e estrelas, galáxias e planetas (pausa).

Em seguida, dissolva até mesmo as bordas que separam o Universo de outros Universos.

Se você for capaz de produzir essa experiência, que pode levar algum tempo de treino e dedicação, terá lampejos do Uno.

Passo 6: Na teurgia, a jornada de retorno é muito importante. Com isso em mente, após passar pela experiência da contemplação do Uno, inicie um caminho de retorno a seu corpo físico. A cada inspiração procure retornar das bordas do Universo até a matéria de seu corpo físico. Inspire e se aproxime da galáxia. Inspire e se aproxime do Planeta Terra. Inspire e se aproxime do Brasil. Inspire e se aproxime de seu estado. Inspire e se aproxime de sua cidade. Inspire e se aproxime do local onde está executando o exercício. Inspire e retorne ao seu corpo físico.

Abra os olhos.

Novamente, não se apresse nessa etapa final. Mantenha a visualização e cultive a paciência.

Estes dois exercícios podem ser executados também dentro de um contexto ritualístico, entre um procedimento teúrgico e outro.


NOTAS:

[1] Veja Clemente de Alexandria, Exortação aos Gregos. Medievalia, 2013. Edição Bilíngue, português-grego.

[2] Às vezes Nous inferior.

[3] Hermes Trismegistos, Corpus Hermeticum: Discurso de Iniciação. Hemus, 2005.

A Hierarquia da Alma

Os ritos de teurgia refletem a ordem do cosmos e como tal eles têm um papel na cosmogênese, no entanto, como são as Almas encarnadas que executam esses rituais, suas características individuais influenciam significantemente a intensidade ou potencial teúrgico do ritual. Uma vez que existe uma miríade de Almas encarnadas distintas em característica, é difícil saber como elas, através dos rituais de teurgia, irão refletir a cosmogonia, a menos que compreendamos como Jâmblico concebia a diferença entre as características da Alma. Assim, ele classifica a Alma humana em três categorias, distinguindo seus propósitos ao encarnarem na matéria.

De acordo com Jâmblico o propósito da descida da Alma até a matéria é revelado por sua encarnação e isso determina o tipo de teurgia mais apropriada a ela. Seguindo os princípios da continuidade, filiação e a regra de que a Alma só pode se juntar ou se agregar a outras Almas pelas afinidades que elas têm em comum, cada Alma tem um tipo de ritual de teurgia que seja específico e mais apropriado a ela. Jâmblico explica todo o processo de descida da Alma até a matéria no seu De Anima, o qual devemos nos debruçar.

Sobre este tema, Jâmblico inicia seu discurso revisando as ideias de um filósofo platonista anterior, Lucius Calvenus Taurus, nascido por volta de 105 d.C. Taurus diz que o Demiurgo envia as Almas a terra para completar o cosmos[1] e, mais especificamente, revelar a vida dos deuses na vida sem defeitos das Almas.[2] Essa visão é consistente com as explicações de Jâmblico sobre a descida das Almas. Uma vez que as Almas encarnadas são a parte inferior de tipos superiores, elas são as ultimas mediadoras entre a imortalidade e a mortalidade do mundo. O propósito comum a descida de toda Alma e cosmogônico e revelatório, mas uma vez que as Almas foram semeadas nas fileiras de diferentes deuses, a natureza de sua manifestação encarnadas é diferente. Por outro lado, a encarnação da Alma na matéria é anatrópica, isso significa que cada Alma sofre um tipo de alienação, perdendo sua continuidade com os deuses. Dessa maneira, a Alma perde sua afiliação divina, assim podemos dizer, em sua jornada até a matéria. Neste caminho, ela precisa de uma correção, um ajustamento capaz de fazê-la recuperar sua progenitura divina ancestral e continuidade com os deuses. Por isso Jâmblico explica a descida da Alma na matéria como voluntária, mas também involuntária: De acordo com outra divisão, alguns modos de descida são concebidos como voluntários, seja quando a Alma decide governar as coisas materiais, ou quando ela é persuadida a fazê-lo por Tipos Superiores. Mas outras descidas são involuntárias, quando a Alma é forçadamente sugada a matéria.[3] As causas para estes diferentes tipos de descida são os distintos propósitos para encarnação.

Na medida em que existem inúmeros propósitos pelos quais a alma desce, isso cria diferenças na maneira de se descer. Pois se as almas descem para salvação, purificação e perfeição das coisas deste mundo, então elas simplesmente descem. Mas se as almas vêm ao corpo para exercitar e corrigir seus hábitos, a descida não é inteiramente livre de paixões e nem elas, em si mesmas, são completamente liberadas. E se as almas descem como se tivessem sido sugadas por punição e julgamento, então a descida é forçada.[4]

Contrariando a visão de Porfírio, Jâmblico não acredita que a apoteose da Alma resulta de sua fuga do cosmos. A Alma perfeita e purificada continua a descer, não para ser punida ou corrigir desequilíbrios físicos, mas para o benefício de outras Almas encarnadas na matéria, revelando a partir disso sua perfeição e a perfeição dos deuses.[5] Uma Alma purificada, no entanto, em sua descida não perde sua conexão com os seres divinos (ta ekei).[6] Olimpiodoro, o Jovem (495-570), um dos últimos pagãos a ensinar filosofia na escola de Alexandria, segue a mesma linha de raciocínio de Jâmblico: de fato, Platão não permitiu que as almas dos teurgos permanecessem sempre no mundo inteligível, mas mesmo descendo ao mundo da geração, a respeito do que diz o oráculo: «as ordens angelicais».[7]

Dillon sugere que o epíteto theios conferido pelos neoplatonistas a Platão e Pitágoras, depois ao próprio Jâmblico também, pode ser explicado em parte por essa doutrina da reencarnação: a crença de que seres angelicais tomam um corpo humano para salvar a humanidade. Essa Alma, na estima dos neoplatônicos, é chamada de theios.

Antes de analisarmos o impacto desta doutrina na visão de Jâmblico sobre a formulação dos rituais, nós precisamos nos debruçar sobre o aparente conflito na tradição platônica acerca da encarnação. Se uma Alma divina e purificada não perde o contato com os deuses, como Jâmblico sugere, ela seria poupada do trauma, no momento de seu nascimento na matéria, da anatropē, uma experiência descrita no Timeu. Mas este não é o ponto que Jâmblico quer ressaltar. Citando um estrangeiro em As Leis de Platão: O que sei é que nenhum ser vivo jamais nasce de posse dessa inteligência [nous] ou da quantidade de inteligência que deverá ter em sua idade adulta.[8] O contexto da discussão, portanto, é sobre os anos de infância de uma Alma purificada, se ajustando a um corpo físico na matéria. Isso levou Jâmblico a expor a doutrina da animação progressiva que ele trata no seu De Anima.[9]

Se anatropē é a experiência de cada Alma encarnada, então os rituais de teurgia servem até as Almas purificadas. Ainda, por causa de seu propósito elevado durante a descida, quando a Alma purificada entra na condição humana, ela nasce em uma família que seja preparada para lhe ensinar a pedagogia apropriada dos deuses.[10] Encarnada, a Alma continua anatrópica – identificada com o Ego apenas – mas no caso de uma Alma purificada, a inversão no processo de descida nunca se torna desviante.[11] Quer dizer, sua condição anatrópica não se torna habitual, fazendo com que ela ativamente busque por enantios: oposta a si mesmo e ao Todo. Caso contrário, seu anatropismo atuaria como um pivô através do qual a Alma poderia manifestar o princípio cosmogônico de philia,[12] juntando-se ao Todo.[13] E por mais que Jâmblico tenha se detido a resolver essa importante questão, é conclusivo que mesmo a Alma purificada, como consciência individual, é deficiente pelo simples fato de estar na condição humana. Ele diz: Mesmo a alma perfeita é imperfeita quando comparada a ação divina.[14] Por razões soteriológicas a Alma purificada encarna na matéria para experienciar sua condição anatrópica e para mediar o reino humano e o reino angélico.[15] Como os deuses liberados que vivem entre os deuses encósmicos e hipercósmicos, o teurgo vive entre o humano e o divino.[16]

A apoteose teúrgica não é um voo para os deuses. Na condição de encarnada na matéria, a experiência da Alma é anatrópica, permanecendo imersa no cosmos natural e na sociedade. Mas na medida em que a Alma encarnada na matéria se alimenta e se enriquece dos códigos de luz dos deuses, ela sustenta uma conexão direta com eles, invertendo seu anatropismo. Jâmblico diz que os deuses estão em toda parte,[17] mas eles somente podem ser recebidos em veículos apropriados a sua manifestação de luz, que tenham sido preparados através de um profundo processo de purificação.

Que nós não desdenhemos de dizer isso também, que frequentemente temos ocasiões para executar rituais por uma questão de necessidade corporal genuína aos Deuses que regem o corpo e seus bons Daimones.[18]

A reverência que os teurgos têm para com os deuses que regem a natureza física é uma expressão de sua confiança em philia, que trata-se de uma força que se estende da unidade dos deuses a pluralidade das formas na matéria. No entanto, para que a Alma tenha a experiência de philia, ela deve conhecer a estrutura do cosmos no qual ela está inserida, só assim ela poderá honrar e venerar seus deuses tutelares e a miríade de daimones os quais eles regem. Isso significa que para produzir um ritual que seja adequado a Alma, o teurgo deve saber ler a natureza de sua energeia, pois isso revela o modo como a Alma desceu até o mundo sensível e consequentemente, o propósito (thelos) pelo qual ela encarnou na matéria.

O propósito pelo qual a Alma encarna na matéria é revelado pela estrutura do corpo e o seu comportamento na vida: a energeia manifesta da Alma.[19] Distinguindo entre os três tipos diferentes de Alma ou seus três graus de manifestação, Jâmblico diz:

De acordo com outra divisão,[20] o grande rebanho[21] da humanidade está sujeito a natureza e é governado pelos poderes naturais, olhando para baixo e imerso na natureza.[22] [Este rebanho] cumpre a administração de seu destino, aceitando para si a ordem de eventos que levam ao cumprimento deste destino. Ele [o rebanho] faz uso do raciocínio prático todo o tempo, mas apenas sobre as coisas da natureza. Mas existe um pequeno número [de pessoas] que faz uso dos poderes da mente para superar a natureza, são liberados da natureza e levados ao separado e não misturado Nous, e de uma vez só se tornam superiores aos poderes da natureza. E ainda há outros que estão entre estes, alocados entre a natureza e o puro Nous. Alguns deles seguem ambos [i.e. o Nous separado e a natureza] perseguido uma vida que seja uma mistura dos dois, e ainda existem àqueles liberados da natureza inferior e caminham a frente em direção a coisas melhores.[23]


Assim, Jâmblico faz distinção entre três tipos de Alma:


O grande rebanho que segue a natureza e o destino.

Àqueles que se elevaram ao divino nous e estão acima da natureza e do destino.

Àqueles que estão entre a natureza e o divino nous.


Para cada tipo de Alma há um tipo distinto de adoração. Jâmblico continua:

Portanto, desde que essas distinções foram feitas, o que segue deve ser obvio. Almas governadas pela natureza do universo, levando a vida em acordo a sua natureza pessoal e usando os poderes da natureza, devem executar a adoração de maneira adaptada a sua natureza e das coisas corpóreas movidas pela natureza. Na sua adoração eles devem incluir locais [sagrados], estações, matéria e os poderes da matéria, os corpos, suas características e qualidades, movimentos e tudo o que segue estes movimentos, a mudança das coisas [no mundo] da geração, e com outras coisas associadas a essas nos seus atos de reverência aos Deuses, especialmente quando estão executando sacrifícios [aos Deuses].

Outras almas, vivendo de acordo com o Nous apenas e a vida do Nous, liberadas dos laços da natureza, devem ocupar-se em todas as partes da teurgia com as leis intelectuais e incorpóreas da arte hierática.

Outras almas, as que estão entre estas [acima], devem trabalhar diferentes partes da santidade de acordo com as diferenças de sua posição intermediária, seja participando de ambas as formas de adoração ritual, ou praticando-os separadamente, ou aceita ambos como a fundação para coisas mais honradas – pois sem elas o transcendente não pode ser alcançado.[24]

Essa classificação de Jâmblico está em acordo com a classificação tântrica dos três tipos de buscadores tântricos (sādaka tāntrika).

As Almas que seguem a natureza e o destino estão atadas, presas ou amarradas a matéria. Na cultura tântrica, este tipo de Alma é chamada de paśu, sādakas tāntrikas presos pela corda (paśa), com pouca ou quase nenhuma inclinação espiritual profunda, licenciosos e na maioria das vezes torpes e ignorantes (tamas). Escapar dessa condição de Alma, quer dizer, se libertar de paśa, significa transcender essa ignorância. Jâmblico diz que esse tipo de Alma em seu trabalho teúrgico deve incluir locais [sagrados], estações, matéria e os poderes da matéria, os corpos, suas características e qualidades, movimentos e tudo o que segue estes movimentos, a mudança das coisas [no mundo] da geração. Quer dizer, essa qualidade de Alma deve procurar por cultos populares como os grandes centros e instituições religiosas, participar de cerimônias coletivas, empreender peregrinações, executar adorações aos espíritos das estações. Na cultura tântrica, um paśu se dedica aos ritos e observâncias tradicionais hindus adaptados a sua casta, que inclui também peregrinações, rituais de adoração aos deuses e deusas e disciplinas diárias. Os teurgos neoplatônicos e os teurgos hindus têm ainda uma prática espiritual diária em comum: o sacrifício de fogo. Os teurgos helênicos neoplatônicos adoram diariamente a Deusa Héstia do fogo cerimonial; os sādakas tāntrikas realizam diariamente o homa, um sacrifício ritual ao fogo. Em ambas as práticas incluem-se libações, fumigações etc.

As Almas que estão em acordo com o Nous e vivem a vida do Nous são àquelas purificadas que conseguiram superar os laços que os prendem a matéria e alcançar morada nos planos de luz e perfeição onde habita a Inteligência ou Demiurgo. De outro modo, Almas purificadas também podem ser àquelas que perfeitas em sua luz, nunca desceram ao reino da geração, mas podem fazê-lo pelo bem e evolução da humanidade, como na doutrina do bodhisattva budista. Sua equivalência na cultura tântrica é divya, o sādaka tāntrika divino, puro e realizado (sattva) que transcendeu completamente os apetites da Alma animal. Jâmblico diz que esse tipo de Alma deve ocupar-se em todas as partes da teurgia com as leis intelectuais e incorpóreas da arte hierática. Esse trabalho envolve um alto nível de jñāna-yoga onde se busca o acesso ao plano das ideias noéticas e o Conhecimento de tipo superior (Gnose) através de práticas hieráticas místicas e mágicas. O divya em seu sādhana (prática espiritual) se dedica a imersões profundas nos cakras em um trabalho meditativo, além de se dedicar a um tipo refinado de homa onde realiza um exercício contemplativo.

As Almas que se encontram entre o reino da geração e o divino são àquelas que atadas a matéria, possuem inclinações espirituais, às vezes profundas ao ponto de libertarem-se das restritivas correntes da ignorância. Aqui se encontram a maioria dos buscadores e estudiosos, no meio do caminho entre o divino e o profano. Na cultura tântrica estes são os vīras e tamanho é seu prestígio que a eles são dados títulos diversos como siddha (perfeito) ou kaula (centrado). Esses títulos referem-se a natureza perigosa de suas práticas. Eles são àqueles que verdadeiramente andam sobre o fio da navalha, cavalgam tigres e domam leões pela juba, impetuosos (rajas). São virtuosos em sabedoria, prudência e coragem, senhores de si mesmos (sveccacarin). Jâmblico diz que esse tipo de Alma deve trabalhar diferentes partes da santidade de acordo com as diferenças de sua posição intermediária, seja participando de ambas as formas de adoração ritual, ou praticando-os separadamente. Isso significa que eles procuram um estilo de vida moralmente saudável, executam a teurgia participando de centros religiosos, suas comemorações e rituais, mas também a executam particularmente no ambiente familiar. Cuidam para que suas ações sejam virtuosas e éticas em acordo com sua prática mística e filosófica. Na cultura tântrica, o vīra também pratica as observâncias e a liturgia tradicional, mas também se lança a práticas mais perigosas como o ritual pañca-makāra-tattva. É possível, portanto, traçar conexões entre a teurgia neoplatônica de Jâmblico e a teurgia hindu dos tāntrikas.

Os objetos sacrificados aos deuses, segundo Jâmblico, têm afinidades distintas com eles. Ele diz: Quando nós adoramos os Deuses que regem a alma e a natureza, não está fora do lugar oferecer-lhes poderes da natureza e nem é desprezível consagrar a eles corpos que estejam sobre a régia da natureza, pois todos os trabalhos da natureza servem aos Deuses e contribuem para seu governo.[25] Para os deuses que presidem locais sagrados, as coisas encontradas e produzidas nestes locais servem como sacrifícios apropriados.[26] Jâmblico diz: Sempre, para um criador sua obra é agradável, e àqueles seres que são primariamente a causa para produção de certas coisas, são elas primariamente queridas por eles.[27] Essas criações, Jâmblico diz, podem ser animais (zōa tina), plantas (phuta)[28] ou outro material terrestre que contribua para demiurgia dos deuses. Essas criações unem Almas encarnadas com a philia universal. Essas criações, nas palavras de Jâmblico, preservam os poderes de comunicação entre os Deuses e os homens.[29]

As criações materiais são os elementos apropriados nos sacrifícios dos ritos teúrgicos das Almas presas a matéria e a natureza. Através da consagração desses elementos as Almas se alinham a demiurgia dos deuses diretamente a elas conectadas, quer dizer, os deuses materiais e deuses encósmicos. Todas as Almas encarnadas começam sua disciplina teúrgica de sacrifícios a estes deuses na intenção de estabelecerem fundações apropriadas à compreensão da adoração ritual e, segundo Jâmblico, os deuses materiais presidem estas oferendas.

De acordo com a arte dos sacerdotes é necessário iniciar os ritos sagrados com os Deuses materiais. Pois [do contrário] a ascensão aos Deuses imateriais não acontecerá. Os Deuses materiais, portanto, estão em comunicação com a matéria e como tal eles a presidem. Eles regem o fenômeno natural: divisão, colisão, impacto, reação, mudança, geração e corrupção de todos os corpos materiais.

Se qualquer um deseja adorar esses Deuses teurgicamente [e isso quer dizer], da maneira na qual eles naturalmente existem e foram distribuídos a reger, [o adorador] deveria render a eles adoração material. Pois neste caminho o teurgo é levado a completa familiaridade com estes Deuses e na adoração ele oferece aquilo que é apropriado a eles. Em sacrifícios, portanto, corpos mortos e coisas desprovidas de vida, o sangue animal, o consumo do sacrifício, suas diversas mudanças e destruição, e em resumo, o desfacelamento da matéria oferecida aos Deuses, é apropriado – não para os Deuses – mas com respeito a matéria sobre a qual eles presidem. Pois embora os Deuses sejam preeminentemente separados (chōristoi) da matéria, eles estão presentes nela pela virtude de seu poder imaterial, eles coexistem com ela.[30]

Em outra parte Jâmblico descreve os benefícios do sangue animal. No caso de sacrifícios expiatórios para aplacar a ira dos deuses,[31] a ira, ele diz, não vem dos deuses, mas das Almas afastando-se dos cuidados beneficentes deles.[32] O propósito do sacrifício ritual é redirecionar a atenção da Alma novamente aos deuses e a ordem superior. A expiação não afeta os deuses, mas a Alma, convertendo-as a ordem divina. Jâmblico diz: Se alguém acredita que desertando do cuidado guardião [dos deuses] leva a algum tipo de punição automática, o apelo aos Seres Superiores por meio do sacrifício serve para relembrá-lo novamente de seu cuidado beneficente, remove a privação [de sua presença] e é inteiramente puro e inflexível.[33] O sacrifício animal e a combustão de seu corpo na pira de fogo da deidade retrata como a Alma impura purifica-se na apoteose divina dos deuses. Jâmblico repreende Porfírio por ignorar o simbolismo teúrgico da dimensão espiritual do fogo:

Essa indagação revela [sua] ignorância concernente as oferendas do sacrifício por meio do fogo, pois é o grande poder do fogo que destrói, consome e assimila a matéria em si mesmo, sem ser ele assimilado pela matéria, elevando ao divino, transcendente, celestial e fogo imaterial a oferenda, ao invés de lançá-la novamente [ao reino da] geração.[34]

O poder do fogo para destruir e assimilar a matéria é uma antecipação ritual da Alma que é assimilada pelos deuses. Jâmblico diz:

Para os Seres Superiores, aqueles para quem o esfacelamento da matéria é querido, são impulsivos e nos tornam impassíveis. O que quer que exista dentro de nós é feito similar aos Deuses assim como o fogo assimila toda substância sólida e resistente a um corpo luminoso diluído. E por meio do sacrifício e do fogo sacrificial nós somos levados ao Fogo dos Deuses da maneira [como vemos] na ascensão do fogo ao Fogo invocado e na elaboração das coisas gravitantes e resistentes a natureza divina e celeste.[35]

Em efeito, o drama do sacrifício de sangue trata-se de um rito mnemônico para lembrar a Alma de sua prístina origem. Imagine como o som, o cheiro e a cor de um sacrifício animal, que implica na imolação (corte) e combustão de sua carne na pira de fogo, prende a atenção do teurgo. Para Jâmblico essa é uma absorção ritual fundamental requerida para despertar a sunthēma divina da Alma: o fogo do sacrifício imita o Fogo Divino,[36] que liberta[37] a Alma dos laços que a prendem na matéria, sendo ela assimilada[38] pelos deuses, fazendo com que o teurgo participe de sua philia.[39]

A oferenda e sua combustão no fogo trata-se do próprio sacrifício da Alma, pois para que o teurgo consiga criar uma simpatia ou familiaridade (oikeōsis) com os deuses cujos sacrifícios são dedicados, ele deve se tornar a oferenda e o sacrifício. Sua comunhão com os deuses depende de sua conaturalidade (sungeneia) com os elementos que compõem a oferenda e o sacrifício. Esse tipo de ritual de teurgia material deve ser executado para o consumo da vida e do sangue, a pena de dor e sofrimento na matéria, pelo grande rebanho, quer dizer, as Almas encarnadas por punição (dikē) e julgamento (krisis).[40] Essa punição ritual afeta diretamente a condição anatrópica da Alma. As Almas que encarnam na matéria para corrigir e exercitar seus hábitos e suas ações, ao participarem deste ritual de sacrifício aos deuses aceleram seu despertar e desenvolvimento espiritual.[41] Jâmblico diz: A lei dos sacrifícios para este uso, portanto, será necessariamente formada por corpo, alguns sacrifícios cortarão o que é supérfluo em nossas almas, outros nos preencherão na medida de nossas deficiências, e outros nos levarão a uma ordem e simetria daquilo que em nós é ofensivamente desordenado.[42] Outras operações sagradas[43] preenchem a necessidades humanas como saúde e bem-estar do corpo[44] e elas são oferecidas aos deuses materiais que presidem estes sacrifícios.

Uma vez que as Almas oferecem aos deuses aquilo que é conatural a eles, Jâmblico ensina que existe uma forma de adoração completamente imaterial, dedicada aos deuses imateriais: Sempre que assumimos a honra desses deuses que são uniformes em si mesmos, é apropriado celebrá-los com honras liberadas. Presentes intelectuais e coisas da vida incorpórea são adequados a estes seres. Tanto quanto virtude e sabedoria que a alma tenha oferecido, toda perfeição e todas as bondades que existem na alma.[45] Teurgos que praticam este tipo de rito são inteiramente purificados e isso é bem raro.[46] Jâmblico diz que participar dos deuses dessa forma é a mais rara das coisas feitas.[47] Infelizmente há raríssimos relatos sobre a teurgia praticada por este tipo de Alma nos escritos de Jâmblico. Ele acreditava que a discussão aberta sobre esse tipo de ritual teúrgico não era adequada a iniciantes e até mesmo praticantes já com alguma experiência. Muito provavelmente este tipo de ritual é adequado as Almas purificadas que encarnam na matéria para o bem da evolução da humanidade.[48] Uma vez que estas Almas já estão em perfeita harmonia com os deuses que regem o cosmos material, elas não têm necessidade para realizar adorações materiais. Mesmo assim, por causa da fraqueza da Alma humana, a perfeição noética de uma Alma purificada não se manifesta imediatamente e adorações materiais serão necessárias nesse período de maturação. Tais práticas estabelecem as fundações adequadas (hupothesis) para adoração imaterial dos deuses hipercósmicos.[49]

Aos Deuses Intermediários (Hiperencósmicos) que são tanto Hipercósmicos quanto Encósmicos, dois tipos de adoração são apropriados. Jâmblico diz: Em verdade, para os Deuses Intermediários, que são os líderes das bênçãos intermediárias, às vezes dois tipos de oferendas são adaptadas, às vezes um presente comum a ambos, ou presentes que são purgados de seus elementos inferiores e conectados a seus elementos superiores, ou geralmente, uma adoração que ofereça um meio termo entre eles.[50]

Jâmblico determina uma antropologia tripartida para três propósitos (telē) distintos para as Almas encarnadas:


Salvar, purificar e proteger o cosmos.

Corrigir e exercitar o caráter.

Punição e julgamento.


Essa divisão está em sincronia com a teologia tripartida de Jâmblico que distingue os deuses em:


Hipercósmicos.

Hiperencósmicos.

Encósmicos.


Para cada classe de deuses há um tipo adequado de teurgia, envolvendo os elementos por eles regidos. Os Deuses Encósmicos regem a ordem material e a eles são ofertados sacrifícios materiais. Os deuses Hipercósmicos recebem oferendas noéticas e os Deuses Hiperencósmicos recebem ambos os sacrifícios, noéticos e materiais. Essa divisão de deuses em acordo a sua processão cosmogônica, portanto, delineia adorações distintas, da mesma maneira que os três tipos de Almas humanas executam distintas formas de teurgia. O grande rebanho adora os deuses materiais (Encósmicos) com oferendas materiais, as Almas purificadas adoram os deuses imateriais (Hipercósmicos) com sacrifícios noéticos, e as Almas entre o profano e o sagrado adoram os deuses intermediários (Hiperencósmicos) com sacrifícios e oferendas materiais e noéticas.


NOTAS:

[1] Stobaeus: Anthologium, Ed. Wachsmuth e O. Hence), I, 378, 25-28.

[2] Ibidem, I, 379, 2-6.

[3] Ibidem, I, 379, 6-10.

[4] Ibidem, I, 380, 6-14.

[5] Existe aqui nesta doutrina de Jâmblico uma equivalência com a doutrina budista do bodhisattva. Neste caso, a Alma purificada do teurgo desce a matéria pelo mesmo motivo que um bodhisattva também desce, para auxiliar a humanidade. Veja John M. Dillon, Iamblichi Chalcidensis, p. 243.

[6] John M. Dillon, Iamblichi Chalcidensis, p. 243.

[7] Olimpiodoro, Olympiorori Philosophi in Platonis Phaedonem Commentaria, 64, 2-5. Ed. W. Norvin.

[8] Platão, As Leis, 672b.

[9] Stobaeus: Anthologium, Ed. Wachsmuth e O. Hence), I, 381, 7-13.

[10] Uma família desta natureza foi àquela de Juliano, o Caldeu, que orou ao Demiurgo para que lhe provesse com um filho que tivesse a Alma de um Arcanjo. E é dito que o filho de Juliano, o Caldeu e que se chamava Juliano, o Teurgo, recebeu a Alma de Platão. Veja Hans Lewy, Chaldean Oracles and Theurgy, p; 223-4.

[11] Quer dizer, quando heteros assume permanentemente a função de autos.

[12] Amor no sentido fraternal.

[13] Esse é o principio fundamental que levou ao desenvolvimento do que se conveniou chamar de círculo mágico na Tradição Hermética de Mistérios.

[14] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 149, 11-12.

[15] Essa doutrina bodhisattva de Jâmblico é antagônica com a descida da Alma no Fedro, mas está em acordo com o filósofo retornando a caverna em A República. Veja Iamblichi Chalcidensis, p. 243.

[16] Jâmblico descreve essa vida dupla dos teurgos em De Mysteriis, 184, 1-13; 246, 16; 247, 5.

[17] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 27, 8-10; 30, 1-3.

[18] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 221, 1-4.

[19] Propósito (tele), modo (tropoi) e corpo (sōmata), funcionam como o complexo ousia-dumanis-energeia que Jâmblico utiliza para distinguir entidades incorpóreas (veja Lição 8.2). Em todo caso, o corpo, quer dizer, a energeia viva da Alma, revela o tropos de sua descida a matéria (assim como a energeia revela sua dumanis) e isso permite ao teurgo identificar o thelos da Alma.

[20] Jâmblico distingue duas maneiras de adoração apropriadas a Alma em condições distintas: quando ela é puramente noética com os deuses inteligíveis e quando ela está encarnada na matéria.

[21] A frase que Jâmblico utiliza aqui é hē pollē agelē e muito provavelmente foi tirada dos Oráculos Caldeus, fragmentos 107, 153 e 198.

[22] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 21, 6-7 onde a Alma é descrita como inclinada aos fenômenos da natureza. Veja também Jâmblico, De Communi Mathematica Scientia, 18, 9-13, onde a Alma encarnada é descrita como tendo caído fora da ordem natural do cosmos.

[23] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 223, 10; 224, 6.

[24] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 224, 7-225; 10.

[25] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 226, 3-9.

[26] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 234, 1-2.

[27] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 235, 3-5.

[28] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 235, 6.

[29] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 235, 11-12.

[30] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 217, 8; 218, 12.

[31] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 43, 2.

[32] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 43, 4-5. Quer dizer, mantendo-se em condição anatrópica em relação a sua realidade prístina superior.

[33] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 44, 5-10.

[34] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 214, 5-10.

[35] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 214, 17; 215, 7.

[36] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 215, 19.

[37] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 216, 5.

[38] Ibidem.

[39] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 216, 6.

[40] Stobaeus: Anthologium, I, 380, 12-13.

[41] Stobaeus: Anthologium, I, 380, 10.

[42] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 221, 13-17.

[43] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 221, 19.

[44] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 222, 1-2.

[45] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 226, 9-14.

[46] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 219, 14-15.

[47] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 228, 2-3.

[48] Stobaeus: Anthologium, I, 380, 8.

[49] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 225, 8-11.

[50] Veja Jâmblico, De Mysteriis, 226, 14-20.

A Filosofia Antiga

Desde a Antiguidade, o termo magia tem ganhado conotações pejorativas e tem sido associado a prestidigitação e trapaças de todos os tipos. Tanto mageia quanto goēteia eram sinônimos de feitiçaria, um tipo de prática mágico-cerimonial de caráter inferior devido às inclinações particulares de quem pratica, e não pelos métodos ou procedimentos que se realiza, muito embora esse também seja um tema deveras debatido. O Séc. III d.C. apresentou uma disputada questão na taxonomia e na definição de suas práticas e qualidade de ritual. Em meio a essa disputa, a teurgia neoplatônica também foi acusada ter equivalência com a prática da magia (goēteia, feitiçaria). Jâmblico, filósofo e teurgo, era um homem que combinava o refinamento e a profunda inquirição espiritual filosófica com a devoção e a teofania de um hierofante de mistérios. Ele se esforçou em demonstrar que a teurgia tratava-se de uma prática cerimonial de tipo superior, aliada a um estilo de vida filosófico. Jâmblico ensinava que a teurgia é o complemento religioso-cerimonial da filosofia, acreditando que somente a devoção inspirada poderia levar o filósofo do ver para o ser em um arrebatado estado de união com o divino (henosis).

Como veremos adiante, a filosofia antiga é um estilo de vida, uma maneira distinta de olhar a realidade. A teurgia, neste mesmo caminho, não difere da filosofia, antes disso, a complementa. É correto dizer que filosofia e teurgia são artes irmãs. Nos primeiros séculos da era cristã, principalmente entre os Sécs. III e IV onde esse embate crescia fervorosamente, o cristianismo se apresentava como uma alternativa filosófica, uma vez que orientava um estilo de vida sacramental em concordância com o Logos. Nesse processo, ele rejeitou e perseguiu os rivais da filosofia helênica que perseguiam os mesmos objetivos espirituais, mas com metodologias dialéticas e teúrgicas distintas. Porfírio, professor de Jâmblico, classificava os cristãos em dois grupos, os letrados e os iletrados. Os iletrados eram a maioria, os polloi kai alloi, os letrados eram a minoria, os hairetikoi. Estes poucos eram os gnósticos, àqueles que possuíam hairesis, uma firme e oposta doutrina filosófica.

Os gnósticos foram completamente exterminados pelos cristãos e a ekklesia, antes orientada pela philosophia verissima de Platão, agora orientava-se aos mistérios menores. A lógica e os aspectos psíquico-cosmológicos da filosofia foram aceitos, mas a espiritualidade pagã foi furiosamente sufocada. A teurgia e metafísica neoplatônicas de Jâmblico e Proclo transformaram-se na teologia mística de Pseudo Dionísio, mas a dimensão teúrgica do neoplatonismo foi demonizada e perseguida.

Uma vida filosófica é essencialmente mística. Um filósofo na Antiguidade era um místico. No entanto, o embate acalorado e por vezes deveras sangrento entre cristãos e pagãos também mudou completamente a orientação das academias de filosofia que por fim foram completamente fechadas e seus professores e alunos perseguidos. Houve nesse período um maciço ingresso no cristianismo, que se apoderava dos ideias filosóficos espirituais de imortalidade da filosofia, deixando apenas uma casca de discurso racional amorfo. O cristianismo se valeu dos exercícios espirituais da filosofia, renegando esta apenas a um conjunto de especulações. É essa filosofia desprovida de estilo de vida filosófico que chegou até nós nos dias de hoje em nossas universidades. A filosofia moderna é um fruto direto desta corrupção do neoplatonismo tardio e pagão em virtude da apropriação cristã de sua espiritualidade. A partir do Séc. IV d.C. a filosofia nunca mais seria a mesma. Ela daria lugar a especulação filosófica abstrata de uma atividade intelectual desprovida de identidade própria, perdendo completamente suas dimensões teológica, religiosa e teúrgica.

O resgate da filosofia antiga pode, dessa maneira, ser estabelecido através da prática da teurgia. A filosofia compreendida como um desenvolvimento da tradição órfica, pitagória e platônica, não se trata de uma explicação teórica da realidade, do mundo, mas antes disso, de um rito de renascimento, o que implica em transcender a finitude material. O objetivo de uma vida filosófica inclui a habilidade de viver bem no aqui e no agora, pois o pano de fundo noético de cada filósofo, quer dizer, o Uno inefável, está presente em toda parte. Nos termos da cultura egípcia, trata-se portanto de uma transição ao reino de Osíris (duat) ou corpo alquímico da deusa Nuit (o céu), às vezes representado como um templo na forma de vaca (a deusa Hathor). Para um filósofo, portanto, aprender a viver bem se trata de aprender a morrer e essa paideia (educação) filosófica é análoga a construção da tumba real, quer dizer, a maṇḍala teúrgica de palavras (hekau) e os espíritos hieróglifos animados (medu neter), a incorporação das Formas platônicas. Essa tumba filosófica é a própria cripta de iniciação do filósofo, onde ele passará pela transformação alquímica no templo de Osíris no duat. O termo grego filósofo tem equivalência com o termo egípcio mer rekh, que significa amante do conhecimento, que dizer, àquele que busca por uma teofania divina com os neteru (deuses) em henosis. Esse elemento teofânico dá acesso ao espírito da sabedoria, quando o deus Thoth é assentado na ponta da língua e a deusa Maat no santuário do coração. Como todo hierofante de mistérios egípcios, o filósofo busca a ressurreição no reino de Osíris-Rá. A revolução intelectual helênica despertada por Pitágoras e Platão modernizou e adaptou este conhecimento egípcio, transformando o antigo Faraó-Hórus, o theios aner, no Filósofo-Sacerdote platônico buscando união com os princípios elevados noéticos (neteru) adentrando a barca de Rá. O Atum-Rá egípcio equivale ao Intelecto Divino ou cosmos noético (kosmos noetos) de luz espiritual.