quarta-feira, 26 de junho de 2024

O que é a Tradição


O termo tradição foi profusamente usado anteriormente. É agora necessário defini-lo com tanta exatidão quanto possível de modo a evitar incompreensão sobre um conceito que reside no cerne da nossa preocupação para com o significado do sagrado na sua relação com o conhecimento. A utilização do termo tradição no sentido que lhe é conferido no presente estudo surgiu para a civilização Ocidental no momento da fase final da dessacralização do conhecimento e do mundo que rodeava o homem moderno. A redescoberta da tradição constituiu uma espécie de compensação cósmica, uma bênção do Empíreo Divino e da sua misericórdia que tornou possível, num momento em que tudo parecia perdido, a reafirmação da Verdade que constitui o próprio coração e essência da tradição. A formulação do ponto de vista tradicional foi uma resposta do Sagrado, que é simultaneamente o alfa e o ômega da existência humana, à elegíaca sentença do homem moderno perdido num mundo deposto do sagrado e, por conseguinte, deposto de significado.


“The First who comes Last”, a reafirmação da tradição nesta tarda hora da história da humanidade, tradição que é ela própria de carácter primordial e que possui continuidade ao longo dos tempos, tornou possível uma vez mais o acesso àquela Verdade segundo a qual os seres humanos viveram durante a grande parte – ou antes a quase totalidade – da sua história terrestre. Foi necessário que esta Verdade fosse novamente declarada e reformulada em nome da tradição, devido precisamente ao quase total eclipse e à perda daquela realidade que constituiu a matriz da vida da humanidade normal ao longo dos tempos. A utilização do termo e o recurso ao conceito da tradição tal como se efetiva no mundo contemporâneo são, de certa forma, uma anomalia tornada necessária pela anomalia em que consiste o mundo moderno.3


Várias línguas anteriores aos tempos modernos não utilizavam um termo que correspondesse exatamente ao da tradição já que a humanidade pré-moderna se caracterizava ela própria por aqueles que aceitavam o ponto de vista tradicional. O homem pré-moderno estava demasiado imbuído no mundo criado pela tradição para que tivesse a necessidade de ver este conceito definido de modo exclusivo. Este homem era como os peixinhos que, de acordo com a parábola Sufi, se aproximaram de sua mãe um dia pedindo que lhes fosse explicada a natureza da água de que tanto haviam ouvido falar, mas que jamais haviam visto ou lhes tinha sido definida e descrita. A mãe respondeu que se alegraria em revelar-lhes a natureza da água desde que primeiramente encontrassem algo que não fosse água. De igual modo, as humanidades normais viviam em mundos tão impregnados com aquilo a que agora chamamos de tradição que não reconheciam sentido em chamar tradição a um conceito isolado, tal como foi necessário definir e formular no mundo moderno. Os homens pré-modernos tinham uma percepção da revelação, da sabedoria, do sagrado e também conheciam os períodos de decadência das suas civilizações e da sua cultura, mas nunca tinham tido a experiência de um mundo totalmente secularizado e anti-tradicional que viesse a necessitar de uma definição e formulação da tradição, tal como foi o caso dos dias de hoje. Num certo sentido, a formulação do ponto de vista tradicional e a reafirmação da perspectiva tradicional total, a qual se equipara à recapitulação de todas as verdades manifestadas no atual ciclo da história da humanidade, não poderia senão surgir no crepúsculo da Idade Negra que marca de uma vez o fim e a véspera que precede um novo amanhecer de esplendor. Apenas o fim de um ciclo de manifestação torna possível a recapitulação da totalidade do ciclo e a criação de uma síntese que possa então servir como a semente para um novo ciclo.4


O conceito da tradição teve que ser evidenciado e os ensinamentos tradicionais expressos na sua totalidade; e é exatamente isto que tem acontecido durante esta última etapa da história da humanidade. Mas os escritos tradicionalistas estão longe de ser amplamente conhecidos no mundo moderno. Na realidade, tivessem-se tornado bem conhecidos os escritos daqueles que partilham o ponto de vista tradicional e quase não seria necessário redefinir, aqui e agora, o significado da tradição à qual tantas páginas, artigos e até mesmo livros se têm devotado.5 Um dos aspectos mais significativos da vida intelectual deste século, contudo, é precisamente o omissão deste ponto de vista em círculos cuja função oficial é a de cuidarem aspectos de ordem intelectual. Se esta omissão é deliberada ou acidental não é a nossa preocupação aqui. Seja qual for a causa, o resultado é que sessenta ou setenta anos depois do aparecimento no Ocidente de trabalhos com carácter tradicional, a tradição ainda é incompreendida em muitos círculos e é confundida com costume, hábito, padrões de pensamento herdados, entre outros. Daí a necessidade de aprofundar uma vez mais o seu significado, apesar de tudo o que já foi escrito sobre o assunto.


No que concerne a linguagens tradicionais, estas não possuem, pelas razões já mencionadas, um termo que corresponda exatamente à tradição. Existem termos fundamentais com o dharma Hindu e Budista, o al-dīn Islâmico, o Tao Taoísta, entre outros que estão inextricavelmente relacionados com o significado do termo tradição, mas que não são idênticos a este ainda que os mundos ou civilizações criados pelo Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Judaísmo, Cristandade, Islão, ou para este contexto por qualquer outra religião, sejam obviamente mundos tradicionais. Cada uma destas religiões é também o coração ou origem da tradição que prolonga os princípios da religião para domínios diferentes. Tradição também não significa exatamente traditio na forma em que é usado no Catolicismo, apesar de incluir a ideia da transmissão de uma doutrina e práticas de uma natureza inspirada e enfim revelada que são implicadas pelo termo traditio. Na realidade, a palavra tradição está etimologicamente relacionada com transmissão e, no âmbito do seu significado, contém a ideia de transmissão de conhecimento, práticas, técnicas, leis, formas, e muitos outros elementos de natureza oral e escrita. A tradição é como uma presença viva que deixa impressa a sua marca, mas que não é redutível a essa marca. Aquilo que transmite pode-se parecer com palavras escritas sobre pergaminho, mas pode também consistir em verdades gravadas nas almas dos homens, de uma forma tão subtil como o murmúrio ou mesmo o relance do olho através do qual certos conhecimentos são transmitidos.


A tradição utilizada no sentido técnico deste trabalho, tal como em todos os nossos outros escritos, designa verdades ou princípios de origem divina revelados ou desvendados à humanidade e, de facto, todo um sector cósmico por meio de várias figuras encaradas como mensageiros, profetas, avatares, o Logos ou outros agentes de transmissão, a par com todas as ramificações e aplicações destes princípios em domínios vários que incluem a lei e estrutura social, a arte, o simbolismo, as ciências, e abrange evidentemente o Conhecimento Supremo bem como os meios para a sua obtenção.


No seu sentido mais universal, tradição pode ser considerada como inclusa de princípios que ligam o homem ao Céu, e por conseguinte de religião, enquanto tomando um outro ponto de vista a religião pode ser considerada na sua essência como aqueles princípios que são revelados pelo Céu e que ligam o homem à sua Origem. Neste caso, tradição pode ser considerada num sentido mais restrito como sendo a aplicação destes princípios. A tradição implica verdades de um carácter supra individual enraizadas na natureza da realidade como tal, porquanto, conforme foi afirmado, “A tradição não é uma mitologia infantil e fora de moda, mas uma ciência terrivelmente real”.6 A tradição, tal como a religião, é de uma vez verdade e presença. Concerne o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Surge da Fonte da qual tudo se origina e para a qual tudo retorna. Por conseguinte, engloba todas as coisas tal como o “Respiro do Compassivo” que, de acordo com os Sufis, é precisamente a raiz da própria existência. A tradição está inextricavelmente relacionada com revelação e religião, com o sagrado, com a noção de ortodoxia, com autoridade, com a continuidade e regularidade da transmissão da verdade, com o exotérico e com o esotérico e bem assim com a vida espiritual, a ciência e as artes. As cores e nuances do seu significado tornam-se deveras clarificadas uma vez que a sua relação com cada um destes e de outros conceitos e categorias pertinentes é elucidada.


Para muitos dos que foram atraídos ao chamamento da tradição durante as parcas últimas décadas, o significado da tradição tornou-se relacionável acima de tudo com a sabedoria perene que reside no coração de cada religião e que não é outra que não a Sophia cuja posse foi considerada como o objetivo supremo da vida humana, no Ocidente bem como no Oriente, segundo a perspectiva sapiencial. Esta sabedoria eterna da qual a ideia da tradição não pode ser dissociada e que constitui um dos componentes principiais do conceito da tradição é nenhum outro que a sophia perennis da tradição Ocidental a que os Hindus chamam sanatāna dharma7 e os Muçulmanos al-ḥikmat al-khālidah (ou jāvīdān khirad em Persa)8.


Num certo sentido, sanatāna dharma ou sophia perennis estão relacionadas com a Tradição Primordial9 e, por conseguinte, com a Origem da existência humana. Mas esta visão não deve de modo algum desviar ou anular a autenticidade das últimas mensagens do Céu na forma das várias revelações, cada uma das quais começa com uma origem que é a Origem e sinaliza o começo de uma tradição que é de uma vez a Tradição Primordial e a sua adaptação a uma humidade particular, sendo esta adaptação a Possibilidade Divina manifestada no plano humano. A atracção do homem do Renascimento pela quimera das origens e a “Tradição Primordial” que levou Ficino a desprezar a tradução de Platão em favor do Corpus Hermeticum, que era então considerado como mais antigo e primordial, atracção esta que passou também a fazer parte da visão do mundo e do Zeitgeist do século dezenove10, provocou muita confusão em torno da questão do significado da “Tradição Primordial” na sua relação com as várias religiões. Cada tradição, e portanto Tradição, estão profundamente relacionadas com a sabedoria perene ou ‘Sophia’, não devendo esta ligação ser considerada como apenas temporal e nem como uma causa para a rejeição daquelas outras mensagens do Céu que constituem as diferentes religiões e que são, claramente, interiormente relacionadas com a Tradição Primordial sem que sejam somente a sua continuidade histórica ou temporal. A genialidade espiritual e a particularidade de cada tradição não podem ser negligenciadas em nome da sempre presente sabedoria que reside no coração de cada e de todas as descendências celestes.


A.K. Coomaraswamy, um dos mais relevantes expositores das doutrinas tradicionais no período contemporâneo, traduziu sanatāna dharma como philosophia perennis, ao que adicionou o adjetivo universalis. Sob a sua influência, muitos identificaram tradição como a filosofia perene com a qual está profundamente relacionada.11 Mas o termo philosophia perennis, ou a sua tradução Inglesa, é de alguma forma problemático em si mesmo e carece de definição prévia para que a tradição possa ser compreendida por referência àquela. Contrariamente ao que Huxley afirma, o termo philosophia perennis não foi empregue pela primeira vez por Leibniz, ainda que este o tenha citado numa célebre carta escrita a Remond em 1714.12 Mais propriamente, o termo foi provavelmente primeiramente empregue por Agostino Steuco (1497-1548), o filósofo e teólogo Augustiniano da Renascença. Apesar do termo ter sido associado a muitas e diferentes escolas, incluindo a Escolástica, especialmente a escola Tomista13, e o Platonismo em geral, estas são associações mais recentes, enquanto que a associação do termo com Steuco foi identificada a respeito da sabedoria perene que abrangia a filosofia e a teologia e não apenas pela relação com uma escola de sabedoria ou de pensamento.


O trabalho de Steuco De perenni philosophia foi influenciado por Ficino, por Pico e ainda por Nicolas de Cusa, especialmente pelo De pace fidei que fala da harmonia entre as várias religiões. Steuco, que conhecia Árabe e outras línguas Semitas e que era bibliotecário da Biblioteca do Vaticano, o que lhe concedeu acesso à “sabedoria dos tempos” com a profundidade que era possível no Ocidente naquela altura, seguiu as ideias destas figuras antigas no que respeita à presença de uma sabedoria ancestral que tinha existido desde o despertar da história. Ficino não falou de philosophia perennis mas aludiu sim por diversas vezes à philosophia priscorium ou prisca teologia, que pode ser traduzida como antiga ou venerável filosofia e teologia. No encalço de Gemisthus Plethon, o filósofo Bizantino que escreveu sobre esta sabedoria ancestral e enfatizou o papel de Zaratustra como mestre deste conhecimento ancestral de ordem sagrada, Ficino enfatizou a significância do Corpus Hermeticum e dos Oráculos Caldeus, os quais considerava terem sido compostos por Zaratustra e que teriam sido estes as origens desta sabedoria primordial. Steuco acreditava que Platão herdara esta sabedoria14 e que com este a verdadeira filosofia tinha sido originada, tal como a verdadeira teologia teria tido origem na Cristandade. Esta verdadeira filosofia, vera philosophia, era para ele o mesmo que religião e, a verdadeira religião, o mesmo que esta filosofia. Para Ficino, tal como para tantos outros Cristãos Platonistas, Platão teria conhecido o Pentateuco e teria sido um “Moisés greco-falante,” este Platão a quem Steuco chamou Platão divinus e que muitos sábios Muçulmanos, de modo semelhante, titularam de Aflāṭūn al-ilāhī, o “Platão Divino.”15 Ficino, de certa forma, reformulou a visão de Glemithus Plethon relativamente à perenidade da verdadeira sabedoria.16 O compatriota de Ficino, Pico della Mirandola, adicionaria ainda às fontes da philosophia priscorium consideradas por Ficino, não Cristãs e especialmente Greco-Egípcias, o Corão, a filosofia Islâmica e a Cabala, ainda que tenha dado seguimento à perspectiva de Ficino e que tenha enfatizado a ideia da continuidade de uma sabedoria que é essencialmente uma ao longo das várias civilizações e períodos da história.


A philosophia perennis de Steuco era nada mais que esta philosophia priscorium, mas sobre uma outra designação.17 Steuco afirmou que a sabedoria era originariamente de origem divina, um conhecimento sagrado dado por Deus a Adão que, para a maioria dos seres humanos, foi gradualmente esquecido e se tornou num sonho sobrevivente apenas e quase integralmente na prisca teologia. Esta verdadeira religião ou filosofia, cujo objetivo é a theosis e a obtenção do conhecimento sagrado, existiu desde o começo da história humana e é obtenível através da expressão histórica desta verdade nas suas várias tradições ou pela intuição intelectual e contemplação “filosófica”.


Apesar de severamente atacada por muitos sectores por expressar ideias tão opostas ao humanismo da Renascença e às interpretações um tanto exotéricas e sectárias da Cristandade que prevaleciam naqueles tempos, o termo utilizado por Steuco continuou a sobreviver e ficou célebre devido à utilização que lhe foi dada por Leibniz, este que tinha uma certa simpatia com as ideias tradicionais. Mas, algo curiosamente, o termo apenas ganhou popularidade generalizada no século vinte. Se a sabedoria perene ou antiga for de facto compreendida tal como Plethon, Ficino e Steuco o fizeram, então está relacionada com a ideia da tradição e pode mesmo ser empregue como uma tradução de sanatāna dharma, desde que o termo philosophia não seja tomado apenas de maneira teórica mas que abranja também a realização18.


A tradição contém o sentido de uma verdade que é simultaneamente de origem divina e perpetuada ao longo de um importante ciclo da história da humanidade através, quer de transmissão, quer da renovação da mensagem por meio de revelação. A tradição também implica uma verdade interior que reside no coração das diferentes formas sagradas e que é única porquanto a Verdade é una. Em ambos os sentidos, a tradição está intimamente relacionada com a philosophia perennis se este termo for entendido como a Sophia que sempre foi e sempre será e que é perpetuada juntamente por meios de transmissão horizontal e de renovação vertical através do contacto com aquela realidade que o era “no início” e que o é aqui e agora.19


Antes de abandonar o assunto da philosophia perennis, parece apropriado dedicar um momento ao destino dado a esta ideia pela tradição Islâmica, em cuja relação com o conhecimento sagrado e o seu significado como uma verdade perene revivida em cada revelação é bastante evidente e mais enfatizada do que na tradição Cristã. O Islão não só vê a doutrina da unidade (al-Tawḥīd) como a essência da sua própria mensagem, mas também como o coração de todas as religiões. Para o Islão, a revelação significa a afirmação da al-Tawḥīd e as religiões são todas vistas como várias repetições da doutrina da unidade em diferentes regiões e línguas. Mormente, onde quer que a doutrina da unidade seja encontrada, é considerada como sendo de origem divina. Logo, os Muçulmanos não faziam distinção entre religião e paganismo, mas sim entre aqueles que aceitavam a unidade e aqueles que a negavam ou a ignoravam. Sábios da antiguidade tais como Pitágoras e Platão eram, para eles, “unitarianos” (muwaḥḥidün) que expressavam a verdade que reside no coração de todas as religiões20. Por conseguinte, eles pertenciam, e não eram considerados estranhos, ao universo Islâmico.


A tradição intelectual Islâmica viu nos ensinamentos de profetas tão antigos como Adão, nos seus aspectos juntamente gnósticos (ma’rifah ou ‘irfān) e filosóficos e teosóficos (falsafah-ḥikmah)21, a fonte desta verdade única que é a “Religião da Verdade” (dīn al-ḥaqq) e considerava o profeta Idrīs, que era associado a Hermes, como o “pai dos filósofos” (Abu’l-ḥukamā’)22. Muitos Sufis, para além de chamarem “divino” a Platão, relacionaram também Pitágoras e Empédocles, este último associado com um importante corpo que influenciou certas escolas de Sufismo, entre outros, à sabedoria primordial associada com a profecia. Já filósofos Peripatéticos (mashshā’ī) anteriores, tais como al-Fārābī, tinham visto a relação entre filosofia e profecia e revelação. Figuras posteriores, tal como Suhrawardī, expandiram esta perspectiva para incluir a tradição da Pérsia pré-Islâmica23. Suhrawardī falava frequentemente da al-ḥikmat al-laduniyyah ou Sabedoria Divina (literalmente a sabedoria que está perto de Deus) em termos praticamente idênticos aos do significado tradicional da Sophia e também da philosophia perennis, incluindo o seu aspecto de realização24. Uma figura Islâmica posterior, do século oitavo/décimo quarto (Islâmico/Cristão), o gnóstico e teólogo Sayyid Ḥaydar Āmulī, não se coibiu em apontar a correspondência que existia entre o pleroma “Maomediano” das setenta e duas estrelas do universo Islâmico e as setenta e duas estrelas do pleroma compreendido por aqueles sábios que teriam preservado a sua natureza primordial, mas pertencido a um mundo exterior ao especificamente Islâmico.25


Ṣadr al-Dīn Shīrāzī identificou o conhecimento verdadeiro como sendo a sabedoria perene que existira desde o início da história da humanidade26. A concepção Islâmica acerca da universalidade da revelação apresentava paralelismo com a ideia de uma verdade primordial que sempre existiu e sempre existirá, uma verdade sem história. O al-dīn árabe, que é provavelmente a palavra mais adequada para traduzir o termo tradição, é indissociável da ideia de sabedoria permanente e perpétua, a sophia perennis que também pode ser identificada com a philosophia perennis tal como uma personalidade como Coomaraswamy a entendeu.


Para melhor compreender o significado da tradição também é necessário abordar com maior profundidade a sua relação com a religião. Se por um lado tradição está etimológica e conceptualmente relacionada com transmissão, por outro lado, a raiz do significado de religião implica “ligar” (do Latim religare)27. Tal como mencionado anteriormente, é o que liga o homem a Deus e simultaneamente o que os liga entre eles como membros de uma comunidade sagrada ou de um povo, ou o que o Islão apelida de ummah. Compreendida neste sentido, a religião pode ser considerada como a origem da tradição, como o início celeste que através da revelação manifesta certos princípios e verdades em cujas aplicações se encerra a tradição. Mas, tal como indicado anteriormente, o significado pleno da tradição inclui esta origem bem como as suas ramificações e desdobramentos. Neste contexto, a tradição é um conceito genérico que abrange a religião tal como o termo Árabe al-dīn significa de uma vez tradição e religião no seu sentido mais universal, enquanto a religião tal como é utilizada num sentido mais lato é compreendida por alguns como inclusa da aplicação dos seus princípios revelados e do seu desenvolvimento histórico posterior, a ponto de encerrar ela própria aquilo que entendemos por tradição ainda que este ponto de vista tradicional difira do religioso como resultado da intrusão do modernismo e das forças anti-tradicionais no seio da própria religião.


Mormente, o significado limitado que o termo religião ganhou nas línguas Europeias induziu autores tradicionalistas como Guénon na certeza de cingir a utilização deste termo exclusivamente às religiões ocidentais, especialmente nas suas expressões exotéricas, distinguindo-as do Hinduísmo, do Taoismo, e de outras como estas a que chamou de tradição em vez de religião. Contudo, não existe qualquer limitação de princípio no termo religião nem nenhuma razão para excluir o Hinduísmo da categoria de religião desde que este termo seja entendido como o que liga o homem à Origem através da mensagem, da revelação, ou da manifestação que provem da Realidade Última.


A limitação da religião aos seus aspectos mais externos, na história recente do Ocidente, também levou a que termos tais como arte religiosa ou literatura religiosa se tornassem tão desprovidos do sentido do sagrado e desviados da tradição, considerada como a aplicação dos princípios de ordem transcendente, que aquilo que é atualmente apelidado de arte religiosa, literatura religiosa, etc., apresenta muitos vezes um carácter não-tradicional ou até mesmo anti-tradicional. Tornou-se, por conseguinte, necessário distinguir o tradicional do religioso em contextos como estes. Mas logo que o termo religião seja ressuscitado para significar o que descende da Fonte, naquelas manifestações objetivas do Logos chamadas de revelação no caso das religiões Abraâmicas ou de avataricas no caso do Hinduísmo, a religião poderá então ser vista como o coração daquela ordem plena e totalmente abrangente que é a tradição. Obviamente, este entendimento da religião em toda a sua amplitude e universalidade é apenas possível quando o ponto de vista tradicional é reavivado e quando a realidade é admirada segundo a perspectiva do tradicional e do sagrado, e não do profano.


Para discutir a relação da tradição para com a religião é necessário aprofundar o problema da pluralidade das religiões. Fala-se da Tradição Primordial ou da Tradição como tal, porém também que a multiplicidade das formas religiosas implica a multiplicidade das tradições, do mesmo modo que existe uma sophia perennis mas várias religiões onde se pode encontrar em diferentes formas. Existe necessariamente um confronto com a questão fundamental da Tradição e das tradições, uma questão sobre a qual muito tem sido escrito e que tanta confusão tem provocado. Tomando um determinado ângulo, não existe senão uma Tradição, a Tradição Primordial, a que é sempre. É a verdade única que é de uma vez o coração e a origem de todas as verdades. Todas as tradições são manifestações terrenas de arquétipos celestes que se relacionam enfim com o arquétipo imutável da Tradição Primordial, do mesmo modo que todas as revelações se relacionam com o Logos ou com a Palavra que foi o início e que é de uma vez um aspecto do Logos Universal e o Logos Universal como tal.28


Todavia, cada tradição está fundada numa mensagem direta do Céu e não é apenas o resultado da continuidade histórica da Tradição Primordial. Um profeta ou avatar nada deve a ninguém exceto o que recebe da Origem. Certos ocultistas e círculos pseudo-esotéricos do mundo moderno que reclamam ser tradicionais falaram de um depositário efetivo da Tradição Primordial na terra, geralmente identificando tal local com uma qualquer região na Ásia Central ou até mesmo reclamando o contacto com representantes do centro29. Muitos aspirantes vaguearam pelas montanhas do Hindu Kush ou pelos Himalaias em busca de um tal centro e criou-se toda uma ficção científica em torno de uma geografia sagrada que foi interpretada de modo literário na vez de simbólico. Do ponto de vista tradicional, a realidade da Tradição Primordial e do “Centro Supremo” é veementemente confirmada, mas esta afirmação em nada diminui ou aniquila a autenticidade ou completa originalidade de cada religião e tradição que conforma com um arquétipo particular e que representa uma manifestação direta da Origem, marcando a ruptura da dimensão horizontal e temporal pela vertical e transcendente. Existem juntamente Tradição e tradições sem que uma contradiga a outra. Falar de Tradição não significa rejeitar a origem celestial de qualquer uma das religiões e tradições autênticas, mas significa antes o confirmar do sagrado em cada mensagem “original” do Céu30, enquanto se permanece ciente daquela Tradição Primordial que é confirmada não apenas nas doutrinas e símbolos de cada tradição mas também através da preservação da uma “presença” que é inseparável do sagrado.


A perspectiva tradicional está de facto tão intimamente ligada com o sentido do sagrado que é necessário dizer algo sobre o sagrado e tentar “definir” o seu significado. Até certo ponto, o sagrado, tal como a verdade, a realidade, ou o ser, é demasiado principal e elementar para que seja delimitado na forma lógica de definir um universal por meio de género e de diferenças específicas. O sagrado reside na natureza da própria realidade, e a humanidade normal possui um sentido para o sagrado tal como o tem para a própria realidade, que se distingue naturalmente do irreal31. Mas a condição do homem humano é tal que até mesmo este sentido natural se tornou quase esquecido, provocando a necessidade de providenciar uma “definição” do sagrado. É muito interessante denotar que tentativas como as de R. Otto em relacionar o sagrado com o irracional atraíram a maior atenção durante este século. Este facto implica que a relação com a verdade intelectual ou conhecimento para com o sagrado tenha sido ignorada precisamente devido ao esvaziar do conteúdo sagrado do conhecimento. Mormente, num mundo secularizado, chegou-se a um ponto em que o sagrado é visto segundo a perspectiva de um mundo profano para o qual o sagrado é então o totalmente outro32. Este ponto de vista é perfeitamente compreensível porquanto muitos homens vivem efetivamente num mundo de esquecimento em que a lembrança de Deus é totalmente “outra”; estes homens vivem num mundo de indiferença e trivialidade em que a grandeza do sagrado representa uma radical “outrês”. Mas o que é excepcional no mundo moderno é que a perspectiva sapiencial, que reside no sagrado e vê o profano em termos do sagrado e que foi desde sempre uma presença viva no seio de civilizações normais, tornou-se tão esquecida que a visão do sagrado como completamente estranho ao que aparenta ser uma vida humana “normal” se tornou a única visão, se o sagrado é sequer aceite de todo como uma possibilidade. Na medida em que a realidade do sagrado é aceite pelo menos em círculos religiosos, esta está conectada com o poder de Deus na vez de com a Sua sabedoria.


Talvez a forma mais direta de abordar o significado do sagrado seja a de o relacionando com o Imutável, com aquela Realidade que é simultaneamente o Movedor Inmovido e o Eterno. Aquela Realidade que é imutável e eterna é o Sagrado como tal, e a manifestação desta Realidade no rio do devir e na matriz do tempo é o que possui a qualidade da sacralidade. Um objeto sagrado ou um som sagrado é um objeto ou um som que sustenta o cunho do Eterno e do Imutável naquela realidade física que externamente contém o objeto ou o som. O sentido do sagrado de um homem é não outro que o seu sentido para o Imutável e para o Eterno, a sua nostalgia para com o que ele realmente é, pois ele transporta o sagrado dentro da substância que perfaz o seu próprio ser e, acima de tudo, dentro da sua inteligência que foi criada para conhecer o Imutável e para contemplar o Eterno.


Como tal, O Sagrado é a fonte da Tradição e o que é tradicional é inseparável do sagrado. Aquele que não tem o sentido do sagrado não pode percepcionar a perspectiva tradicional, e o homem tradicional nunca está separado do sentido do sagrado. Contudo, o sagrado é sobretudo como o sangue que flui nas artérias e veias da tradição, um aroma que impregna totalmente uma civilização tradicional33. A tradição prolonga a presença do sagrado para todo o mundo, criando uma civilização em que o sentido do sagrado é ubíquo. Pode ser dito da função de uma civilização tradicional que não é outra senão a de criar um mundo dominado pelo sagrado, mundo este no qual o homem está a salvo do terror do niilismo e do cepticismo que acompanha a perda da dimensão sagrada da existência e a destruição do carácter sagrado do conhecimento.


A abrangência plena que caracteriza a tradição torna-se possível em cada tradição integral pela presença de, e retornando à religião que se situa na origem da tradição, não uma mas várias dimensões, vários níveis de significado ou vários tipos de ensino correspondentes aos diferentes tipos de capacidades espirituais e intelectuais e às necessidades da humanidade escolhida como o veículo terreno da tradição em questão. Apesar da multiplicidade de dimensões ou níveis e de muitas tradições falarem de sete, catorze ou qualquer outro número simbólico de níveis, estes podem ser reduzidos na etapa inicial às duas dimensões básicas que são o exotérico e o esotérico: a primeira, concerne aquele aspecto da mensagem do Céu que governa toda a vida de uma humanidade tradicional; a outra, as necessidades espirituais e intelectuais daqueles que procuram Deus ou a Realidade Última aqui e agora. No Judaísmo e no Islão estas duas dimensões são claramente delineadas, tal como a Talmúdica e a Cabalística ou a Sharī’ah e a Tarīqah, ainda que mesmo nestes casos existam regiões intermédias e um espectro longe de ser abruptamente separável34. Relativamente ao Cristianismo, ainda que este seja essencialmente um eso/exoterismo com uma dimensão esotérica menos bem definida do que as outras duas tradições Abraâmicas, também possuía uma mensagem distintamente esotérica no início, a qual se manifestou em diferentes maneiras durante a história recente do Cristianismo.35


Apesar dos mundos Indiano e do Oriente Longínquo terem estruturas tradicionais diferentes das Abrâamicas, existem, contudo, realidades que correspondem no seu contexto específico às dimensões exotérica-esotérica da tradição, tais como o Código de Manu que complementa o Advaita Vedanta, o Confucionismo que complementa o Taoismo ou as escolas Theravada e Mahayana do Budismo. Apesar da nossa preocupação neste estudo ser para com o conhecimento sagrado, e, portanto, especialmente para com a dimensão esotérica que mais diretamente se relaciona com o conhecimento sagrado, é importante realçar a importância da dimensão exotérica e a necessidade da mesma para uma tradição integral e viva. É particularmente significativo mencionar este ponto em particular à luz das pretensões de tantos grupos pseudo-esotéricos de hoje em dia, que reclamam estarem para além da necessidade do exotérico, em contraste com os grandes sábios de tempos volvidos que por entre as mais intensas expressões de realização espiritual, permaneciam fieis às formas e ensinamentos exotéricos das suas religiões, sendo as raras excepções aquelas que provam a regra.36


O esoterismo é aquela dimensão interna da tradição que aponta ao homem interior de São Paulo. Está escondida devido à sua própria natureza e está acessível apenas a uns poucos porque nesta fase da história humana apenas esse número limitado permanece ciente da dimensão interior da sua própria natureza; os restantes vivem na periferia do círculo da sua própria existência, absortos do Centro que está ligado à circunferência ou periferia pela dimensão esotérica da tradição37. O esotérico é o raio que providencia os meios para ir da circunferência para o Centro, mas não está disponível para todos porque nem todos estão dispostos ou qualificados, nesta vida, para enveredar na jornada que conduz ao Centro. Seguir a dimensão exotérica da religião é, ainda assim, permanecer na circunferência e por conseguinte num mundo que tem um centro, e permanecer qualificado para levar a cabo a jornada para o Centro na vida posterior, sendo a visão beatífica apenas uma possibilidade póstuma do ponto de vista exotérico.


O esotérico autêntico está sempre contido numa tradição total e integral. É apenas no Ocidente moderno, e possivelmente durante a decadência da antiguidade mais recente, que os ensinamentos esotéricos se tornaram distintos da tradição em cuja matriz o esotérico é verdadeiramente o esotérico. Como resultado deste fenômeno, que no que respeita ao mundo moderno remonta ao século dezoito, o esotérico fez-se parecer na sua grande parte como sendo oposto à tradição Cristã, enquanto que o que sobreviveu da tradição Cristã desprezou em muitas instâncias a exata ideia de esotérico de modo similar ao de grande parte das igrejas Cristãs dos dias de hoje que desconsideraram a gnose ou o conhecimento sagrado na exposição da sua mensagem. Devido à disjunção para com uma tradição viva, este denominado esoterismo degenerou num ocultismo inoperativo ou até mesmo prejudicial e o invólucro do conhecimento sagrado permaneceu mas tornou-se deposto do sagrado. Grande parte do esoterismo ostentado no mundo moderno tornou-se desunido do sentido do sagrado em pleno contraste com o esoterismo genuíno, tal como é percebido tradicionalmente, este que está naturalmente relacionado com o sagrado e que é o meio por excelência para obter acesso ao sagrado naquele aqui e agora que é o reflexo do Imutável e do Eterno.38


Independentemente de se considerar no seu aspecto exotérico ou esotérico, tradição implica e é indissociável de ortodoxia. A existir algo como verdade, então também existe erro e normas que permitem ao homem distinguir entre eles. Ortodoxia, no seu sentido mais universal, é nada mais do que a verdade em si mesma e em relação com a homogeneidade formal de um universo tradicional específico. A perda do carácter multidimensional da religião e a redução da mesma a um único nível provocou também o estreitamento do entendimento da ortodoxia, a ponto do esotérico e do místico terem sido recorrentemente punidos como não ortodoxos. A ortodoxia tornou-se identificável com mera conformidade e adquiriu um sentido quase pejorativo entre os que se preocupavam com a intelectualidade, e muitos dos desconhecedores sedentos pela ortodoxia no seu sentido mais universal reclamaram-se a si mesmos como heterodoxos vis-à-vis a redutora concepção e formulação dessa ortodoxia que não deixou espaço para o voo libertador do intelecto santificado. O estreitamento do significado do termo ortodoxia não está, na realidade, desligado da perda do significado original da intelectualidade e da sua redução ao racionalismo. Ao contrário, o significado autêntico da intelectualidade não pode senão estar relacionado com ortodoxia.39


Se a ortodoxia for entendida no seu sentido mais universal, como a qualidade da verdade no contexto de um universo espiritual e religioso específico e também como a verdade como tal, então precisa ser interpretada em níveis diferentes, tal como a própria tradição. Existem certas doutrinas que são extrinsecamente heterodoxas, vis-à-vis uma tradição universal específica, mas intrinsecamente ortodoxas. Um exemplo seria a Cristandade vista segundo o Judaísmo ou o Budismo segundo o ponto de vista do Hinduísmo. Mesmo dentro de uma tradição singular, uma escola esotérica específica pode aparentar ser não ortodoxa do ponto de vista da dimensão exotérica ou até mesmo segundo o de outra escola esotérica da mesma tradição, tal como se verificou em certas escolas do Budismo Japonês. Em todos estes casos, o conceito de ortodoxia tem uma importância capital no julgamento do carácter dos ensinamentos envolvidos, do ponto de vista tradicional, e é quase sinônimo do tradicional no que concerne à conformidade para com a verdade. Não existe qualquer possibilidade de tradição sem ortodoxia nem de ortodoxia fora da tradição. Mormente, ambas são exclusivas de todas as imitações, aberrações, e desvios de origem puramente humana ou por vezes sub-humana, as quais tanto reclamam abertamente serem exteriores às tradições como implicam tais pontos de partida do universo tradicional que tornam impossível a obtenção do acesso às doutrinas, práticas, e àquela presença espiritual única que confere ao homem a possibilidade de ultrapassar o seu ser limitado e atingir a enteléquia que é a sua raison d´être. Em qualquer dos casos, uma árvore é avaliada pelo fruto que sustenta e este princípio é em lado algum mais aplicável do que no julgamento do que é ortodoxo e do que se aparta ou desvia da ortodoxia em todos os níveis da vida religiosa do homem, incluindo não apenas a lei e a moralidade mas também, e especialmente, o domínio do conhecimento e da intelectualidade. A obtenção plena do conhecimento sagrado, incluindo o seu aspecto realizado, está tão relacionada com o conceito chave da tradição como com ortodoxia; e não é possível compreender a significância da tradição sem uma apreciação da sua relação para com a ortodoxia, percebida no seu sentido mais universal.40


Falar da verdade e de ortodoxia no contexto tradicional é, também, falar de autoridade e de transmissão da verdade. Quem ou o que é que determina as verdades religiosas e garante a pureza, regularidade e perpetuidade da tradição? Esta é uma questão chave à qual todas as tradições se dedicaram de diferentes formas. Mormente, estas providenciaram respostas que garantem a autenticidade da tradição sem que tenham recorrido simplesmente a uma solução. Existem tradições que possuem um magisterium e outras uma comunidade sagrada que garante ela mesma a pureza e a continuidade da mensagem41. Algumas enfatizaram a continuidade de uma função sacerdotal e, outras, uma cadeia de transmissão através de instrutores cujas qualificações foram determinadas e definidas pela tradição em questão. Por vezes, foram utilizados vários meios dentro de uma tradição singular, mas a autoridade tradicional permanece inseparável do significado da própria tradição em qualquer dos casos. Existem aqueles que são autoridades em assuntos tradicionais e outros que não o são; existem aqueles que sabem e os que não sabem. Seja em que circunstância for, o individualismo não desempenha nem pode desempenhar um papel na transmissão e na interpretação daquilo que é por definição supra-humano, mesmo que deixe um vasto campo para a elaboração e interpretação humanas. A autoridade intelectual e espiritual é inseparável daquela realidade que é a tradição e os escritos tradicionais autênticos sempre possuem uma qualidade inata de autoridade.


Similarmente, tradição implica a regularidade da transmissão de todos os seus aspectos, desde a regulação e preceitos legais e de ética até ao conhecimento esotérico. Todos os diferentes meios de transmissão, que incluem transmissão oral, iniciação, transferência de poder, técnicas, conhecimento de mestre para discípulo, e a perpetuação de um perfume espiritual e de uma presença sagrada, estão relacionados e são inseparáveis daquela realidade que é a tradição. Viver no mundo tradicional é respirar num universo em que o homem está relacionado com uma realidade que está para além dele mesmo, e a partir da qual recebe aqueles princípios, verdades, formas, atitudes e outros elementos que determinam a própria textura da existência humana. E esta recepção é tornada possível através da transmissão que traz a realidade da tradição para as vidas dos membros de cada geração em conformidade com as suas capacidades e que destina e garante a perpetuação desta realidade sem a corrupção que caracteriza tudo o que é afetado pela influência debilitadora do tempo e do devir.


A natureza totalitária da tradição é também uma peculiaridade que carece ser realçada. Numa civilização caracterizada como tradicional, nada permanece fora do reino da tradição. Não existe nenhum domínio da realidade que possua o direito a existir fora dos princípios tradicionais ou das suas aplicações. Por conseguinte, a tradição concerne não apenas o conhecimento, mas também o amor e as obras. É a fonte das leis que governam a sociedade, mesmo nos casos em que as leis não derivam diretamente da revelação42. É a fundação da ética. Na realidade, a ética não tem qualquer significado fora do quadro estabelecido pela tradição. Também estabelece os princípios e normas para o aspecto político da vida e da sociedade, e a autoridade política está relacionada com a da espiritual apesar da relação entre as duas estar longe de ser uniforme nas diferentes tradições43. De igual modo, a tradição determina a estrutura da sociedade aplicando os princípios imutáveis à ordem social, daí resultando estruturas tão divergentes externamente como são o sistema de Castas Hindu e a “democracia dos monges casados” Islâmica, tal como alguns caracterizaram a sociedade teocrática Islâmica, nas quais existe ainda assim uma igualdade perante Deus e perante a Lei Divina, mas obviamente não segundo o sentido quantitativo moderno.44


A Tradição também governa os domínios da arte e da ciência, com os quais lidaremos nos capítulos seguintes, e está especialmente centrada no conhecimento principial ou naquela ciência suprema que é a metafísica e que foi por diversas vezes confundida no Ocidente com filosofia. Sendo a nossa preocupação o conhecimento na sua relação com o sagrado e menos a totalidade dos aspectos da tradição, é necessário pausar aqui e destrinçar os tipos de conhecimento que existem numa civilização tradicional. Para além das várias ciências cosmológicas, existem, tal como já foi referido, três modos de conhecimento que lidam com os princípios que se podem distinguir num mundo tradicional, especialmente aqueles que são governados por uma das religiões Abraâmicas: sendo estas três a filosofia, a teologia, e a gnose ou, num certo contexto, a teosofia. O mundo moderno distingue apenas dois modos ou disciplinas: filosofia e teologia, em vez das três que existem no mundo tradicional de não apenas a Cristandade, mas também do Islão e do Judaísmo.


Na tradição Islâmica, após vários séculos durante os quais as diferentes perspectivas se formaram, surgiu uma situação que demonstra plenamente o papel e a função da filosofia, da teologia e da metafísica ou gnose num contexto tradicional. Existiam escolas tal como a dos Peripatéticos (mashshā’ī) que podiam ser consideradas filosóficas no sentido tradicional. Existiam escolas de teologia (kalām) tais como a dos Mutazilitas, dos Acharitas, dos Maturiditas, dos Ismailitas, e dos Xíitas dos Doze Imãs. Depois existia a gnose ou a metafísica associada com as várias escolas do Sufismo. No que respeita ao mundo Islâmico, também apareceu gradualmente uma escola associada com Suhrawardī e a sua escola da iluminação (al-ishrāq) que era simultaneamente filosófica e gnóstica e que deveria ser chamada, apropriadamente falando, de teosófica,45 enquanto que nas terras ocidentais do Islão, contemporâneo com este aparecimento, a filosofia cessou de existir como uma disciplina distinta e tornou-se ligada com a teosofia, por um lado, e com a gnose, por outro. De igual modo, o Judaísmo medieval conseguia distinguir entre os mesmos três tipos de perspectivas intelectuais, representadas por individualidades tais como Judas Halévy, Maimonides, Ibn Gabirol, e Luria. Escusado será dizer, na Cristandade medieval era também possível distinguir entre e teologia de São Bernardo, a filosofia de Alberto Magno e a gnose de Meister Eckhart, para não mencionar Roger Bacon ou de Raymond Lull, que correspondem mais à escola de ishrāq de Suhrawardī do que a qualquer outra se a comparação for feita com a tradição Islâmica.46


Todas as três disciplinas têm um papel e uma função a desempenhar na vida intelectual do mundo tradicional. Existe um aspecto da “filosofia” que é necessário para expor certas ideias teológicas e gnósticas assim como existem elementos da teologia e da gnose que estão presentes em toda a expressão autêntica da filosofia merecedora do nome. Pode-se, na realidade, dizer que todo o grande filósofo é também em certa medida um teólogo e um metafísico, no sentido gnóstico, assim como todo o grande teólogo é em certa medida um filósofo e um gnóstico e cada gnóstico em algum grau um filósofo e teólogo, tal como se verificou nos casos de Ibn ‘Arabi e Meister Eckhart.47


Apesar de, devido à completa depleção do que passa, no mundo moderno, como filosofia da verdade tradicional e do sagrado, autores tradicionais como A. K. Coomaraswamy e F. Schuon e especialmente R. Guénon terem atacado severamente a filosofia no sentido de clarificar o terreno de apresentação da metafísica e de precaver quaisquer distorções ou desvios que pudessem ser causadas pela confusão entre a filosofia profana e o conhecimento sagrado48, não há qualquer dúvida que existe tal coisa como a filosofia tradicional ou a filosofia no contexto tradicional49. Apesar de toda a depreciação que o termo filosofia sofreu no mundo moderno, nela ainda ressoa algo da concepção Pitagórica e Platônica da filosofia. É possível ressuscitar o significado desta disciplina e da sua função desde que o carácter sagrado do conhecimento seja estabelecido novamente. Em qualquer dos casos, o mundo intelectual tradicional implica a presença de diferentes dimensões e perspectivas, incluindo o que na tradição Ocidental se chamaria não apenas de teologia e filosofia, mas também de gnose e teosofia50. O desaparecimento da gnose na corrente principal do pensamento Ocidental não poderia senão resultar na trivialização do significado da filosofia, a dissolução da substância da teologia e, finalmente, no aparecimento de uma espécie de inversão do conhecimento tradicional, o qual desfilou durante o século passado como “teosofia”.


Apesar de que a essência da tradição seja eterna presença in divinis, a sua manifestação histórica pode tanto desaparecer completamente do plano terrestre como tornar-se parcialmente inacessível ou “perdida”. Nem toda a tradição é uma tradição viva. A tradição Egípcia, por exemplo, que é uma das mais notáveis conhecidas ao homem, não pode ser praticada nem vivida ainda que tenham sobrevivido as suas formas de arte, símbolos, e mesmo uma certa presença de um tipo mais psicológico do que espiritual a ela pertencente. Aquela vida espiritual que avigorava e animava o corpo terrestre da tradição, partiu para a permanência da origem de todas as religiões e a tradição não pode ser dita como estando tão viva como pode, deixemos dizer, o Hinduísmo ou o Islão. Também existem certas tradições que estão apenas parcialmente acessíveis ou “vivas” no sentido de que apenas estão disponíveis determinadas das suas dimensões ou ensinamentos. Neste caso, existe sempre a possibilidade do rejuvenescimento e regeneração do que foi perdido ou esquecido, porquanto as raízes e os canais de transmissão da tradição se mantenham intactos. Similarmente, as civilizações criadas pelas várias tradições podem tornar-se enfraquecidas, decair, ou morrer sem que decaiam ou morram a religião e certos aspectos da tradição que fez nascer a civilização em questão. Tal é, na realidade, o caso das civilizações tradicionais da Ásia de hoje, as quais decaíram em diferentes graus enquanto as tradições que as fizeram nascer permanecem vivas.


Relativamente aos símbolos tradicionais, uma vez que eles têm a sua raiz no mundo arquetipal do Espírito, é possível ressuscitá-los desde que exista uma tradição viva que possa absorver símbolos, imagens, e até mesmo doutrinas de outro mundo tradicional, sendo que esta absorção implica muito mais do que mero empréstimo histórico51. Em qualquer dos casos, símbolos e ideias de tradições não vivas ou alienígenas não podem ser adoptados ou absorvidos legitimamente noutro mundo que não seja ele próprio tradicional, como tantos atentam fazer no mundo moderno. Aquele que tenta executar tal processo independentemente da tradição está a fazer nada menos do que a usurpação da função de um profeta ou daquele a quem os Muçulmanos chamam o Mahdī e os Hindus o Chavkravartin. A adopção de qualquer elemento de outra tradição deve seguir as leis e princípios que determinam o modo de existência da tradição que está a adoptar os elementos em questão. Caso contrário, a adopção de elementos, mesmo de uma origem com carácter tradicional, pode resultar na difusão de forças de dissolução que podem provocar grandes lesões ou mesmo a destruição de uma tradição já viva, para não falar de organizações de origem puramente humana que jogam com forças muito para além do seu horizonte de conhecimento ou poder de controlo.52


Estes e outros numerosos perigos, obstáculos, e precipícios, com que se depara o homem moderno que decidiu viver apenas do pão, forçaram aqueles que visavam ressuscitar o ponto de vista tradicional no mundo moderno a expressar a sua oposição categórica ao modernismo, o qual não identificam de todo com o mundo contemporâneo como tal mas com a revolta contra o Céu que se iniciou na Renascença no Ocidente e que presentemente invadiu praticamente a totalidade do mundo. Noutros tempos, teria sido possível falar sobre o que constitui a tradição sem discutir as forças do secularismo, mas tal possibilidade não existe num mundo já influenciado e, do ponto de vista tradicional, contaminado pelo modernismo. Falar da tradição é estar preocupado com a verdade e por conseguinte com o erro, e estar perante a necessidade de avaliar o mundo moderno à luz daquelas verdades que constituem os próprios princípios da tradição. A oposição inflexível dos autores tradicionalistas ao modernismo decorre primeiramente e sobretudo da sua dedicação à verdade tradicional e depois da compaixão e caridade para com uma humanidade enredada num mundo tecido com os fios de meias-verdades e de erros.


Nos dias de hoje o criticismo contra o mundo moderno e o modernismo tornaram-se um lugar-comum, desde o trabalho de poetas até mesmo às análises de sociólogos53. Mas a oposição da tradição ao modernismo, que é total no que respeita aos princípios, não deriva da observação de factos e de fenômenos ou do diagnóstico dos sintomas da enfermidade. Baseia-se num estudo das causas que trouxeram a doença. A tradição opõe-se ao modernismo porque considera as premissas sobre as quais o modernismo se baseia como sendo erradas e falsas em princípio54. Não negligencia o facto de que algum elemento de um sistema filosófico moderno possa ser verdade ou que alguma instituição moderna possa possuir características positivas ou ser boa. Na realidade, a falsidade ou o mal completos não podiam existir já que todo o modo de existência implica algum elemento daquela verdade e bondade que na sua pureza pertencem à Fonte de toda a existência.


Aquilo que a tradição critica no mundo moderno é a visão do mundo como um todo, as premissas, as fundações que, do seu ponto de vista, são falsas a ponto de que qualquer bem que apareça neste mundo seja acidental e não essencial. Poder-se-á dizer que os mundos tradicionais são essencialmente bons e acidentalmente maus, e que o mundo moderno é essencialmente mau e acidentalmente bom. A tradição é por conseguinte oposta ao modernismo em princípio. Deseja assassinar o mundo moderno55 no sentido de criar um mundo normal. O seu objetivo não é destruir o que é positivo mas remover o véu de ignorância que permite que o ilusório aparente como real, o negativo como positivo e o falso como verdadeiro. A tradição não se opõe a tudo o que existe no mundo hoje e, de facto, recusa-se a comparar tudo o que existe hoje com o modernismo. Apesar de tudo, ainda que sejam dados epítetos tais a esta era como a o da era do espaço ou o da era atômica porque o homem viajou até à lua ou dividiu o átomo, de igual modo e através da mesma lógica poder-se-ia ter chamado era dos monges, já que os monges continuam a existir juntamente com os astronautas. O facto desta era não ser chamada a era do monasticismo mas antes do espaço é em si o fruto do ponto de vista modernista que equipara o modernismo com o mundo contemporâneo, enquanto a tradição distingue contundentemente entre os dois, procurando destruir o modernismo não com o propósito de destruir o homem contemporâneo mas para o salvar da prossecução do caminho cujo fim não pode ser se não a perdição e a destruição. Deste ponto de vista, a história do homem Ocidental durante os últimos cinco séculos é uma anomalia na longa história da raça humana, tanto no Oriente como no Ocidente. Ao opor-se ao modernismo em princípio e de maneira categórica, aqueles que seguem o ponto de vista tradicional desejam apenas possibilitar ao homem Ocidental a união com o resto da raça humana.56


A ênfase dos autores tradicionais contemporâneos sobre o Este ou o Oriente deve-se na verdade à situação histórica em que o modernismo e a rebelião contra a tradição emergiram no Ocidente. Mais precisamente, a tradição abarca ambos o Oriente e o Ocidente uma vez que derivam de não outra que a “Abençoada Oliveira” ou eixo central da existência cósmica a que o Corão se refere ao declarar não pertencer ao Oriente nem ao Ocidente57. É verdade que durante este século aqueles que falaram da tradição enalteceram os três maiores universos espirituais do Este, considerando o Oriente Longínquo, a Índia e o mundo Islâmico, com as suas características distintas e os seus diferentes pontos de interpenetração. Também é verdade que alguns pensaram até que civilização tradicional significa simplesmente civilização Oriental. Mas mesmo neste século, desde que um trabalho como “East and West” de R. Guénon foi escrito, muitas foram as mudanças na própria Ásia que dão ainda mais razão em não identificar a tradição apenas com o Oriente geográfico, embora o que é tradicional ainda sobreviva mais no Oriente do que no Ocidente geográficos e apesar destes termos não terem perdido completamente o seu sentido geográfico.58


Enquanto a histórica trágica destas décadas se desenrola, contudo, torna-se cada vez mais necessário identificar a tradição do Este ou Oriente que pertencia à geografia sagrada, e que é simbólica em vez de literal. O Oriente é a fonte da luz, o ponto onde o dia se rompe e o sol se ergue arremessando a sua luz sobre os horizontes, removendo a escuridão e lançando o calor que vivifica. O Oriente é a Origem, bem como o ponto para onde nos voltamos ao longo da jornada na vida, o ponto sem o qual não haveria orientação, sem o qual a vida se tornaria desordem e caos e a nossa jornada um caminhar sinuoso no labirinto daquilo a que os Budistas chamam de existência samsárica. A Tradição identifica-se com este Oriente. Esta, igualmente, advém da Origem e providencia orientação para a vida humana. Providencia um conhecimento que é de uma vez Oriental e iluminante, um conhecimento que é combinado com amor tal como a luz do sol se combina com o calor, um conhecimento que parte do Precinto do Sagrado e que conduz ao Sagrado.


Na medida em que as sombras da terra do sol poente cobrem o espaço habitado pela espécie humana e que o Oriente geográfico se torna devastado pelas várias formas do modernismo, nessa medida o Oriente transforma-se num polo sustentado no coração e na alma dos seres humanos onde quer que eles estejam. Na medida em que o Oriente físico deixa de ser, pelo menos externamente, a terra da tradição tal como o foi ao longo de milênios 59, nessa medida a tradição alastra-se uma vez mais para o “Ocidente Longínquo” preparando simbolicamente o terreno para o dia em que “o Sol se erguerá no Ocidente.” Identificar a tradição com o Oriente nos dias de hoje é identificá-la com aquele Oriente que é o local do nascer do Sol do nosso próprio ser, o ponto que é de uma vez o centro e a origem do homem, o centro que ilumina e santifica e sem o qual a existência humana, tanto a nível individual como colectivo, se torna como um círculo sem centro, um mundo privado da luminosidade iluminadora e vivificadora do Sol nascente.


REFERÊNCIAS

[1] A presente publicação é uma tradução da parte inicial do segundo capítulo “What is Tradition?” da obra absolutamente fundamental de Seyyeid Hossein Nasr, “Knowledge and the Sacred”.


[2] Tradução publicada em http://sabedoriaperene.blogspot.com/


[3] Tal como um dos mais importantes mestres tradicionais contemporâneos afirmou, a exposição das doutrinas tradicionais na sua totalidade é necessária nos dias de hoje porque “uma irregularidade merece uma outra”.


[4] No plano microcósmico, as escatologias tradicionais ensinam que no momento da morte, toda a vida de um ser humano é recapitulada laconicamente perante ele mesmo. Ele é então julgado em conformidade e entra num estado póstumo em acordo com o seu estado de existência e obviamente com a Misericórdia Divina, cujas dimensões são imponderáveis. O mesmo princípio existe no plano macrocósmico, e como envolve a vida da humanidade como tal, obviamente com todas as diferenças implicadas pela variação do plano individual para o coletivo.


[5] Os primeiros trabalhos de R. Guénon, um dos mais importantes expositores da perspectiva tradicional no Ocidente moderno, contêm muitas passagens sobre o significado da tradição. Ver “What is meant by Tradition”, no seu Introduction to the Study of Hindu Doctrines, trad. M. Pallis, Londres, 1945, pp. 87-89; e “De l’infallibilité traditionnelle”, em ed. Aperçus sur l’initiation, Paris, 1946, pp. 282-88. Do mesmo modo, A. K. Coomaraswamy e F. Schuon escreveram numeras páginas e passagens sobre o próprio conceito de tradição. Ver, por exemplo, Coomaraswamy, The Bugbear of Literacy, esp. caps. 4 e 5; e F. Schuon Spiritual Perspectives and Human Facts, pt. 1; idem, Light on the Ancient Worlds, caps. 1 e 2; idem, “Fatalité et progress”, Etudes Traditionelles, n. 261 (Jul-Ago 1947): 183-89; e idem, “L’impossible convergence“, Etudes Traditionelles, n. 402-3 (Set-Out 1967): 145-49; Ver também E. Zolla, Ché cos’ è la tradizione?“, esp. pt. 2, “La Tradizione Eterna”, que trata a tradição de um ponto de vista mais literário; e idem, “What is Tradition?”, um volume dedicado a A.K. Coomaraswamy e editado por R. Fernando. A tradição também foi usada com um significado semelhante, ainda que mais restrito do que o significado utilizado no presente trabalho, por certos autores católicos tais como J. Pieper, Überlieferung-Begriff und Anspruch, Munique, 1970, enquanto outras figuras católicas a quem retornaremos adiante adoptaram integralmente a ideia da tradição.


[6] F. Schuon, Understanding Islam.


[7] Sanatāna dharma não pode ser traduzido com rigor, ainda que sophia perennis seja talvez o que mais se aproxima, já que sanatāna significa perenidade (que é, perpetuidade ao longo de um ciclo de existência humana e não eternidade) e dharma o princípio de conservação dos seres, tendo cada ser o seu próprio dharma com o qual deve conformar e que é a sua lei. Mas dharma também se relaciona com a humanidade como um todo no sentido de Mānava-dharma e neste caso relaciona-se com o conhecimento sagrado ou ‘Sophia’, o qual está no coração da lei que governa um ciclo humano. Neste sentido sanatāna dharma corresponde a sophia perennis, esp. tendo em consideração a realizada e não apenas a dimensão teórica de ‘Sophia’. No seu significado pleno, sanatāna dharma é a tradição primordial ela mesma tal como tem subsistido e continuará a subsistir no decurso do presente ciclo da humanidade. Ver R. Guénon, “Sanatāna Dharma”, no seu Études sur L’Hindouisme, Paris, 1968, pp. 105-6.


[8] Este é, na realidade, o título de um trabalho de Ibn Miskawayh (Muskūyah) sobejamente conhecido e que contém aforismos e ditos metafísicos e éticos de sábios Islâmicos e pré-Islâmicos. Ver a edição de A. Badawi al-Ḥikmat al-khālidah: Jāwīdān khirad, Cairo, 1952. Este trabalho discute o pensamento e escritos de muitos sábios e filósofos, incluindo aqueles da Pérsia antiga, Índia, e do mundo Mediterrânico (Rūm). Neste trabalho, ver a introdução de M. Arkoun para a tradução Persa de Ibn Miskawayh, por T. M. Shushtarī, Jāvīdān khirad, Teerão, 1976, pp. 1-24.


[9] A tradição primordial não é outra que a que o Islão refere como al-dīn al-ḥanif, e que o Corão refere um vários contextos mas habitualmente em relação com o Profeta Abraão que é habitualmente referido como ḥanif; por exemplo, “Recusa mas (nós seguimos) a religião de Abraão, o correcto [upright] (ḥanifan), e ele não era dos idólatras” (II; 135-Pickthall translation). Ver também versos III; 67 e 95-VI; 79 e 161-XVI; 120-e XVII; 31.


[10] Ver M. Eliade, “The Quest for the ‘Origins of Religion’,” History of Religions 4/1 (Verão 1964); 154-69.


[11] O bastante conhecido trabalho de A. Huxley, Perennial Philosophy, Nova Iorque, 1945, é um dos trabalhos que procurou demonstrar a existência e apresentar os conteúdos desta sabedoria duradoura e perene recorrendo a ditos selecionados e retirados de várias tradições, mas o trabalho permanece incompleto em muitos aspectos e a sua perspectiva não é tradicional. O primeiro trabalho que tomou plenamente a sugestão de Coomaraswamy em organizar o vasto compendio de conhecimento tradicional com o fito de demonstrar a notável perenidade e universalidade da sabedoria é o tristemente negligenciado trabalho de W.N. Perry, A Treasury of Traditional Wisdom, Londres e Nova Iorque, 1971, o qual consiste num trabalho chave para a compreensão do que autores tradicionais intentam por filosofia perene.


[12] Depois de declarar nesta carta que a verdade é mais extensa do que havia sido pensado até então, e que o seu rasto se encontra entre os antigos, ele diz “et ce serait en effect perennis quaedam Philosophia.” C.J. Gerhardt (ed.), De philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibnitz, Berlim, 1875-90, vol. 3, p. 625. Também citado em C. Schmitt, “Perennial Philosophy: Steuco to Leibniz,” Journal of the History of Ideas 27 (1966): 506. Este artigo (pp. 505-32 do volume citado) descreve a história da utilização do termo philosophia perennis dedicando especial atenção ao suporte Renascentista de Ficino e de outras figuras Renascentistas anteriores. Ver também J. Collins, “The Problem of a Perennial Philosophy,” na sua Three Paths in Philosophy, Chicago, 1962, pp. 255-79.


[13] A identificação da “filosofia perene” com o Tomismo ou a Escolástica em geral é um fenómeno do Sec. XX, porquanto durante o Renascimento os Escolásticos em geral opunham-se às teses de Steuco.


[14] Especialmente herdeiro de Zaratustra, Hermes, Orfeu, Aglaophemus (o professor de Pitágoras), e Pitágoras.


[15] Este termo encontra-se entre filósofos Islâmicos tais como al-Fārābī e certos Sufis.


[16] Sobre a visão de Ficino ver os vários trabalhos de R. Klibansky, E. Caisser, e P. O. Kristeller acerca do Renascimento, esp. Studies in Renaissance Thought and Letters de Kristeller, Roma, 1956; e idem, Il pensiero filosofico di Marsilio Ficino, Florença, 1953.


[17] Este facto é demonstrado claramente por Scmitt no seu artigo já citado, porquanto apesar do termo philosophia perennis ser de origem Renascentista, mesmo para a vida intelectual Ocidental, a ideia subjacente é de origem medieval e em última análise originária da Grécia antiga.


[18] Referindo-se à religio perennis, Schuon escreve “Estas palavras fazem lembram a philosophia perennis de Steuchus Eugubin (século XVI) e dos neo-escolásticos; mas a palavra ‘philosophia’ sugere, correcta ou erradamente, uma elaboração mental em vez de sabedoria e por conseguinte não aporta o sentido pretendido com exactidão.” Light on the Ancient Worlds, p. 143.


[19] “‘Philosophia perennis’ é geralmente entendida como relacionada com a verdade metafísica que não tem começo, e que se mantém inalterada em todas as expressões de sabedoria. Talvez fosse melhor e mais prudente falar de uma ‘Sophia perennis’. (…)


Quanto à Sophia Perennis, a questão é a seguinte: existem verdades inatas no Espírito humano, que apesar disso estão de certa forma enterradas nas profundezas do ‘Coração’ – no puro Intelecto – e que são acessíveis apenas àquele que é espiritualmente contemplativo; e estas são as verdades metafísicas fundamentais. O acesso a estas verdades está na posse do ‘gnóstico’, ‘pneumático’ ou ‘teósofo’,- no sentido original e não sectário destes termos: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte também Aristóteles.” Schuon, “Sophia perennis”: Studies in Comparative Religion. Ver também Schuon, Wissende, Verschwiegene. Ein geweihte Hinführung zur Esoterik, Iniciativa Herderbücherei 42, Munique, 1981, pp. 23-28; e idem, a introdução e o primeiro capítulo, “Prémisses epistémologiques,” no seu Sur les traces de la religion pérenne.


[20] Lidámos com este assunto em muitos dos nossos escritos. Ver, por exemplo, “An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines”, pp. 37ff.


[21] Falsafah e ḥikmah podem ser traduzidos como filosofia e teosofia dependendo da forma como estes termos são compreendidos em inglês e em que contexto se empregam os termos em Árabe.


[22] Sobre a figura de Hermes no pensamento Islâmico ver L. Massignon, “Inventaire de la littérature hermétique árabe,” em A. Nock e A.J. Festugière, La Révélation d´Hermès Trismégiste, 1, Paris, 1949, app. 3; S.H. Nasr, “Hermes and Hermetic Writtings in the Islamic Worlds,” em Islamic Life and Thought, Londres, 1981, pp. 102ff.; F. Sezgin, Geschichte der Arabischen Schrifttums, Leiden, 1970, com referências a Hermes em várias páginas, como por exemplo, vol. 3, 1970, pp. 170-71, vol. 4, 1971, pp. 139-269; e no artigo “Hirmis” de M. Plesser na New Encyclopedia of Islam.


[23] A ênfase dada à Pérsia pré-Islâmica e à Grécia como a base da “filosofia perene” também se encontram em Ibn Miskawayh e am Abu’l Hasan al-‘Āmirī ainda que não com a mesma extensão que se encontra em Suhrawardī, que se considerava a si mesmo como o ressuscitador da sabedoria dos Persas antigos. Ver Nasr, Three Muslim Sages, cap. 2; e H. Corbin, En Islam iranien, vol. 2.


[24] Suhrawardī também se refere a esta sabedoria como al-ḥikmat al-‘aṭīqah (a sabedoria antiga), que é exactamente o mesmo que a philosophia psicorum em Latim. Se existe uma ligação histórica ou simplesmente a repetição da mesma verdade, e mesmo da mesma terminologia, na Pérsia e na Itália Renascentista do século doze, não se poderá confirmar até que mais estudos e maior disseminação dos ensinamentos de Suhrawardī seja feita no Ocidente. Ver S.H. Nasr, “The Spread of the Illuminationist School of Suhrawardī,” em La Persia nel Medioevo, Roma, 1971, pp. 255-65.


[25] Sayyid Ḥaydar Âmolî, Le texte dês textes (NaṢṢ al-NoṢûṢ), commentaire des “FoṢûṢ al-ḥikam” d’Ibn Arabî. Les prolégomènes, ed. Por H. Corbin e O. Yahya, Teerão-Paris, 1975, p.865. O autor providencia diagramas complexos que se assemelham a mandalas baseados na visão de um mundo inteligível e que contêm os nomes de várias figuras espirituais e intelectuais, tanto Islâmicas como pré-Islâmicas. Estes diagramas foram analisados por Corbin no seu, “La paradoxe du monothéisme,” Eranus-Jahrbuch, 1976, pp.77ff. Corbin escreve relativamente ao “interesse extraordinário” destes diagramas que representam os sábios no firmamento espiritual, “[Cet intérêt] est dans la correspondence instituée pour les deux diagrammes 21 et 22 entre la totalité mahammadienne groupé autor de la famille ou du temple dês Imams immaculés (Ahl al-bayt) et la totalité dês religions groupés autor des hommes dont la nature foncière originelle a été preservée (fiṭra salîma). La fiṭra salîma, c’est la nature humaine, l’Image Dei, telle qu’elle est ‘sortie des mains’ du Créateur, sans avoir jamais été détruite.” Ibid., pp. 98-99


[26] A obra de arte de Ṣadr al-Dīn Shīrāzī, al-Ḥikmat al-muta’āliyah fi’l-asfār al-arba’ah, é não apenas uma summa da filosofia e teologia Islâmica mas também uma fonte para a história do pensamento Islâmico e também para as ideias pré-Islâmicas com que se depararam os filósofos e teólogos Muçulmanos. Mullā Ṣadrā recorre a filosofias antigas e também a filosofias Islâmicas em quase todas as discussões e assume como garantido o ponto de vista da philosophia perennis. Pode-se encontrar o mesmo ponto de vista noutros trabalhos seus, tal como Ḥudūth al-ālam. Ver S.H. Nasr, Ṣadr al-Dīn Shīrāzī and His Transcendent Theosophy, Londres, 1978; e idem, “Mullā Ṣadrā as a Source for the History of Muslim Philosophy,” Islamic Studies 3/3 (set. 1964): 309-14.


[27] “Religio é o que ‘liga’ (religat) o homem ao Céu e envolve a totalidade do seu ser; enquanto a palavra ‘traditio’ está relacionada com uma realidade mais extrovertida e por vezes mais fragmentada, para além de sugerir um panorama retrospectivo. No seu nascimento, uma religião ‘liga’ o homem ao Céu desde o momento da sua primeira revelação, mas não se torna uma ‘tradição’, ou admite mais do que uma ‘tradição’, até duas ou três gerações mais tarde.” Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 144.


[28] A multiplicidade das formas religiosas à luz do conhecimento unitário e sagrado será tratado no cap. 9 deste trabalho.


[29] O livro de R. Guénon, Le Roi du monde, Paris, 1927, deu também aso a muitas especulações deste género por parte de pessoas com esse tipo de tendências.


[30] Falando estritamente, apenas o que provém da Origem pode ser original. Isto é precisamente o modo como a perspectiva tradicional vê a originalidade, em contraste com a perspectiva anti-tradicional para a qual a originalidade está divorciada quer da verdade quer da presença sagrada e, por conseguinte, de tudo o que compreende a religião ou a tradição como tal.


[31] Esta distinção é tão fundamental que até mesmo os sofistas que tentam refutar a realidade do real vivem e atuam ainda assim no pressuposto da intuição da distinção entre o real e o irreal.


[32] É esta ideia de sagrado como totalmente outro que foi desenvolvida por R. Otto no seu bem conhecido trabalho The Idea of the Holly, trad. J. Harvey, Nova Iorque, 1958, pp. 12ff., e que tanto atraiu a atenção de académicos da religião ao longo das décadas recentes.


[33] Por exemplo, toda a arte sacra é arte tradicional mas nem toda a arte tradicional é arte sacra. A última compreende aqueles aspectos da arte tradicional que se relacionam diretamente com os símbolos, imagens, ritos, e objetos que lidam com a religião que reside no coração da tradição em questão. Trataremos deste assunto com maior detalhe no cap. 8, no qual se trata da arte sacra.


[34] Sobre estas dimensões do Islão ver S. H. Nasr, Ideals and Realities of Islam; quanto ao exoterismo e esoterismo em geral, ver F. Schuon, the Transcendent Unity of Religions, trad. P. Townsend, Nova Iorque, 1975, cap. 2 e 3.


[35] “Avançámos com a visão de que o processo de enunciação dogmática durante os primeiros séculos foi um de Iniciação sucessiva, ou numa palavra, que existiu na religião Cristã um exoterismo e um esoterismo. Ainda que possa desagradar historiadores, encontram-se vestígios incontestáveis do lex arcani na origem da nossa religião.” P. Vuillaud, Études d’ésoterism catholique, citado por Schuon, Transcendent unit, p. 142.


[36] É comummente esquecido que um Śankara, que era o jñani no Hinduismo, que compôs hinos a Śiva e que um Ḥāfiz ou Rūmī, que constantemente falavam em rejeitar as formas (Ṣurah) em favor da essência (ma’nā – literalmente “significado”) nunca falhavam as preces diárias. Eles transcendiam a forma desde cima, não desde baixo, e eram assim os primeiros a reconhecer a necessidade das formas exotéricas para a preservação do equilíbrio da coletividade humana.


[37] Ver S.H. Nasr, “Between the Rim and the Axis,” em Islam and the Plight of Modern Man, Londres, 1976, cap. 1.


[38] Sobre o significado do esoterismo ver F. Schuon, Esoterism as Principle and as Way, trad. por William Stoddart, Londres, 1981, Introdução; e L. Benoist, L’Esotérism, Paris, 1963.


[39] “…Ortodoxia é o princípio da homogeneidade formal apropriada para qualquer perspectiva espiritual; é portanto um aspecto indispensável de toda a intelectualidade genuína”- Schuon, Stations of Wisdom, trad. G. E. H. Palmer, Londres, 1961.


[40] É de muito interesse que o termo ortodoxia não seja utilizado nas línguas Orientais nem mesmo no Árabe dominado pelo Islão, o qual sustenta tantas parecenças com a Cristandade. Quando se estuda a tradição Cristã percebe-se, contudo, quão essencial é este termo para a descrição dos vários aspectos do próprio Islão e, diga-se, quão enganador é quando os orientalistas chamam de não ortodoxo o Shī’ism e o Sufismo porquanto ambos pertencem à totalidade da ortodoxia Islâmica, bem como à ortoprática. Ver Nars, Ideals and Realities of Islam, caps. 5 e 6.


[41] No Islão Sunita, a ummah ela própria protege a pureza e a continuidade da tradição; logo o princípio de ijmā ou concenso, o qual foi interpretado como o consenso dos escolásticos religiosos (‘ulamā’) e também como a comunidade como um todo. No Islão Shī’ite, a função de preservação da tradição é desempenhada pelo próprio Imã. Ver ‘Allāmah Tabātabā’ī, Shī’ite Islam, trad. S. H. Nasr, London and Albany (N.Y.), 1975, pp. 173ff.


[42] No Judaísmo e no Islão a lei é uma parte integral da religião e deriva diretamente da revelação. É portanto tradicional por definição. Mesmo na Cristandade, a qual não revelou uma lei, a lei que foi adoptada pela civilização Cristã na Idade Média das leis Romana e convencional era mesmo assim tradicional, ainda que, devido à menos direta relação desta lei para com a fonte da revelação Cristã, se tenha tornado mais fácil rejeitar os aspectos sociais da civilização Cristã durante as revoltas contra a tradição Cristã do que teria sido possível no Islão ou no Judaísmo.


[43] Ver R. Guénon, Autorité spirituelle et pouvoir temporel, Paris, 1929 ; A. K. Coomaraswamy, Spiritual Authority and Temporal Power in the Indian Theory of Government, New Haven, 1942; S. H. Nasr, “Spiritual and Temporal Authority in Islam”, em Islamic Studies, Beirut, 1967, pp. 6-13.


[44] Existem vários trabalhos notáveis sobre a tradição no seu aspecto social em línguas Europeias tais como G. Eaton, The King of the Castle: Choice and Responsibility in the Modern World, Londres, 1977; M. Pallis, “The Active Life,” no seu The Way and the Mountain, Londres, 1960, pp. 36-61; A. K. Coomaraswamy, The Religious Basis of the Forms of the Indian Society, Nova Iorque, 1946; R. Guénon, Introducing to the Study of the Hindu Doctrines, Pt. 3, caps. 5 e 6; e F. Schuon, Castes and Race, trad. Marco Pallis e Macleod Matheson, Londres, 1981.


[45] Para uma discussão sobre estas perspectivas intelectuais no Islão ver Nasr, Islam Life and Thought.


[46] Em séculos posteriores a “teosofia” associou-se com Boehme e a sua escola de certa forma substituiu a metafísica dos sábios Cristãos anteriores. O termo “teosofia”, ainda que de origem Grega, não se tornou comum na vida intelectual Cristã antes da Renascença.


[47] “Il est impossible de nier que le plus illustres soufis, tout en étant ‘gnostiques’ par définition, furent en même temps un peu théologiens et un peu philosophes, ou que les grandes théologiens furent à la fois un peu philosophes et un peu gnostiques, ce dernier mot devenant s’entendu dans sons sense propre et non sectaire. “ Schuon, Le Soufism, voile et quintessence, Paris, 1980, p. 105.


[48] Existe alguma diferença no modo como a filosofia foi criticada pelos autores tradicionais, sendo a critica de Schuon mais ténue e sombreada do que a de Guénon, o qual visando esclarecer o contexto de exposição e apresentação das doutrinas tradicionais se opôs categoricamente à filosofia (à excepção do Hermetismo) e identificou toda a filosofia com o pensamento profano. Ver Guénon, Introduction, pt. 2, cap. 8. A apreciação mais positiva de Schuon pela filosofia, na qual distingue entre filosofia tradicional e racionalismo moderno, pode ser encontrada em muitos dos seus últimos escritos , esp. “Sur les traces de la notion de la philosophie,” no seu Le Soufisme, pp. 97-107.


[49] Ver A. K. Coomaraswamy, “On the Pertinence of Philosophy,” em Contemporary Indian Philosophy, ed. S. Radhakrishnan, Londres, 1936, pp. 113-34; relativamente ao que concerne a tradição Islâmica ver S. H. Nasr, “The Meaning and Role of ‘Philosophy’ in Islam,” em Studia Islamica 36 (1973): 57-80.


[50] Sobre o significado de teosofia ver “Theosophie” por A. Faivre, em Encyclopedia universalis.


[51] “Quando se sonda o arquétipo, a origem última da forma, apercebemo-nos então que está ancorado no mais elevado, não no menos…. Aquele que se deslumbra com um símbolo formal poder permanecer vivo não apenas por milénios, mas que, como deveremos ainda aprender, pode brotar novamente para a vida depois de um intervalo de milhares de anos, deveria recordar-se a si próprio que o poder do mundo espiritual, que forma uma parte do símbolo, é de duração eterna.” De W. Andrae, Die Ionische Säule; Bauform oder Symbol?, Berlim, 1933, pp. 65-66, citado por A. K. Coomaraswamy, The Vedas: Essays in Translation and Exegesis, Londres, 1976, p. 146.


[52] Sobre esta matéria ver Guénon, The Reign of Quantity and the Signs of Times, trad. Lord Northbourne, Baltimore, 1973.


[53] Se há um século atrás era necessário ler T. S. Eliot para se tomar consciência do carácter patético da condição espiritual do homem moderno, nos dias de hoje existem numerosos estudantes da sociedade humana que tomaram consciência de que existe algo de profundamente errado com as premissas sobre as quais o modernismo se baseia e que procuraram estudar a sociedade moderna a partir deste ponto de vista. Ver, por exemplo, os bem conhecidos trabalhos de P. Berger tais como The Homeless Mind: Modernization and Consciousness, Nova Iorque, 1973; e os de I. Illich, Celebrations of Awareness, Nova Iorque, 1970; idem, Energy and Equity, Londres, 1974; idem, Tools for Conviviality, Nova Iorque, 1973; e idem, Tradition and Revolution, Nova Iorque, 1971. Existem muitos outros criticismos da tecnologia, da ciência, da ordem social, etc., por outras individualidades importantes tais como L. Mumford, J. Ellul, e Th. Roszak. Roszak registou na realidade muitos destes criticismos de vários aspectos do mundo moderno no seu Where the Wasteland Ends, The Unfinished Animal, e Person/Planet, Nova Iorque, 1980. Apesar da aparência de tais trabalhos, contudo, é surpreendente que os proponentes do modernismo que domina um mundo que se orgulha de ser crítico esteja em tamanha falha em termos de espírito crítico quando se trata de examinar aquelas premissas e suposições sobre as quais a visão modernista do mundo se baseia. “O passado, do qual sai a tradição, é relativizado [pelos relativizadores modernos] em termos desta ou daquela análise socio-histórica. O presente, contudo, permanece estranhamente imune à relativização. Por outras palavras, os escritores do Novo Testamento são vistos como afligidos com uma consciência falsa enraizada no seu tempo, mas o analista contemporâneo toma a consciência do seu tempo como uma bênção intelectual imiscível. Os utilizadores da eletricidade e do rádio são intelectualmente colocados acima do Apóstolo Paulo.” P. Berger, A Rumor of Angels: Modern Society and the Rediscovery of the Supernatural, Nova Iorque, 1969, p. 51.


[54] Sobre o criticismo tradicional do mundo moderno ver R. Guénon, The Crisis of the Modern World, trad. M. Pallis e R. Nicholson, Londres, 1975; e A. K. Coomaraswamy, “Am I My Brother’s Keeper?” no seu The Bugbear of Literacy.


[55] Referindo-se ao seu encontro com autores tradicionais, J. Needleman escreve, “Estes saíram para a matança. Para eles, o estudo das tradições espirituais era uma espada com a qual se destrói as ilusões do homem contemporâneo.” Needleman (ed., The Sword of Gnosis, Baltimore, 1974, p. 9.


[56] “Quando olhamos para os corpos humanos, aquilo que notamos habitualmente são as suas características da superfície, que obviamente diferem marcadamente. Entretanto, no interior as espinhas que suportam estas fisionomias heterogéneas são estruturalmente muito semelhantes. Passa-se o mesmo com as visões de conjunto do homem. Diferem externamente mas internamente é como se uma ‘geometria invisível’ tivesse estado a trabalhar em toda a parte para conformá-las a uma Verdade única. A única excepção notável somos nós próprios: a nossa Ocidental e contemporânea visão de conjunto difere na sua própria alma daquilo que poderia de outra forma ser chamado de ‘a unanimidade humana’… Se sucedermos na sua correção [a leitura errada da ciência moderna] poderemos reintegrar a raça humana.” H. Smith, Forgotten Truth, Nova Iorque, 1976, pp. Ix-x.


[57] O bem conhecido “Verso da Luz” é como se segue: “Allah é a Luz dos céus e da terra. A similitude da Sua luz é como um nicho no qual está uma lamparina. A lamparina está num vidro. O vidro é como se fosse uma estrela. (Esta lamparina) alumia a partir de uma árvore abençoada, uma oliveira nem do Este nem do Oeste, cujo azeite quase brilharia para fora (de si próprio) ainda que fogo algum lhe tocasse. Luz sobre luz, Allah guia para a Sua luz quem Ele quer. E Allah fala à humanidade em alegorias, pois Allah é Conhecedor de todas as coisas.” Corão XXIV; 35 – trad. Pickthall.


[58] Goethe, que leu o Corão quando tinha vinte e três anos, escreveu (no seu Aus dem Nachlass):


So der Westen wie der Osten

Gehen Reines die zu kosten

Lass die Grillen, lass die Schale

Setza dich zum grossen Mahle.

[59] Tal como já foi mencionado, o alastramento do modernismo pelo Oriente geográfico destruiu em certa medida as civilizações tradicionais de várias partes do mundo, mas isto não significa que a dimensão sapiencial das tradições Orientais em ambos os seus aspectos doutrinais e operativos, que são de especial importância para este estudo, tenha sido destruídas.

Fora da Tradição não há Iniciação


Ando com o meu pavio cada vez mais curto. Quanto mais besteiras, idiotices, sandices, loucuras, absurdos, invencionices, charlatanismos etc. eu vejo, leio e ouço, mais esse pavio se encurta!


Daí eu me pergunto: o que está acontecendo para existir tudo isso? Confesso que não tenho uma resposta para dar, mas acredito que isso esteja acontecendo pela banalização do sagrado e pelo abandono da Tradição. Diariamente a Tradição é aviltada e esquecida, jogada no lixo como algo de “velhos” e “ultrapassados”. Sempre falo e escrevo, parafraseando o perenialista René Guénon, as seguintes frases: “Sem Tradição não há Iniciação”, “Fora da Tradição não há Iniciação” e “Sem a Tradição não há Salvação”; assim, é meu dever, como Sacerdote e defensor da Tradição, tentar esclarecer e evitar que isso se perpetue.


Além disso, há que pensarmos que enquanto há os pulhas que enganam, há os bobocas ou ingênuos de boa fé que são enganados. Como se diz por aí: “todos os dias nasce um trouxa e um esperto e eles vão se encontrar”. Ora, trouxa, neste mundo, todo mundo já foi, pelo menos uma vez; o duro é permanecer trouxa pelo resto da vida!


Contudo, onde quero chegar? O que quero dizer com essa introdução? É simples: quero evitar que as pessoas continuem sendo trouxas. Não se quer ou se deseja um monte de espertos, mas pessoas esclarecidas, de verdade!


Sabe-se que com a modernidade, o pensamento cartesiano de René Descartes (considerado o “pai” da filosofia moderna), o positivismo de Augusto Comte e o niilismo de Nietzsche, influenciaram e influenciam o modo como as ciências e a vida são vistas; influenciaram e influenciam, do mesmo modo e na mesma proporção, a visão das religiões, das religiosidades e dos religiosos.


Vamos, então, fazer algumas análises sobre as três correntes de pensamento filosófico que citei:


Cartesianismo: para René Descartes (um teísta cristão) um objeto só será analisado adequadamente pelo uso da razão, devendo-se decompor este objeto em partes isoladas e distintas, fragmentando-o e dividindo-o a fim de o compreender, estudar e criticar e, ao final, classificar as partes do objeto, “encaixotando-as” em categorias, colocando-as em ordem de importância hierárquica. Esta forma de pensamento nós vemos principalmente na Umbanda, que classifica, divide e estabelece as hierarquias do mundo espiritual, influência clara do espiritismo kardecista, sobejamente influenciado pelo pensamento cartesiano. Vemos, ainda, as classificações dos Exus, Caboclos, Orixás etc, na qual tudo deverá estar organizado hierarquicamente e nada pode estar fora disso. Tudo deverá ter seu lugar, arrumadinho, como se fosse numa bela estante de livros.


Positivismo: para Augusto Comte o objeto em análise só poderia ser observado verdadeiramente pelo uso da experimentação e de sua classificação a fim de obter os verdadeiros dados, tendo a ciência ou experimento científico como único recurso para investigação do objeto. O pensamento positivista é marcado pela ideia de que a humanidade avança de uma época bárbara e mística para outra civilizada e esclarecida, em melhoramentos contínuos. Esta teoria influenciou enormemente o espiritismo kardecista e a Teosofia de H. P. Blavatsky que, por sua vez, também influenciaram grande parte das correntes umbandistas.


Niilismo: para ARALDI (2008, p. 5) “o niilismo tem suas raízes na Antiguidade (em Sócrates, Platão e no cristianismo), devido a uma doença da vontade, fisiologicamente condicionada, a uma tendência negadora da vida que inventa o supra-sensível como um refúgio para sua incapacidade de viver”. Para Nietzsche, expoente desta corrente filosófica, os valores e a moral são inúteis, afirmando que nada é real e que tudo o que existe é porque os seres humanos dizem que é. Nietzsche se coloca como inimigo de qualquer forma de religião, em especial do Cristianismo e do Budismo, chamando-os de religiões da decadência. Nietzsche desenvolve um pensamento no qual afirma que a democracia e a igualdade entre os seres humanos é uma falácia, sendo que o homem precisa evoluir para algo além do próprio homem. A teoria niilista influencia enormemente os círculos ocultistas do Séc. XIX e XX, especialmente Aleister Crowley, cuja obra é permeada de conceitos oriundos daquela teoria, além do pensamento satanista contemporâneo, este também extremamente influenciado pelo niilismo.


Assim, o evolucionismo mascarado nestas três correntes de pensamento filosófico vai apoiar a ideia de que “nada é verdadeiro, tudo é relativo”. Desta forma não haveria nenhum valor absoluto ou verdade, moral, beleza, religião, dogma; nada seria estável, apenas a evolução, esta sendo a única ideia absoluta. Ora isto é uma falácia: se nada é absoluto, a evolução também não o é! Assim, o evolucionismo não pode prosperar! Notem, então, que há um paradoxo insofismável.


Mas, o que tudo isso tem a ver com o que estou discutindo? Bem, não podemos negar, em nenhuma hipótese, a influência que o espiritismo kardecista exerceu e exerce nas manifestações religiosas afro-brasileiras. O espiritismo kardecista é, por excelência, evolucionista, sendo que a premissa básica e fundamental do espiritismo está ancorada na crença “da imortalidade da alma e na evolução espiritual” (AURELIANO, 2011, p. 31) e, de acordo com Alan Kardec, “todos os espíritos foram criados por Deus imperfeitos e a todos foi dado o livre-arbítrio para fazerem as escolhas necessárias a sua evolução espiritual” (id., ibid.).


Alan Kardec abusa da boa vontade de seus leitores! Como é possível a ele acusar Deus de fazer imperfeita a Sua criação por Seu bel-prazer? Então, segundo Kardec, podemos pensar que Deus, em um dia em que não tinha o que fazer, pensou assim: “Vou criar seres imperfeitos, para que eles evoluam à perfeição!” Deus, então, criou deliberadamente espíritos imperfeitos? Para quê? Ora, poupem-me!


Esta noção de evolucionismo presente na obra de Kardec, especialmente a evolução espiritual, está relacionada, além das teorias presentes em algumas religiões orientais, tais como o hinduísmo e o budismo (apesar de haver diferenças doutrinais e teológicas gritantes e até antagônicas entre elas e o espiritismo), às “teorias evolucionistas que marcaram as ciências naturais e humanas na segunda metade do século XIX” (AURELIANO, 2011, p. 32), especialmente as doutrinas positivista e cartesiana. “Assim, a negação do sobrenatural e da magia como formas de explicação para as manifestações dos espíritos, a exclusão do sagrado e dos ritos na conformação da prática da doutrina e o uso de experimentos para comprovar a comunicação com o mundo dos mortos seriam meios de fazer do espiritismo uma forma de conhecimento, destinada ao estudo das relações entre o mundo físico visível e o invisível, pautada no raciocínio lógico” (id., p. 33). Nada mais racional e positivista, não é mesmo? Assim, pela influência que as religiões afro-brasileiras sofrem do espiritismo, os seguidores dessas religiões acabam por criar teorias que se enquadram no pensamento positivista e cartesiano no qual o espiritismo kardecista se estriba.


Outra questão que não podemos nos esquecer é a influência que o ocultismo (abrangendo todo o movimento ocultista dos Séc. XVIII ao XX) e a teosofia de H. P. Blavatsky exerceram em religiões afro-brasileiras. Vemos, por exemplo, teorias do Marquês Saint-Yves d’Alveydre e de seu mestre Fabre d’Olivet, do abade Eliphas Levi e do médico Papus, entre outros, sendo adaptadas por alguns segmentos umbandistas, passando a fazer parte da doutrina deles. Outra influência que certos cultos afro-brasileiros sofreram foi da teurgia e da goetia, esta especialmente desenvolvida pelo poeta Aleister Crowley.


Assim, tudo ficou um balaio de gatos, sem levar em conta aquilo que a Tradição original, que deu início aos cultos afro-brasileiros, pregava, tornando-se esta Tradição algo ultrapassado e que teria que evoluir com o enxerto de inúmeras e estranhas teorias, totalmente diversas ao sentido original que aqueles cultos possuíam. Podemos observar, hoje, a Gnose de Samael Aun Weor e a teoria dos Mestres Ascensionados de H. P. Blavatsky (como a famosa chama violeta atribuída ao Conde de Saint Germain) se transformar em material doutrinário umbandista, por exemplo, havendo um rompimento total com aquilo que era proposto pelos primeiros praticantes dos cultos e religiões afro-brasileiras, especialmente a Macumba carioca e a Cabula (ambas extintas).


Sempre ouço: “Ah, as coisas evoluem” e isso me arrepia, irrita e apavora! Como assim!? As coisas evoluem!? O que isto quer dizer!? Respondo: nada, pois a Tradição é Tradição e não nos compete mudá-la ou contradizê-la, mas seguí-la. Se não concordamos com algo da Tradição a qual seguimos, devemos abandoná-la, devemos deixá-la de lado e sermos honestos conosco mesmos e com os outros e, principalmente, com a própria Tradição.


Exemplifico: se você é do Candomblé e não admite o sacrifício, palavra que vem da junção de duas palavras latinas sacrum (divino, sagrado) e officium (dever, serviço, cortesia, ocupação), ou seja, um “dever sagrado” com o qual não concorda, você deve abandonar o Candomblé. A mesma situação se deve à Kimbanda, se você não concorda com o sacrifício de animais não continue nela. Em ambos os casos você pode, muito bem, ir para a Umbanda que não sacrifica animais. Assim, você estará sendo verdadeiro e não abandonando a Tradição.


Outro problema, oriundo do abandono da Tradição é a proliferação de “Sacerdotes” e “Sacerdotisas” auto-declarados, que não passaram pela experiência e formação de um lugar de culto afro-brasileiro, que não possuem a preparação adequada e que resolvem abrir sua Casa, mesmo não tendo nenhuma condição para isso. Como não têm experiência, nem mesmo base para exercerem o sacerdócio, começam a enxertar coisas (principalmente daquilo que leem em livros de outros enxertadores ou que aprendem em cursos, inclusive à distância). Como inserem assuntos que agradam ao público ignorante e malemolente, este passa a seguí-lo, tendo-o como pessoa “iluminada” e capaz de conduzi-los por um caminho espiritual. Ledo engano! São cegos conduzidos por outro cego (sem nem uma bengalinha para ajudar!).


Muito pior são aqueles que se acreditam “avatares” e “mestres”, que se arvoram de um conhecimento iniciático que não possuem, pois não passaram por nenhum rito iniciatório e se propõem a introduzir pessoas naquilo em que não foram iniciados. Acreditam, piamente, que possuem uma “autorização do astral” para fazerem o que bem entendem. Isto é um acinte, que afronta totalmente a Tradição. Neste sentido, vamos ver o que diz alguns mandamentos de Ifá (um dos sistemas filosófico-religiosos mais completos do mundo) sobre o assunto (extraídos do Odú Ìká-Òfún):


1º. Não digam o que não sabem!


Interpretação: Um sacerdote não deve enganar ao seu semelhante acenando com conhecimentos que não possui. E jamais dizer o que não sabe, ou seja, passar ensinamentos incorretos ou que não tenham sido transmitidos pelos seus mestres e mais velhos ou adquiridos de formas legítimas. É necessário o conhecimento verdadeiro para a prática da verdadeira religião. Quem abusa da confiança do próximo, enganando-o e manipulando-o através da ignorância religiosa, sofrerá graves conseqüências pelos seus atos. A natureza se incumbirá de cobrar os erros cometidos e isto se refletirá em sua descendência espiritual.


2º. Não façam ritos que não saibam fazer!


Interpretação: Não se podem realizar rituais sem que se tenha investidura e conhecimento básico para realizá-los. Não se pode fazer aquilo que não sabe ou que não aprendeu.


(…)


12º. Não desrespeitem os mais velhos, a sabedoria está com eles.


Interpretação: Deve-se respeitar e tratar muito bem aos mais velhos, principalmente os mais antigos nos cultos e religiões afro-brasileiras. O respeito aos mais velhos é um dos principais fundamentos de uma religião onde, reconhecidamente, antiguidade é posto. Faltar-lhes com o devido respeito e atenção é como lhes retirar o bastão em que se apóiam. Aquele que sabe respeitar, acatar e amar aos seus mais velhos, sem dúvida receberá o mesmo tratamento quando também caminhar apoiado no seu próprio bastão. Os mais velhos, pelas experiências vividas, representam verdadeiros mananciais de sabedoria onde cada um deve procurar beber um pouco, saciando a sede de saber. São livros sagrados, cujas páginas devem ser lidas com paciência e carinho. Religiões que, durante séculos incontáveis, tiveram seus fundamentos transmitidos oralmente, valorizam sobremaneira, aqueles que são depositários destes conhecimentos. Um velho, por mais obtuso que possa parecer à primeira vista, sempre terá algo, obtido nos longos anos vividos, a ensinar. Devemos lembrar sempre que, se antiguidade é posto, saber é poder!


René Guénon (1946, p.9) nos esclarece sobre a iniciação e a tradição: “(…) a essência e a meta da iniciação são sempre e por toda parte as mesmas; só as modalidades diferem, por adaptação aos tempos e aos lugares; e agreguemos, em seguida, para que ninguém possa se equivocar, que essa adaptação, para ser legítima, não deve ser, nunca, uma ‘inovação’, quer dizer, o produto de uma fantasia individual qualquer, senão que, como a das formas tradicionais em geral, deve proceder sempre, em definitivo, de uma origem ‘não humana’, sem a qual não poderia haver realmente nem tradição, nem iniciação, mas algo dessas ‘paródias’ que encontramos tão frequentemente no mundo moderno, que não vêm de nada e que não conduzem a nada e que, assim, não representam verdadeiramente, se se pode dizer, mais que nada pura e simplesmente, quando não são instrumentos de algo muito pior”.


Como se pode ver, o afastamento da Tradição e do tradicional enfraquece a tudo e a todos. Se, por algum motivo, você não concorda com algo que se pratica em sua Casa espiritual ou que se faça em seus ritos e cerimônias, saia, encontre outro lugar tradicional, diga-se, para continuar seu trabalho. O que não se pode fazer é sair e inventar o seu próprio sistema e considerá-lo melhor e mais “evoluído” que o anterior e começar uma vida sacerdotal sem nenhum preparo para tanto. Diplomas de Sacerdote não habilitam ninguém a exercer o Sacerdócio. Somente anos de experiência e dedicação em uma Casa de tradição, aprendendo no dia a dia, habilitará alguém a ser, de verdade, um Sacerdote. Não seja mais um desses tantos pseudos Sacerdotes que existem por aí!


REFERÊNCIAS

ARALDI, C. L.. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. São Paulo: FFLCH/USP, Grupos de Estudos Nietzsche, Cadernos Nietzsche nº 5, p. 75-94, 1998.

AURELIANO, Waleska de Araújo. Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2011.

GUENON, R.. Aperçus sur l’Initiation. Paris: Les Éditions Traditionnelles, 1946.

Angeologia judaico-cristã e a Umbanda


Não se pode esquecer que a Umbanda se desenvolveu, assim como a população brasileira, por meio de três grupos humanos: brancos (especialmente formada por portugueses e seus descendentes), indígenas brasileiros e africanos escravizados.


Neste texto, ater-se-á exclusivamente às influências que a população branca brasileira imprimiu ao desenvolvimento da Umbanda, pois foi essa que trouxe a angeologia judaico-cristã, no decorrer do período colonial, ao seio da Umbanda.


Sabe-se que o catolicismo popular português, com atividades consideradas “errôneas” do ponto de vista ortodoxo, como, por exemplo, excessivo apego aos santos e às práticas de benzimento, invocando-se as forças dos santos e anjos para fins diversos; uso de escapulários e cruzes como talismãs; jejuns ascéticos visando à limpeza corporal etc deu à Umbanda muitas das práticas realizadas até hoje. Desse mesmo grupo humano a Umbanda sofreu influências do espiritismo, ocultismo e da teosofia, que se destacavam na classe média brasileira, sob influência do que havia, na mesma época, na Europa.


Assim, de alguma forma, a angeologia judaico-cristã acabou entrando na Umbanda, enviesada, é claro, que foi se desenvolvendo especialmente a partir dos anos 1950. Com o tempo essas associações foram ficando mais fortes, sendo criadas várias teorias, que tentavam associar os Orixás, divindades típicas do panteão religioso ioruba, com astrologia, magia medieval, cromoterapia e outras práticas estranhas ao universo afro-religioso do qual a Umbanda se afastou ao embranquecer as práticas das Macumbas cariocas, do Candomblé de Caboclo, dos Calundus e de outras manifestações religiosas de descendência africana, as quais não se encaixavam no ideal branco-europeu.


Para que a Umbanda fosse legitimada era necessário que ela quebrasse sua ligação com a África e, por consequência, com qualquer coisa que lembrasse os negros; ademais, era necessário um mito criacional que afirmasse, sem dúvida, essa legitimação: por isso a escolha do 15 de novembro, dia da proclamação da República, como data de sua “anunciação”, bem como a escolha de um Caboclo como porta-voz do “mundo espiritual”, em um momento em que a literatura romântica brasileira e o brasilianismo buscavam estabelecer, no Caboclo (indígena), o símbolo da nação. Para temperar esse caldo, o Caboclo que se manifestou no dia 15 de novembro de 1908 não era um simples índio, mas a reencarnação de um sacerdote jesuíta, o Padre Malagrida. Dessa forma, a Umbanda poderia se inserir, de forma legítima, no universo religioso brasileiro, pois estava totalmente de acordo com os anseios dos ideais brancos-europeus: era cristã, tinha as bênçãos da Igreja Católica e era espírita (por isso ela se chamava “espiritismo de Umbanda”, denominação pela qual foi conhecida por muitos anos).


Nessa esteira, a angeologia judaico-cristã é inserida na Umbanda, com a tentativa de colocar os Orixás como parte integrante do mundo angélico, fazendo-se associações espúrias entre Orixás e anjos.


De forma equivocada, como várias outras, autores umbandistas passaram a desenvolver teorias nas quais os Orixás deveriam ser “encaixados” na angeologia judaico-cristã, de forma a serem legitimados, assim como houvera sido feito com a própria Umbanda em seu desenvolvimento. Entretanto, ao se debruçar na hierarquização dos anjos do judaísmo vemos que há diferenças com o catolicismo, bem como com as funções que cada um deles possui na teologia de cada religião. Abaixo estão exemplos da hierarquia angélica, com seus respectivos autores, lembrando que ela está em ordem de importância, do maior para o menor:


ZOHAR (OBRA CABALISTA JUDAICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XI):


Malakhim

Erelim (ou Arelim)

Seraphim

Khayyot ha-Kodesh

Ophanim

Hashmalim

Elim

Elohim

Bene Elohim

Ishim


MAIMÔNIDES (EM MISHNE TORAH, OBRA JURISPRUDENCIAL JUDAICA, ESCRITA PROVAVELMENTE NO SÉC. XII):


Ḥayyot ha-Kodesh

Ophanim

Arelim (ou Erelim)

Hashmalim

Seraphim

Malakhim

Elohim

Bene Elohim

Kerubim

Ishim


MASEKET ATZILUT (OBRA CABALISTA JUDAICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XIV)


Seraphim

Ofanim

Cherubim

Shinnanim

Tarshishim

Ishim

Hashmalim

Malikhim

Bene Elohim

Arelim (ou Erelim)


SÃO CLEMENTE (EM CONSTITUIÇÕES APÓSTOLICAS, PROVAVELMENTE SÉC. I)


Serafim

Querubim

Aeons

Hostes

Potestades

Virtudes

Tronos

Arcanjos

Anjos

Dominação


SÃO JERÔNIMO (EM EPÍSTOLAS, ESCRITAS PROVAVELMENTE NO SÉC. IV)


Serafins

Querubins

Potestades

Dominação

Tronos

Arcanjos

Anjos


SANTO AMBRÓSIO (EM APOLOGIA PROFÉTICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XI)


Serafins

Querubins

Dominação

Tronos

Principados

Potestades

Virtudes

Arcanjos

Anjos


SÃO TOMÁS DE AQUINO (EM SUMA TEOLÓGICA, ESCRITA NO SÉC. XIII)


Serafins

Querubins

Tronos

Dominação

Virtudes

Potestades

Principados

Arcanjos

Anjos


Como se pode observar não há um consenso na hierarquização dos Anjos, havendo discrepâncias, mesmo entre os autores que professam a mesma religião.


Assim, se não há consenso entre judeus e católicos como esperar que os umbandistas, em sua maioria cristãos, com pequeno conhecimento teológico dessa religião, podem categorizar os Orixás, colocando-os na hierarquia angélica judaico-cristã, fazendo associações impossíveis entre eles? Qual é o objetivo disso? O que se espera? Será que ainda se precisa legitimar as práticas umbandistas por meio das religiões ocidentais? Até quando o pensamento colonizador martelará a cabeça dos escritores umbandistas, fazendo-os buscar nas religiões ocidentais as respostas para suas dúvidas?


Precisa-se dar um basta! Se se quer falar em Orixá, deve-se buscar, incessantemente, o conhecimento vivo do povo ioruba, que fará compreender, sem dúvidas, o que eles são, como são cultuados, o que representam em nossas vidas e como se poderá trazer seu Axé para nós. Enquanto se permanecer preso na repetição dos dogmas judaico-cristãos, não será possível compreender a profundidade e a beleza que a Umbanda possui!

Vodu (Vudu, Voodoo) Gnóstico


Essa é uma mensagem que escrevi a um Irmão que me questionava sobre as práticas do Vodu (Vudu, Voodoo) Gnóstico, que é baseado no livro de Michael P. Bertiaux, The Voudon Gnostic Workbook (1988), relançado por Weiser em 2007.


Caro Irmão,


Olha, na verdade não gosto das práticas do Voodoo Gnóstico, Umbanda Esotérica, Umbanda Gnóstica etc. Aprendi, com o tempo, que são adaptações que foram feitas sem critério nenhum. Essa licenciosidade que foi dada ao “mercado religioso” é, em minha opinião, e fazendo eco a René Guénon, práticas da Contra-Iniciação.


Sou tradicionalista e, por isso, penso da seguinte forma: as coisas devem ser realizadas dentro de cada tradição. Não basta mudarmos os nomes dos seres nos rituais, é preciso que saibamos muito bem com quem ou o com o quê estamos lidando.


Essas misturas (ou hibridismo, bricolage, amalgamento etc) foram feitas, forçosamente, pelos ocultistas, mormente os que foram influenciados por Crowley, que, em minha opinião, não é exemplo iniciático para ninguém. A história contada por Bertiaux a respeito de Jean-Maine há algum tempo está sendo questionada. É só olharmos a importância que a Magia Sexual tem no contexto dos livros de Bertiaux sobre a OTOA (Ordo Templi Orientis Antiqua), M7R (Monastério dos Sete Raios) e LCN (La Couleuvre Noire). Essa importância não existe em nenhuma prática africana tradicional, pois para os africanos o sexo não é tabu, como o é para o ocidental de formação judaico-cristã. Na tradição afro o sexo faz parte da vida.


Outra observação é que os rituais que normalmente se repetem (Cruz Cabalística, fechamento do círculo mágico, invocação de forças nos quadrantes etc) são cópias e/ou adaptações dos rituais da Golden Dawn.


Quando se trabalha com seres angélicos (Miguel, Rafael, Uriel etc) a coisa é fácil, pois eles são seres sem livre-arbítrio, portanto não podem nos prejudicar. Ao se trabalhar com outras potências não é assim. Esses seres deverão ser chamados dentro de um contexto com o qual já estão acostumados, que lhes seja familiar. Se não for assim eles não serão tão amigáveis como se espera deles. Se dermos sorte eles simplesmente nos ignorarão, porém pode não ser assim. Por exemplo, há seres na tradição Yorubá, que são chamados de Ajogun, os quais não apreciam os seres humanos. Eles podem ser manipulados por um Sacerdote que deverá ser uma sumidade em conhecimentos de ervas, rezas, oferendas etc para poder manipulá-los, sob pena de ficar doente ou vir a ser morto pelos Ajogun no caso de não saber como lidar com eles.


Recomendação de ordem prática que posso lhe dar é procurar fazer as coisas dentro de seu conhecimento. Se não sabe, não faça! Se não conhece o ser que está invocando/evocando não o chame! Se quiser enveredar pelo caminho dos Vodun, Inkice ou Orixá deverá estar sob a tutela de um Vodunon, Tata ti Inkice ou Babalorixá, não dá para ser diferente!


Eu, por exemplo, há anos, não faço nenhum tipo de prática adaptada, a não ser que ela esteja num contexto específico da tradição com a qual estou trabalhando. É por isso que damos tanta importância ao Ifaísmo (para os Yorubá) ou Faísmo (para os Fon, de onde veio o Voodoo), pois são práticas tradicionais.


Por mais que os espanhóis queiram tirar o Michael Bertiaux da jogada, dizendo que a NOTO (Novus Ordo Templi Orientis) ou a OTOA Latina (Ordo Templi Orientis Antiqua Latina) é um “revival” da tradição gnóstica original de Jean Maine, isso não se sustenta. Ao comparar o material disponível da NOTO ou OTOA Latina com os ensinamentos originais do Bertiaux, veremos que são idênticos. Nem as vírgulas foram mudadas. É por isso que Bertiaux e Courtney Willis processaram L.. Para evitar problemas a OTOA Latina foi fechada. Agora eu lhe pergunto: um sistema mágico, baseado quase que exclusivamente em práticas de magia sexual, notadamente as práticas homossexuais, é confiável? Em minha opinião, não! Se fosse uma prática tântrica, exclusivamente baseada no hinduismo, ótimo, estaria tudo bem. Ao misturá-la com o panteão Voodoo o negócio fica diferente.


Courtney Willis, Supremo e Absoluto Grão Mestre da OTOA, que não é bobo nem nada, se iniciou em Ifá e está estudando, verdadeiramente, a tradição a qual se ligou. Se não me engano ele foi, no ano passado (2010), para a Nigéria e para o Benin para se iniciar lá. O Benin é o país onde a prática do Voodoo nasceu.


Caro Irmão, é necessário que estejamos atentos com a contra-iniciação. René Guénon e os demais tradicionalistas sempre foram unânimes em nos alertar sobre isso. Tive muitas experiências desagradáveis com minhas práticas, acreditando que elas eram para minha melhora. Como disse anteriormente fui vítima. Não gostaria que ninguém mais o fosse!


Tenho muito carinho e apreço pelos Irmãos que foram ou são membros das Ordens Martinistas, por isso faço esse alerta. Não sou dono da verdade, ao contrário! Apenas sou bom observador. Olho as pessoas que estão há mais tempo do que eu nesse caminho e vejo como elas estão hoje. A maioria abandonou essas práticas.


Você pode fazer as práticas da OTOA e da LCN? Claro que pode, elas são bacanas. No entanto, elas precisam estar inseridas num contexto afro. É necessário que se use gin, as pembas, as oferendas, as invocações etc. Só assim, em minha opinião, é possível abrir os portais de comunicação entre nós e o mundo dos espíritos.

Cultura Yorùbá / Ifá


Algumas pessoas, por desconhecimento, creem que a Ẹ̀sìn Ìbílẹ, Ẹ̀sìn Agbàlayé, Ìṣẹ̀ṣe Làgbà ou Religião Tradicional Yorubá tenha alguma semelhança com a visão que possuímos sobre as religiões ocidentais ou com as religiões de matriz africana e afro-brasileiras. Infelizmente a palavra “RELIGIÃO” causa enorme confusão; vamos, então, separar as coisas.


A Ẹ̀sìn Ìbílẹ é uma tradição “esotérica” yorubá. Por ser “esotérica” é iniciática. É um compêndio de conhecimentos sociais, econômicos, políticos e religiosos de um povo, dentre os vários que existiram e existem na Nigéria e países vizinhos, mesmo antes da existência geopolítica do país Nigéria. Os yorùbá creem em Olódùmarè como Deus único, em Ọ̀rúnmìlà e outros Òrìṣà como transmissores da Sua palavra, com o objetivo de proporcionar, por meio do autoconhecimento, a melhora do comportamento e das atitudes humanas, apurando as regras de boa convivência.


Sendo a Ẹ̀sìn Ìbílẹ uma tradição esotérica do povo yorubá, ela possui pouca semelhança com as mais diversas religiões ocidentais, inclusive com as afro-brasileiras (no caso das que cultuam Òrìṣà, haja vista que algumas cultuam divindades de origem africana diversa da yorùbá), portanto, suas práticas ritualísticas possuem uma relação quase que inexistente com essas outras “religiões”, a começar, por ser formada com seis conjuntos distintos de cultos e rituais, onde um deles se conhece pelo nome de Ọ̀rúnmìlà ou “culto a Ifá”. Os demais são: culto de Òrìṣà (muitos), em que cada um deles possui seu próprio corpo literário e rituais específicos, culto de Egúngún (ancestrais), culto de Ìyàmi (as energias femininas), o culto de Orò e o culto de Ẹdan/Ògbóni.


O objetivo das iniciações é a permissão para o estudos de seus rituais, filosofias e para a capacitação de suas práticas, já que ninguém que não seja um iniciado poderá praticar integralmente seus rituais, salvo aqueles de cunho pessoal.


As iniciações também possuem por objetivo trazer informações acerca do iniciado e de sua vida para que possa, por meio do autoconhecimento, tornar-se uma pessoa melhor, ética e moralmente falando.


Outro objetivo das iniciações, em consequência da dedicação nos estudos do iniciado e de sua competência nos rituais, bem como a aceitação do seu destino, é formar “Sacerdotes”. Contudo, nem todos os iniciados serão praticantes do sacerdócio, muitos serão iniciados ao exercício dos rituais, contudo sem capacitação para promoverem atendimento, consultas, Ẹbọ ou iniciações. Os Sacerdotes serão aqueles que adquirirem conhecimento suficiente e tiverem o reconhecimento deste por seus iniciadores/orientadores, para que então possam realizar as práticas ritualísticas de atendimentos e consultas, realização de Ẹbọ e até promoverem iniciações naquilo que foram iniciados, inclusive, conseguirem prover seus sustentos destas práticas ritualísticas, já que um sacerdote dificilmente conseguirá ser um sacerdote hábil se possuir outra atividade profissional, devido ao tempo necessário para sua formação e capacitação.


Meu objetivo ao escrever este breve texto é ampliar conhecimentos sobre Ẹ̀sìn Ìbílẹ e trazer reflexões individuais, sem, contudo, desprestigiar outras formas de pensamento de outras pessoas.


“Seremos julgados pelo que falamos e fazemos, mas não seremos julgados pelo que os outros fazem com aquilo que falamos, já que cada um de nós é o único responsável pelo nosso próprio destino (atos)”. 

Umbanda Omolokô


O Babalorixá Ornato José da Silva afirma, em seu livro, “Culto Omolokô: os filhos do Terreiro”, que a palavra Omolokô é de origem Yorùbá e significa: Ọmọ (filho) e Oko (fazenda). A fazenda, para o autor, seria a zona rural onde esse culto, por causa da repressão policial que havia naquela época (início do século XX), era realizado, ou seja, na mata ou em lugar de difícil acesso, no interior das fazendas dos donos de escravizados.2


Talvez, por causa disso, possamos teorizar que hoje temos as denominações de “Terreiro” e “Roça” para os lugares onde os cultos afro-brasileiros e de matriz africana são realizados.


Podemos relacionar, também, o significado da palavra Omolokô com o Òrìṣà Oko, Orixá da agricultura ou com o Òrìṣà Irókò, Orixá que habita a árvore de mesmo nome e é cultuado no Candomblé. Segundo se diz, o orixá Oko era cultuado no Rio de Janeiro e era assentado junto com o Òrìṣà Ọṣọ́ọ̀si (Oxossi), pois Oko, assim como Ọṣọ́ọ̀si são caçadores, porém não há dados suficientes que possam confirmar isso.


Outra associação que podemos fazer é a sua relação ao vodun Loko cultuado pelo povo Fon-Jêje, que tem como correspondente yorùbá o orixá Irókò, já citado, e que por sua vez, corresponde ao Inkisi Tempo (Kitembo) na nação Angola de Candomblé. Na época em que os cultos religiosos de origem africana eram proibidos, esse Orixá foi sincretizado a Santo Onofre.


Pesquisas mais recentes dão conta de que a origem do nome Omoloko, também está ligado ao povo Loko. A tribo Loko estava dividida em tribos menores ao longo dos Rios Mitombo, Bênue e Níger, e no litoral de Serra Leoa. Sua cidade principal era Lokoja, que ficava muito próximo ao reino Yorùbá. Crê-se que alguns escravizados do povo Loko, no Brasil, vieram a formar o que alguns chamam de Nação Omolokô.


Segundo Taata Tancredo da Silva Pinto, organizador e o maior incentivador da Umbanda Omolokô, cujo nome iniciático (Sunna3) era Fọ̀lkétu Olóròfẹ̀, o culto Omolokô chegou ao Brasil proveniente do sul de Angola, onde era praticado por uma pequena tribo pertencente ao grupo Lunda-Quiôco, que ficava às margens do rio Zambeze, que lhes fornecia alimentação no período das cheias.


Para o músico e escritor Nei Lopes o Omolokô seria um…


antigo culto banto cuja expansão se verificou principalmente no Rio de Janeiro, na primeira metade do Séc. XX. O nome liga-se provavelmente ao quimbundo muloko, “juramento”; ou ao suto, moloko, “genealogia”, “geração”, “tribo”. Na Angola pré-colonial, Nganga-ia-Muloko era o sacerdote encarregado da proteção contra os raios.4


Podemos afirmar, então, que o nome Omolokô define um culto originário do Rio de Janeiro com práticas rituais e de culto aos Orixás, Bacuros/Inkices ou Voduns e que possui, também, culto aos Caboclos, Pretos-velhos, Exus e demais Entidades Espirituais da Umbanda em geral e outras entidades encontradas no Catimbó-Jurema, Toré, Babaçuê, Tambor de Mina etc.


O culto Omolokô é apontado por estudiosos do assunto e praticantes como um dos principais influenciadores da formação da Umbanda africanizada ao lado do Candomblé de Caboclo, da Cabula e do próprio Candomblé.5


Em que pese essa ligação principal com o Rio de Janeiro, sabe-se que o Omolokô organizou-se principalmente em algumas regiões do sudeste do país, que forneceram grande contingentes de migrantes para a capital do Estado da Guanabara. […] O Omolokô era forte na zona da mata mineira, em todo o estado do Rio, no nordeste paulista e em parte do Espírito Santo – sobretudo nas áreas rurais. As correntes migratórias internas teriam trazido (ou reforçado) essa modalidade de religião afro-brasileira para o Rio de Janeiro – e elas existiam também em outras partes da cidade: Luiz Edmundo (1987, pp. 72-73), por exemplo, relata a existência, no início do século XX, de um Terreiro na antiga travessa do Castelo, comandado por um certo João Gamba, natural de Luanda, cujos rituais apresentavam formas muito semelhantes de incorporação e ressignificação de diferentes matrizes religiosas.6


No culto Omolokô as divindades possuem nomes em língua Yorùbá, Fon-Ewe ou Congo-Angola. Na maioria dos Terreiros Omolokô há o culto aos Orixás, em semelhança ao Candomblé Ketu, por isso são utilizados os Oríkì (poemas laudatórios, que mencionam os valores, atividade e importância de um Orixá, Rei, autoridade etc) para homenageá-los. Os Orúkọ (nomes iniciáticos) são dados por meio da consulta ao Jogo de Búzios. Seus “assentamentos” são semelhantes aos feitos no Candomblé e os Exus são feitos em argila, à semelhança de um busto de uma pessoa, ou então, simbolicamente, em ferro.


Taata Tancredo afirmava que: “a Umbanda é [gn] africana, é um patrimônio da raça negra” e que achava graça quando ouvia os “líderes da Umbanda Branca dizendo que a religião [apenas] sofre influência das tradições africanas”7. Para ele, a Umbanda é um culto de origem africana e esse viés africanista da Umbanda pode ser visto em uma de suas afirmações:


Terreiro de Umbanda que não usar tambores e outros instrumentos rituais, que não cantar pontos em linguagem africana, que não oferecer sacrifício de preceito e nem preparar comida de santo, pode ser tudo, menos Terreiro de Umbanda.4


Para afirmar a característica africana da Umbanda e dar uma formação intelectual aos praticantes do Omolokô, organiza no Rio de Janeiro o primeiro curso de língua e cultura Iorubá.


Na Umbanda Omolokô há iniciação para Orixá, Vodun ou Bacuro, com recolhimento do iniciando à “camarinha” por um período não inferior a três dias. Além da chamada divindade tutelar, que é assentado primeiro, o membro de um Terreiro de Umbanda Omolokô é iniciado para mais duas outras divindades, que farão parte do “enredo” espiritual do adepto.


Há, também, a consagração para as entidades espirituais com as quais trabalharão, que serão firmadas ou assentadas.


Várias casas de Umbanda, cujas formas de culto são consideradas de cunho africanista, originaram-se do culto Omolokô, ou das antigas Casas de Macumba que, mais tarde, foram reconhecidas como praticantes do culto Omolokô, especialmente depois da divulgação de suas práticas nos livros escritos por Taata Tancredo da Silva Pinto. Essas Casas mantiveram uma estrutura de culto aos Orixás, em harmonia com os guias espirituais.9


Sobre a Umbanda Omolokô, podemos ver no site de Internet da Federação de Umbanda do Brasil (FUB) a seguinte afirmação:


Não objetivamos afirmar que a Umbanda Omolokô seja a melhor ou a pior. Em minha concepção a Omolokô é a mais “original”, no sentido de manifestações, é a que mais se próxima daquilo que as entidades que povoam os cultos afro-brasileiros ou afro-ameríndios representam. No Omolokô as entidades não precisam se utilizar dos comportamentos “doutrinados”, em que tudo é padrão. As entidades podem se manifestar livremente e isso é muito desejável. Os Babalorixás e Yálorixás não determinam como as entidades devem se manifestar, apenas determinam como deve ser o comportamento ético do médium, colaborando com seu crescimento espiritual, atraindo para si entidades de Luz.10


REFERÊNCIAS

[1] Esse texto foi escrito em 2012 e revisado e corrigido em 2017, por mim, Mário Alves da Silva Filho.

* Sacerdote afro-religioso, dirigente do Templo Espiritual Pantera Negra e do Ilé Ifá Ajàgùnmàlè Olóòtọ́ Aiyé. Especialista e Mestre em Ciências da Religião, pela PUC/SP; especialista em História da África e do Negro do Brasil, pela UCAM; especialista em Políticas Públicas de Segurança Pública, pela PUC/SP; Bacharel e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, pela APMBB. Endereço eletrônico: ezezide@gmail.com

[2] SILVA, Ornato José da. Culto Omoloko: os filhos do Terreiro. Rio de Janeiro: Rabaço Editora, 1980.

[3] Palavra de origem árabe que quer dizer tradição. Na Umbanda Omolokô se percebe a influência dos malês (muçulmanos negros escravizados)

[4] LOPES, Nei. Enciclópedia brasileira da Diáspora Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 497.

[5] OMOLU, Caio de. Umbanda Omolocô: liturgia, rito e convergência. São Paulo: Ed. Icone, 2002.

[6] CUNHA, Mª. Clementina Pereira. Não tá sopa: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Ed. UNICAMP, 2016, s/p.

[7] FREITAS, Byron Torres de & PINTO, Tancredo da Silva. Camba de Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Souza, 1956.

[8] Idem.

[9] OMOLU, Caio de. Op Cit.

[10] Disponível em: http://www.fub.org.br/artigos/?art=omoloko. Acesso em 11/06/2012.