Não se pode esquecer que a Umbanda se desenvolveu, assim como a população brasileira, por meio de três grupos humanos: brancos (especialmente formada por portugueses e seus descendentes), indígenas brasileiros e africanos escravizados.
Neste texto, ater-se-á exclusivamente às influências que a população branca brasileira imprimiu ao desenvolvimento da Umbanda, pois foi essa que trouxe a angeologia judaico-cristã, no decorrer do período colonial, ao seio da Umbanda.
Sabe-se que o catolicismo popular português, com atividades consideradas “errôneas” do ponto de vista ortodoxo, como, por exemplo, excessivo apego aos santos e às práticas de benzimento, invocando-se as forças dos santos e anjos para fins diversos; uso de escapulários e cruzes como talismãs; jejuns ascéticos visando à limpeza corporal etc deu à Umbanda muitas das práticas realizadas até hoje. Desse mesmo grupo humano a Umbanda sofreu influências do espiritismo, ocultismo e da teosofia, que se destacavam na classe média brasileira, sob influência do que havia, na mesma época, na Europa.
Assim, de alguma forma, a angeologia judaico-cristã acabou entrando na Umbanda, enviesada, é claro, que foi se desenvolvendo especialmente a partir dos anos 1950. Com o tempo essas associações foram ficando mais fortes, sendo criadas várias teorias, que tentavam associar os Orixás, divindades típicas do panteão religioso ioruba, com astrologia, magia medieval, cromoterapia e outras práticas estranhas ao universo afro-religioso do qual a Umbanda se afastou ao embranquecer as práticas das Macumbas cariocas, do Candomblé de Caboclo, dos Calundus e de outras manifestações religiosas de descendência africana, as quais não se encaixavam no ideal branco-europeu.
Para que a Umbanda fosse legitimada era necessário que ela quebrasse sua ligação com a África e, por consequência, com qualquer coisa que lembrasse os negros; ademais, era necessário um mito criacional que afirmasse, sem dúvida, essa legitimação: por isso a escolha do 15 de novembro, dia da proclamação da República, como data de sua “anunciação”, bem como a escolha de um Caboclo como porta-voz do “mundo espiritual”, em um momento em que a literatura romântica brasileira e o brasilianismo buscavam estabelecer, no Caboclo (indígena), o símbolo da nação. Para temperar esse caldo, o Caboclo que se manifestou no dia 15 de novembro de 1908 não era um simples índio, mas a reencarnação de um sacerdote jesuíta, o Padre Malagrida. Dessa forma, a Umbanda poderia se inserir, de forma legítima, no universo religioso brasileiro, pois estava totalmente de acordo com os anseios dos ideais brancos-europeus: era cristã, tinha as bênçãos da Igreja Católica e era espírita (por isso ela se chamava “espiritismo de Umbanda”, denominação pela qual foi conhecida por muitos anos).
Nessa esteira, a angeologia judaico-cristã é inserida na Umbanda, com a tentativa de colocar os Orixás como parte integrante do mundo angélico, fazendo-se associações espúrias entre Orixás e anjos.
De forma equivocada, como várias outras, autores umbandistas passaram a desenvolver teorias nas quais os Orixás deveriam ser “encaixados” na angeologia judaico-cristã, de forma a serem legitimados, assim como houvera sido feito com a própria Umbanda em seu desenvolvimento. Entretanto, ao se debruçar na hierarquização dos anjos do judaísmo vemos que há diferenças com o catolicismo, bem como com as funções que cada um deles possui na teologia de cada religião. Abaixo estão exemplos da hierarquia angélica, com seus respectivos autores, lembrando que ela está em ordem de importância, do maior para o menor:
ZOHAR (OBRA CABALISTA JUDAICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XI):
Malakhim
Erelim (ou Arelim)
Seraphim
Khayyot ha-Kodesh
Ophanim
Hashmalim
Elim
Elohim
Bene Elohim
Ishim
MAIMÔNIDES (EM MISHNE TORAH, OBRA JURISPRUDENCIAL JUDAICA, ESCRITA PROVAVELMENTE NO SÉC. XII):
Ḥayyot ha-Kodesh
Ophanim
Arelim (ou Erelim)
Hashmalim
Seraphim
Malakhim
Elohim
Bene Elohim
Kerubim
Ishim
MASEKET ATZILUT (OBRA CABALISTA JUDAICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XIV)
Seraphim
Ofanim
Cherubim
Shinnanim
Tarshishim
Ishim
Hashmalim
Malikhim
Bene Elohim
Arelim (ou Erelim)
SÃO CLEMENTE (EM CONSTITUIÇÕES APÓSTOLICAS, PROVAVELMENTE SÉC. I)
Serafim
Querubim
Aeons
Hostes
Potestades
Virtudes
Tronos
Arcanjos
Anjos
Dominação
SÃO JERÔNIMO (EM EPÍSTOLAS, ESCRITAS PROVAVELMENTE NO SÉC. IV)
Serafins
Querubins
Potestades
Dominação
Tronos
Arcanjos
Anjos
SANTO AMBRÓSIO (EM APOLOGIA PROFÉTICA, PROVAVELMENTE DO SÉC. XI)
Serafins
Querubins
Dominação
Tronos
Principados
Potestades
Virtudes
Arcanjos
Anjos
SÃO TOMÁS DE AQUINO (EM SUMA TEOLÓGICA, ESCRITA NO SÉC. XIII)
Serafins
Querubins
Tronos
Dominação
Virtudes
Potestades
Principados
Arcanjos
Anjos
Como se pode observar não há um consenso na hierarquização dos Anjos, havendo discrepâncias, mesmo entre os autores que professam a mesma religião.
Assim, se não há consenso entre judeus e católicos como esperar que os umbandistas, em sua maioria cristãos, com pequeno conhecimento teológico dessa religião, podem categorizar os Orixás, colocando-os na hierarquia angélica judaico-cristã, fazendo associações impossíveis entre eles? Qual é o objetivo disso? O que se espera? Será que ainda se precisa legitimar as práticas umbandistas por meio das religiões ocidentais? Até quando o pensamento colonizador martelará a cabeça dos escritores umbandistas, fazendo-os buscar nas religiões ocidentais as respostas para suas dúvidas?
Precisa-se dar um basta! Se se quer falar em Orixá, deve-se buscar, incessantemente, o conhecimento vivo do povo ioruba, que fará compreender, sem dúvidas, o que eles são, como são cultuados, o que representam em nossas vidas e como se poderá trazer seu Axé para nós. Enquanto se permanecer preso na repetição dos dogmas judaico-cristãos, não será possível compreender a profundidade e a beleza que a Umbanda possui!