domingo, 16 de janeiro de 2022

As Crônicas de São Cipriano

 

O Mito & a Verdade Magística de São Cipriano

Como demonstrado nessa jornada de O Espírito de São Cipriano, de São Cipriano nós tiramos muitas lições importante na iniciação magística. Um dos temas abordados é a iniciação a tradição cipriânica da magia. Ao tocar nesse assunto, é impossível deixar de nos debruçar um pouco sobre a questão da iniciação na feitiçaria. Até o presente o que compreendemos acerca da tradição cipriânica? Em linhas gerais podemos dizer que:


1. O mito de São Cipriano foi criado por volta do Séc. IV d.C. quando fervilhava um profundo intercâmbio mágico-religioso na região do Mediterrâneo.  Contemporâneo ao mito era a magia dos Papiros Mágicos Gregos, os Oráculos Caldeus e a teurgia de Jâmblico, e o Testamento de Salomão que inaugura a magia tradicional salomônica. Tudo isso serviu como pano de fundo para construção da história de São Cipriano e por isso tiramos dela elementos genuinamente mágico-iniciáticos.

2. O Pacto com o Diabo (sendo este uma paródia do contato com espírito assistente ou deidade tutelar), o elemento central do drama de São Cipriano, já era amplamente conhecido através da história de Teófilo de Adana,  um personagem mítico do Séc. IV d.C. que teria feito um pacto com o Diabo após muitos anos de serviço a Igreja Católica, devido a ter sido removido de seu cargo após a eleição de um novo bispo para cidade de Adana. O Diabo teria tentado Teófilo com pensamentos depressivos e criminosos, o que o levou a pedir ajuda de um feiticeiro judeu, através do qual ele conheceu o próprio Diabo. Como Fausto posteriormente, Teófilo arrependeu-se amargamente; após conquistar tudo o que queria se viu frente à realidade de ter perdido a salvação de sua alma. Diferente de Fausto que assinou seu pacto com sangue, Teófilo o selou com cera de abelha dentro de um anel mágico. É incrível a semelhança entre as histórias de Fausto, São Cipriano e Teófilo. Soldo: a ideia de pacto está conectada diretamente a aquisição de um espírito assistente. Um contrato mágico é feito entre as duas partes, o mago e o espírito. Sendo este um contrato mágico, de sua assinatura nasce o espírito do contrato que passa a atuar tanto na alma do mago como no veículo astral do espírito assistente. Nos Papiros Mágico Gregos (I.1-42), o mago deve pegar testemunhos mágicos (unhas e cabelos) e assentá-los no mesmo altar em que colocará a múmia do falcão sacrificado. Esse procedimento mágico é uma forma de unir magicamente a alma do mago ao espírito assistente morto, o paredoi. Esse procedimento mágico é o ancestral direto do pacto assinado que vemos nas lendas de Teófilo, Fausto e até São Cipriano, de certo modo. 

3. Fecundado na Alma do Mundo por séculos de projeções de magos, bruxos e feiticeiros pagãos e cristãos, São Cipriano tornou-se um espírito tutelar nos planos internos, capaz de ser conjurado a assistir um feiticeiro que pede seu auxílio. Como um espírito tutelar ou espírito patrono, São Cipriano tem sido assentado em santuários e templos de feitiçaria em várias partes do globo, principalmente na Península Ibérica, Escandinava e nas Américas.

4. Na Idade Média inúmeras versões de O Livro de São Cipriano circulavam na Europa, da Ibéria a Escandinávia. Por volta do Séc. XVI as primeiras feiticeiras condenadas ao exílio pelo Santo Ofício de Portugal aportavam no Brasil, trazendo com elas a feitiçaria cipriânica popular da Ibéria. Trocando conhecimentos acerca da Arte com escravos africanos, iniciou-se um entrecruzamento mágico-religioso entre a magia crioula africana, a cura cabocla ameríndia e a magia cipriânica popular da Ibéria. Nas tradições brasileiras de magia, umbanda e quimbanda, nós podemos falar de uma linha de São Cipriano devido a influência de sua feitiçaria nos trabalhos do Pai Cipriano de Angola, um preto-velho-kimbanda, Exu Meia Noite, Exu Tranca-Ruas, Pombagira Rosa Caveira, Maria de Padilha e outros espíritos. Todos trabalhando na linha de Cipriano feiticeiro.

5. O mito de São Cipriano espelha a busca solitária e silenciosa de todo feiticeiro rumo a sua independência espiritual. Essa independência espiritual é o coroamento de sua iniciação magística.  Quando nós falamos sobre conexão espiritual com uma corrente ou tradição mágica, inevitavelmente falamos também de iniciação, ou pelo menos o que se entende por este termo, cada vez mais elástico com o passar do tempo. Essa conexão ocorre através de um espírito! Seja lá o que te ensinarem acerca da iniciação na feitiçaria, de rituais de iniciação a confirmações pelas mãos de sacerdotes, o fato é que quem confere a iniciação de verdade é o espírito. Feitiçaria se trata de incorporação mediúnica, tratos, pactos e alianças com espíritos, assentamentos de poder e sacrifícios. É o espírito tutelar do feiticeiro quem decide como será sua iniciação, não um sacerdote ou um professor. Perceba que quando falamos de feitiçaria, falamos do conhecimento e conversação com espíritos, não do contato com doutrinas.   Este ponto devo a reflexão do feiticeiro-kimbanda Youssef Ish'baq. Em conversa particular ele me disse:

Na esquerda mesmo a coisa é diferente; não tem isso de mestre. Você puxa a linha de espíritos e pede ao espírito-kimbanda para te iniciar e pronto. Os kimbandeiros antigos mesmo, trabalham em casa, sozinhos. Eles não abrem centros, isso é coisa jovem [i.e. moderna]. 

6. Como temos estudado no Curso de Filosofia Oculta, o arquétipo primordial do mago é um homem distante da sociedade, imerso no mundo dos espíritos.  A tradição moderna da magia caminha em uma direção oposta. O mago moderno não necessita se isolar, antes disso, ser um elemento ativo da sociedade. Essa quebra de protocolo tem sido ensinada como regra aos buscadores de hoje, negando uma das mais importantes lições da tradição da magia. O mago precisa ser só para desenvolver uma intimidade com os espíritos, os quais cerceiam sua atenção apenas para eles.

7. A conexão espiritual com a tradição cipriânica da magia ocorre por meio de seu gringori, o Espírito de O Livro de São Cipriano, conjurado como uma deidade tutelar para acompanhar o feiticeiro ensinando-lhe os segredos da Arte.


Na Antiguidade, quando eclodiu o mito de São Cipriano como uma borbulha do caldeirão fervilhante do entrecruzamento mágico-religioso da região do Mediterrâneo, o conceito de iniciação estava conectado a ideia de longa jornada, trabalho de esforço e preparo espiritual, o que incluía treinamento intelectual e prática nas principais áreas da Arte: magia natural, magia matemática, magia celeste etc. dentre muitas matérias.

Convém que o iniciado passe por todas as fases, que são: desejo, perseverança e domínio. A primeira pertence ao noviço, ou seja, o desejo de aprender. A segunda, ao iniciado, que precisa de perseverança para chegar ao fim. A terceira, ao mestre, que é o verdadeiro mago, pois atingiu o domínio absoluto da Arte.

Seguir o caminho de iniciação na tradição da magia se tratava de empreender uma longa e distante jornada na busca do conhecimento e domínio da Filosofia Oculta:

Se precisa de um estudo constante das coisas naturais para poder chegar por meio de sua investigação ao verdadeiro conhecimento do sobrenatural, que é o fim e o objeto das Artes Mágicas.

Dessa maneira, a fórmula geral da iniciação sempre teve como pano de fundo a iniciativa pessoal de busca e realização através do estudo e da continuidade de propósito. É o estudante que tem de produzir as condições adequadas para que ele se torne um mago:

A Magia, como todas as ciências, requer indubitavelmente condições muito especiais das pessoas que se dedicam aos seus estudos e conhecimento.

Na Antiguidade essa longa jornada era compreendida com o um extenso período de viagens onde o estudante aprendia com vários mestres, adentrando em sociedades secretas, sendo aceito em colegiados magísticos e sendo iniciado em cultos de mistérios. É dessa maneira que a carreira mágica, assim entendia-se, era construída.  Na tradição da magia grande valor é conferido aquele que buscou conhecimento e foi verdadeiramente iniciado em tradições e cultos de mistérios. Na iniciação um processo verdadeiramente mágico (e psiúrgico) ocorre, pois o veículo pneumático da alma dos iniciados é completamente saturado com os códigos de luz ou virtudes da corrente mágica a qual está sendo iniciado. Essa impregnação do veículo pneumático com as virtudes da tradição deixa uma marca indelével na alma, uma chancela mágica da iniciação.

Mas ao se aproximar da tradição cipriânica através do Espírito de O Livro de São Cipriano, o mago se encontrará na mesma encruzilhada dos magos da Antiguidade e Idade Média. Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média até os dias de hoje notamos um padrão na tradição mágica ocidental: trata-se de uma tradição desenvolvida através de manuais que contêm os segredos da Arte. Estes manuais na Antiguidade eram difundidos em papiros secretamente. Da mesma maneira, na Idade Média estes manuais eram difundidos em pergaminhos, também secretamente. Possuir papiros ou pergaminhos de magia poderia levar a condenação por morte. Dessa maneira, os magos têm se debruçado sobre estes manuais, despertando seu espírito e perpetuando a tradição secretamente, em silêncio. Por conta disso, os arcanos da Arte dos Magi têm permanecido ocultos por longos períodos. Magos aqui e ali no curso do tempo os têm encontrado, estudado e praticado, colhendo experiência magística de seus experimentos solitários ou coletivos, a qual se perpetua no tempo quando zelosamente preservada. Estes magos morrem e novamente os arcanos se ocultam, até que outros magos, às vezes em um distante período do tempo, os reencontram nos manuais de magia. Nos dias de hoje passamos por um reavivamento na tradição da magia e os arcanos da Arte têm sido disseminados pelo encontro do passado (os gimórios e papiros que hoje temos a disposição) com a tecnologia do presente. No futuro, não é possível prever quando e nem onde, um novo ocultamento ocorrerá e os arcanos da se manterão nas sombras para um novo despertar. É assim que a tradição mágica ocidental tem se desenvolvido no curso da história, em ondas de descobertas, reavivamentos e ocultamentos.

O verdadeiro mago deverá ser portanto estudioso discreto e constante em seus trabalhos.

Dois requerimentos fundamentais da Arte dos Magi são o silêncio e o segredo.

De nenhum modo se deve revelar, a alguém que não seja adepto dessas ciências, as coisas sobrenaturais que se chegar a conhecer.

Esses dois requerimentos na Antiguidade eram poderosos talismãs, mas o efeito colateral dessas duas medicinas produzia o espírito da solidão. O mago sempre foi um homem solitário, isolado, imerso na ciência e arte da magia.

A pessoa que quiser fazer os experimentos da arte mágica deverá estar completamente sozinha, a menos que a acompanhe pessoa iniciada na Arte e que tenha feito pacto com algum espírito.

Ao seu lado, um mago trazia consigo um aprendiz. Até aqui, explorando a ideia de iniciação, nós temos todos os elementos da narrativa faustina presente nas edições de O Livro de São Cipriano:  

O jovem aprendiz que se interessa pela filosofia oculta e inicia sua jornada de aprendizado através de estudo, viagens e iniciações.

O encontro com um tutor espiritual que lhe auxiliará a desenvolver suas capacidades para se conectar com espíritos.

O conhecimento e a conversação com um espírito tutelar para obter dele conhecimento oculto acerca da Arte por meio de um pacto.

Acompanhar um aprendiz que já tenha passado ou esteja em transição das etapas 1 e 2 acima.


O Reavivamento da Tradição Cipriânica da Magia


Por muitos anos São Cipriano manteve-se na espreita, oculto nas sombras como um exu, no entanto exercendo uma função importante na Tradição Hermética de Mistérios. Como um símbolo da tradição, seu olhar revela  o âmago da própria tradição: seu mito traduz a busca de todo mago que é obter um espírito assistente, caracterizado modernamente como Sagrado Anjo Guardião, e aprender com ele os segredos e arcanos da magia. E assim como exu é incompreendido, sua função e atuação espiritual, também São Cipriano tem sido incompreendido por magos, bruxos e feiticeiros. Por descaso ou pura ignorância, eles têm deixado de lado este grande ícone da tradição ocidental de mistérios. No entanto, hoje existe um profundo movimento encabeçado por ocultas-estudiosos e magos praticantes que busca reavivar São Cipriano, sua magia e símbolo, revelando seu prístino relicário.

Os principais expoentes deste reavivamento cipriânico são: Felix Castro Vicente, José Leitão, Jake Stratton-Kent,  Nicholaj de Mattos Frisvold, Humberto Maggi e outros. Recentemente Humberto Maggi publicou uma ontologia de textos de São Cipriano no seu Thesaurus Magicus (Vol. II), o que de mais completo temos em português. Estes autores têm demonstrado como São Cipriano trata-se de um rico símbolo-espelho da tradição da magia, presente na magia da Antiguidade, grimórios medievais, magia popular europeia e os cultos da umbanda e quimbanda. Nicholaj de Mattos Frisvold em  St. Cyprian & the Sorcerous Transmutation (Headen Press, 2013) tece uma linha de apresentação que demonstra como São Cipriano foi diluído ou transmutado nos mistérios de Exu Meia Noite. Ele diz:

[...] A metamorfose de São Cipriano se fundindo a Exu Meia Noite é o pulso da Quimbanda no trabalho com São Cipriano como tem trabalhado com muitos outros espíritos, conhecidos e desconhecidos, realizando a transmutação. Nós podemos falar de uma linha de São Cipriano na Quimbanda se nós o considerarmos como uma inspiração para uma variedade de mestres na artes da cura e da mironga.

Todos estes autores têm demonstrado como São Cipriano aportou em terras brasileiras junto as feiticeiras exiladas pelo Santo Ofício de Portugal. Ao chegarem elas se misturaram com escravos e estes, já haviam se misturado com nativos. Após a abolição da escravatura, os escravos libertos começaram a compartilhar conhecimento com outros europeus que, por sua vez, também traziam farto material sobre a magia popular europeia e sua demonologia. Podemos ver aí um caldo grosso de influências mágico-culturais que se formou no período colonial e que introduziu a magia cipriânica aos negros praticantes de cabala crioula.

Dessa maneira é preciso esclarecer que não é São Cipriano que está dentro da quimbanda ou da umbanda, mas sua influência espiritual na praxis da feitiçaria, algo que vemos com bastante clareza nos trabalhos de quimbanda. São Cipriano, seu símbolo e relicário mágico, tem tentáculos que se espalham por toda tradição ocidental de mistérios.


Nicholaj de Mattos Frisvold continua:

Este legado vive em seus epitáfios, São Cipriano de Angola, que o revela como o patrono da Quimbanda. Deste modo ele assume a forma de um preto-velho, um negro idoso, mas sua sabedoria é de Quimbanda.

O livro O Espírito de São Cipriano propõe uma autêntica magia cipriânica diabólica. Na demonologia de São Cipriano os 72 espíritos do Lemegeton não são criaturas infernais, mas espíritos celestes. A magia cipriânica diabólica lida com espíritos que São Cipriano classifica como inferiores, criaturas infernais regidas por Lúcifer, Belzebu e Ashtaroth. Será apresentado um ritual, o Estrela da Calunga, onde as legiões de demônios e mortos se perfilam ao redor do Cruzeiro das Almas. Esta magia cipriânica diabólica construirá, como você perceberá, uma ponte com a quimbanda luciferiana.


O Relicário da Tradição Oculta Ocidental


Uma indagação enviada por um dos assinantes do site Filosofia Oculta acerca do livro O Espírito de São Cipriano, me questiona o porquê da ênfase em São Cipriânico ou na tradição cipriânica da magia. No seu questionamento ele trata São Cipriano ou sua feitiçaria como fantasiosa e sem uso prático ao magista moderno.

De fato, quem lê O Livro de São Cipriano em qualquer uma de suas edições, principalmente um ocultista letrado e acostumado a autores difíceis no campo do ocultismo, logo se sente decepcionado, para não dizer completamente desolado. Assim cabe esclarecer que O Livro de São Cipriano é destinado a pessoas simples cujas demandas estão longe de questões filosóficas refinadas ou até mesmo o misticismo da catedral interior. Como diz José Leitão em sua edição de O Tesouro do Feiticeiro (Headen Press, 2014), a magia de São Cipriano é visceral   e para  praticá-la é preciso ter estômago.

Dito isso, cabe dizer que São Cipriano é um relicário da tradição oculta ocidental. Nele a magia da Antiguidade (ou dos Papiros Mágicos Gregos), a teurgia de Jâmblico e Proclo, a cabala crioula da África Setentrional, a demonologia, demonolatria e tradição dos grimórios medievais (o que inclui a tradição salomônica), a magia de cura ameríndia e o catolicismo popular se encontram, tradições jogadas dentro de um grande caldeirão mágico fervilhante. É desse caldo grosso que é feita a feitiçaria cipriânica. Compreendê-la, portanto, nos pede o entendimento do desenvolvimento e desdobramento destas tradições no seu encontro, mistura e transmutação. A umbanda, por exemplo, é uma tradição mágica brasileira que foi sistematizada nas três primeiras décadas do Séc. XX como um desenvolvimento de um movimento anterior conhecido como macumba. E é interessante notar como que o modus operandi da umbanda resgata toda influência espiritual que fundou o Brasil: a mistura étnico-religiosa dos negros-escravos africanos (o trabalho com os sábios preto-velhos), os índios (o trabalho de cura com os caboclos) e a iconografia diabólica européia (o trabalho com os exus). Posteriormente o trabalho com os exus tomaria rumos independentes que eclodiram nas diversas choupanas de quimbanda.

São Cipriano veio ao Brasil por meio de feiticeiras exiladas pelo Santo Ofício de Portugal que, ao chegarem em nossas terras, logo associaram sua feitiçaria aquela dos escravos. Após a abolição da escravatura, estes ex-escravos travaram uma profunda confluência com europeus que, por sua vez, trouxeram muito de sua magia popular. Isso tudo somado a influência do espiritismo francês do fim do Séc. XIX e início do Séc. XX, forma uma intricada tradição espiritual genuinamente brasileira. Não é possível determinar, por exemplo, a extensão da influência dos sigilos mágicos dos grimórios medievais nos pontos riscados utilizados na umbanda e quimbanda. Esse estudo, como podemos ver, nos leva em uma direção completamente oposta as interpretações da magia moderna e nos coloca na senda da gnose do diabo. Então quando imergimos na feitiçaria cipriânica, é essa gnose que encontraremos.  

Em uma das vídeo-aulas do Curso de Filosofia Oculta eu mencionei que ao estudarmos a magia hermética na Antiguidade e Idade Média, é impossível não nos encontrarmos com São Cipriano, pois ele representa, resgata e engloba toda essa tradição descrita nos parágrafos anteriores. Desdenhar São Cipriano por imaturidade, inocência ou ignorância é fechar os olhos para um dos maiores símbolos da tradição da magia. Símbolos não velam, mas explicam a tradição. Dessa maneira, destrinchar São Cipriano, um símbolo vivo da tradição da magia, é destrinchar a própria tradição e se encontrar com suas raízes. Esse exemplo que segue, da indagação me enviada, demonstra:

Pois é, isso é criticado pela maioria dos magos. A possessão daimônica já era amplamente conhecida na Antiguidade com críticas e elogios. Os teurgos neoplatônicos e a própria religião greco-romana reconhecia o fenômeno como inspiração divina. Por exemplo, em oráculos como àquele de Delfos, acreditava-se que as sacerdotisas estavam divinamente inspiradas pelos deuses, quer dizer, literalmente possuídas. Esse é um dos maiores arcanos da tradição da magia. A possessão mediúnica é um meio efetivo de se comunicar com os espíritos, daimones ou deuses. Certa vez um ocultista me disse: Fernando, você nunca ouviu falar de incorporação de um deus! Como assim? Esse é um dos elementos mais antigos da tradição: a possessão divina. Mas as concepções modernas acerca da invocação vão em um caminho distinto; se por um lado é admitido que o mago traz para dentro de si as virtudes divinas de uma deidade ao invocá-la, por outro lado não se admite que a deidade possua completamente os veículos espirituais e físico do mago. Quando viramos as costas a essas concepções modernas e mergulhamos profundamente neste caldo grosso da feitiçaria torna-se inevitável o encontro com a magia da noite, do sangue e do fogo que tanto sintetiza a herança da magia na Antiguidade e Idade Média e que faz vasto uso dessa tecnologia da tradição mágica ocidental.

É por isto que neste livro, O Espírito de São Cipriano, é oferecido a oportunidade de fazer do Santo o patrono espiritual do trabalho de feitiçaria. Com ele vem criaturas da noite, arautos das sombras. Em um dos capítulos eu menciono que você poderá escolher entre a feitiçaria cipriânica católico-popular e a feitiçaria cipriânica pagã. Esta, não se engane, fecha as portas para os éteres de luz e perfeição e opera apenas com as criaturas espirituais sub-lunares. Bastam apenas três tapas no chão e as portas para o alto se fecham, começam os batuques e batuleios do inferninho. 


Sintonização com o Espírito de São Cipriano


A espinha dorsal desse opúsculo de meditação, O Espírito de São Cipriano, é o tema mais importante da Arte dos Magi, quer dizer, a obtenção do paredros, o espírito assistente e arcano primitivo do moderno Sagrado Anjo Guardião.

Diferente da interpretação moderna do Sagrado Anjo Guardião que nasceu de ideias neoplatônicas-cristãs, o espírito assistente está presente nas arcaicas culturas da magia desde o xamanismo paleolítico. Por este termo, xamanismo paleolítico, entenda uma prática de feitiçaria que antecede a formação de mitos e os rituais, festivais e celebrações a eles associados. Em um tempo onde o Sol não tinha nome ou mesmo qualquer construção cultural e mítica sobre ele, os feiticeiros trabalhavam com sua força bruta; as diversas mitologias e sistematizações espirituais acerca do Sol e outros astros e forças da natureza servem apenas para categorizar e codificar essas forças brutas da natureza, quer dizer, seus espíritos, em estruturas palatáveis a assimilação e, portanto, mais fáceis de serem trabalhadas. Bem, muito antes dessa formação de sistemas e estruturas, o feiticeiro já partilhava o conhecimento arcano da natureza com os espíritos ao seu redor.

Em O Espírito de São Cipriano instruções precisas, baseadas na tradição mágica cipriânica, são dadas na intenção de se construir um assentamento mágico para presença de São Cipriano. Em um primeiro momento é proposto uma aproximação ou sintonização com o Santo. Para tal a proposta é a construção de uma cripta cipriânica com um altar psiúrgico simples onde orações ao Santo, principalmente as dele, são  executadas. Em um segundo momento é proposto a construção de um assentamento mágico de poder, o que requer uma acurada ciência mágica, exposta em detalhes no livro. A construção desse assentamento mágico criará na cripta cipriânica uma zona de poder definitiva onde o contato com o Santo será efetivo.

E poderemos dizer, sem medo de errar, que a construção desse assentamento na cripta cipriânica fará dela a própria Cova de São Cipriano, uma zona de poder onde o Diabo se apresenta para ensinar a Ars Nigra a seus estudantes.  

O contato com São Cipriano requererá o aperfeiçoamento da invocação mágica. Uma invocação mágica bem sucedida, assim veremos no livro, trata-se de uma possessão mediúnica onde a consciência (ego) do mago é completamente solapada e apartada do processo e São Cipriano (ou qualquer deidade convocada) assume completamente os veículos espirituais e físico do mago. E esse é um dos temas fundamentais do livro, pois a tradição moderna da magia  deturpou completamente o verdadeiro sentido e significado da palavra invocação. A invocação mais poderosa de todas, assim já ensinavam os teurgos neoplatôpnicos, trata-se da possessão daimônica, típica das choupanas de cabala crioula. E isso abre um vasto universo pela frente dentro da tradição cipriânica, trazendo elementos novos a confluência de elementos antigos, estabelecendo novas técnicas e abordagens mágicas. Falando sobre o tema em sua edição de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro (Headen Press, 2014), José Leitão diz:

Este terceiro período [da tradição cipriânica] não pode ser separado da efervescência mágico-religiosa da atmosfera Sul-americana. Foi ali, num grande cadinho cultural de sangue branco, negro e nativo-americano que as práticas da magia cipriânica foram revitalizadas e desenvolvidas para além dos princípios da prática ibérica, afastando-se dos livros originais. Essa nova e impressionante onda de práticas parece estar fazendo seu caminho de retorno a Ibéria e Europa, seja através da imigração ou pelo incrível prestígio e reconhecimento das técnicas mágico-religiosas Sul-americanas, colorindo e revitalizando antigos cultos cipriânicos. Em teoria, devido a seu caráter altamente pragmático, estas novas práticas revitalizadas poderão no futuro uma vez mais cristalizar uma nova ortodoxia cipriânica. Contudo, devido à possibilidade de se estabelecer contato mediúnico com São Cipriano, um constante fluxo de material novo e atualizado é estabelecido, fazendo dele uma corrente viva, como uma vez o foi em um distante passado da Ibéria 

Meu envolvimento com a tradição cipriânica ocorreu, assim relato com detalhes no livro, em três ondas. Na primeira delas através de uma feiticeira cipriânica ainda na minha juventude, quando fui apresentado ao Diabo em uma cerimônia de iniciação. A segunda onda ocorreu enquanto estive em viagem a comunidades ribeirinhas ayahuasqueiras, onde pude ver São Cipriano como unha e carne a tradição mágico-católica popular. A terceira e mais recente, quem sabe a mais importante e magicamente gratificante, com as expressões cipriânicas na quimbanda com o Sr. Exu Meia Noite, o Sr. Exu Tranca Rua das Almas, a Sra. Pombagira Rosa Caveira e Maria de Padilha. Essa terceira onda mudou completamente minhas perspectivas acerca da Arte dos Magi e isso eu tento transmitir também com detalhes.

Compreender São Cipriano exige de nós o entendimento da evolução da tradição mágico-popular ibérica e sua transposição para terras brasileiras com a chegada de São Cipriano no Brasil através de feiticeiras exiladas por meio da Inquisição em Portugal. O Livro de São Cipriano, em acordo a evolução e transmutação que sofreu ao longo dos anos, é uma metamorfose. Captá-la em sua profundidade exige um envolvimento total com o Diabo do livro ou o próprio Espírito de São Cipriano. Falando sobre o livro  José Leitão finalmente acrescenta:

Deve ser entendido que este [O Livro de São Cipriano], diferente de outros grimórios, não é uma relíquia de um distante passado mágico, ele não é um livro antigo e morto que espera para ver a luz novamente através de um devotado magista. O Livro de São Cipriano não se trata de um livro; ele não está localizado no tempo ou no espaço. Como qualquer culto, ordem ou religião viva e ativa, trata-se de um contínuo, uma corrente. Ele muda seu conteúdo porque está vivo, porque é praticado e vivido em vários contextos culturais, sociais e geográficos [...] [e] ele constantemente responde as necessidades de seus leitores. Da costa da Catalunha a Algarve, da Ibéria rural ao nordeste do Brasil, dos terreiros de Quimbanda e finalmente até as cidades, ele é em todo o sentido do termo um livro de magia popular, um livro [de magia] para o povo. [...] Ele vive a margem da sociedade, nas sombras, no limiar entre religiosidade e heresia, virtude e vício. Como o próprio Santo, ele vive naquela linha onde Deus e o Diabo se encontram. [...] Mas como um contínuo, um ponto parece ser constante em suas edições, todas trazem a narrativa faustina. 


O Espírito de São Cipriano


O livro O Espírito de São Cipriano é um estudo do Curso de Filosofia Oculta (Módulo 1: Magia na Antiguidade). Ao explorarmos a Tradição Hermética de Mistérios na Antiguidade tardia, é inevitável o encontro com São Cipriano. Como demonstramos neste estudo, São Cipriano representa o arquétipo legítimo do mago hermético da Antiguidade e Idade Média. Ao avaliarmos o mito ou a lenda de São Cipriano através dos elementos que a constroem, percebemos que se tratam de temas legítimos da tradição da magia e Arte dos Magi.

O livro é uma introdução a tradição cipriânica da magia, que formou-se dentro de um caldeirão de influências mágicas que se arrastam no tempo desde a Antiguidade: é possível vê-lo na feitiçaria ibérica e escandinava, nas quermesses do catolicismo popular, no catimbó nordestino, na umbanda e na quimbanda. Através das edições de O Livro de São Cipriano e os estudos que autores modernos como Jake Stratton-Kent, Don Felix Castro Vicente, Nicholaj de Mattos Frisvold, José Leitão, Humberto Maggi, Frater Acher e outros têm contribuído, é possível rastrear as influências que formaram a tradição cipriânica desde a magia copta da Antiguidade. A própria ideia de São Cipriano como santo e feiticeiro transmutou-se no tempo aparecendo de variadas formas em cultos distintos, desde a magia popular europeia as tradições crioulas miscigenadas no caldeirão religioso do Brasil.

No livro São Cipriano trata-se de uma alma deificada que não encarnou no reino da geração, mas uma entidade gerada no útero da Alma do Mundo a partir de séculos de construção mítica tendo como fonte elementos genuinamente mágico-espirituais. Existem vias de estudo, como a linha de raciocínio de Frater Acher em Cyprian of Antioch: A Mage of Many Faces (Quareia, 2017) que buscam elementos reais da existência de São Cipriano, no entanto, ele mesmo concorda que não é possível saber se São Cipriano caminhou entre os vivos ou não. Então a construção da ideia central do livro é a partir da experiência pessoal, concordando que tanto São Cipriano quanto a egrégora que formou-se ao seu redor são projeções que fecundaram a Alma do Mundo, produzindo um espírito deificado que atende feiticeiros e religiosos espalhados pelo globo.

A espinha dorsal do livro é o tema mais importante da tradição da magia e Arte dos Magi: o espírito assistente ou deidade tutelar, modernamente conhecido como Sagrado Anjo Guardião. Essa ideia moderna do Sagrado Anjo guardião é construída a partir de fontes cristãs neoplatônicas, no entanto, trata-se da evolução de um conhecimento arcano que existe desde a gênese da tradição da magia no xamanismo paleolítico, a conjuração e apropriação de um espírito patrono. No curso da história, este conhecimento arcano apareceu de variadas formas no tempo: na magia greco-egípcia dos papiros ele é o paredros; na teurgia clássica neoplatônica, o daimon pessoal; nos mitos de Fausto ele foi seu diabo pessoal, Mefistófeles; nos mitos de São Cipriano, o próprio Diabo; na feitiçaria medieval, o espírito familiar; na magia de Abramelin, o Sagrado Anjo Guardião; na tradição católica, o Anjo da Guarda ou Anjo Apostólico; no xamanismo, o Animal de Poder; nos feitos de Salomão, ele foi o daimon Ornias etc. Através do tempo os magos têm conjurado espíritos familiares para se capacitarem a produzir milagres (taumaturgia) e obter conhecimento oculto. Neste livro, São Cipriano é conjurado como uma deidade tutelar para auxiliar os feiticeiros.

Na magia dos papiros, ao paredros é conferido todo o poder. O poder da deidade tutelar se estende a sua natureza. As deidades tutelares  de um feiticeiro podem ser várias e de vários tipos. Entre as mais poderosas estão os ancestrais (mortos)  - e estes também podem ser de vários tipos e para cada um há uma maneira distinta de trabalho - ou animais deificados. Nos Papiros Mágicos Gregos o paredros mais poderoso parece ser um falcão morto cerimonialmente. A atuação de um espírito não é distinta de sua natureza em vida. Como o mago hermético da Antiguidade almejava que sua alma fosse liberta das catacumbas do submundo, um falcão que alcança os éteres superiores, morada dos deuses e das virtudes celestiais, era apropriado para levar sua alma até estes planos de luz e perfeição. Como podemos ver, a versão moderna desta entidade espiritual acolhe todas as ideias fundamentais de seus protótipos: uma criatura capaz de salvar a alma conduzindo-a no caminho de Deus, revelando-lhe seu destino derradeiro, atuando como guia e guardião. O livro propõe a eleição de São Cipriano como deidade tutelar para auxiliar o mago em sua Arte.


NOTAS:


[1] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.

[2] São Cipriano em Qualidades Essenciais para Professar as Artes Mágicas em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[3] Ibidem

[4] Ibidem.

[5] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.


Origens da Tradição Salomônica

Grande parte da influência dos grimórios na tradição cipriânica da magia herda seu conteúdo do Veritable Magie Noir, o grimório da verdadeira magia negra, a partir da obra do fictício e diabólico monge Jonas Sufurino, O Tesouro do Feiticeiro. Este grimório faz parte do conjunto de textos (sete no total) pesquisados por S.L. MacGregor Mathers (1854-1918) para constituir a sua versão de a Chave de Salomão. E muito embora Mathers tenha méritos por traduzir e publicar essa obra que é uma das peças chave do quebra-cabeça da Tradição Esotérica Ocidental, por conta de sua visão estreita de mundo ele omitiu alguns capítulos relevantes, presentes, no entanto, no Veritable Magie Noir.

Ao falar da influência dos grimórios em O Espírito de São Cipriano, eu disse:

Em uma passagem do Talmud nós descobrimos que os judeus reconhecem que a magia vem do Egito: Dez medidas de magia vieram ao mundo. O Egito recebeu nove delas, o resto do mundo só uma (49b). Não existem fontes que provem a existência de uma magia judaica antes dos primeiros séculos da presente era. Não existem registros de métodos mágicos utilizados pelos judeus, uma assim chamada magia salomônica, no período pré-cristão em fontes judaicas a parte dos hinos de exorcismo que só começaram a aparecer no Séc. III d.C. Não existiu, portanto, uma tradição salomônica de magia antes de Jesus Cristo. A magia judaica como temos conhecimento só nasceu com a influência da magia greco-egípcia. É somente a partir do Séc. III d.C. que testemunhamos o nascimento de uma tradição judaica de magia. E é interessante notar que a influência judaica na magia dos papiros não incluía métodos ou técnicas de magia, mas apenas o uso dos nomes de Deus, anjos e demônios. Isso demonstra – e é só mais uma prova – que a magia que aparece nos grimórios salomônicos não é judaica, mas greco-egípcia, cuja origem são os Papiros Mágicos Gregos.  

Isso contrastou com a ideia equivocada de alguns alunos de que a assim chamada tradição salomônica da magia foi iniciada pelo Rei Salomão do Velho Testamento e que, pior que isso, o Rei Salomão praticou a magia que está nos grimórios salomônicos. Existe um consenso iletrado de que a magia salomônica é a magia que o Rei Salomão praticou. Isso é deveras equivocado por muitos, muitos motivos. Um deles é este: a tradição salomônica da magia nasceu a partir de duas importantes fontes. A primeira delas é o Testamento de Salomão, que apareceu nos primeiros séculos de nossa era. Este é o texto que inaugura a tradição salomônica da magia e estabelece seu elemento central e fundamental, a chave da prática: o poder para se comandar os espíritos do Corpo de Deus é uma dádiva, benção ou dom conferido pelo próprio Deus. Este elemento central posteriormente foi transmitido aos textos da tradição salomônica e outros grimórios modernos como o Grimorium Verum e o Grand Grimoire.

Essa ideia central da tradição salomônica é inspirada no Primeiro Livro de Reis, quando Salomão é arrebatado por uma epifania. Mas em o Testamento de Salomão ela é apresentada em um contexto diferente: após Salomão dirigir-se a Deus com preces para obter auxílio contra as forças de um demônio, Deus lhe envia o Arcanjo Miguel, o qual lhe apresenta um anel mágico capaz de comandar qualquer demônio. O anel descrito tem um pentagrama cravado em pedra. O pentagrama é e sempre foi na tradição da magia o símbolo mágico de imprecação demoníaca. É a força do equilíbrio que o pentagrama estabelece sobre os elementos que lhe dota de poder sobre as criaturas dos elementos ou regidas por eles. E é interessante a cristalização da ideia de que através de uma piedade de orações e a prática dos preceitos de Deus recebe-se a autoridade sobre as criaturas do Corpo de Deus. Mas assim como salomão teria perdido essa autoridade por se lançar em idolatria e culto aos deuses pagãos, qualquer um que deixa de seguir os preceitos de Deus e começa a levar uma vida de indulgências também perderá ou nunca conquistará.

A segunda fonte importante da qual nasce a tradição salomônica é o Tratado Mágico de Salomão, o Hygromanteia. A palavra hygromanteia tem sido considerada uma técnica de divinação através da água, no entanto, no contexto do grimório segundo Stephen Skinner e David Rankini, a palavra pode estar indicando uma antiga prática de restringir demônios em urnas, jarros ou vasos de água feitos em metal. Foi daí que eu tirei a ideia prática de construir um triângulo da arte de concreto e nele incluir água, porque a água tem se mostrado desde a Antiguidade um portal entre mundos. Nada melhor que um triângulo da arte com água para manifestação demoníaca. O Tratado Mágico de Salomão é sem dúvida um dos livros mais importantes da tradição da magia: ele estabelece a ponte entre a magia grega e aquela apresentada nos grimórios, definindo o que seria o tripé da magia salomônica: a cosmovisão cristã, a metalinguagem judaica e a estrutura de magia greco-egípcia. Sem este tripé a tradição salomônica não existiria, muito menos os grimórios que a sucederam.

A Chave de Salomão, bem como todos os grimórios posteriores, beberam do Tratado Mágico de Salomão. Sem ele, por exemplo, a hierarquia demoníaca apresentada nos grimórios tardios e até mesmo o Lemegeton não faria sentido algum. O Grand Grimoire, o Grimorium Verum, o Abramelin e todos os manuais de feitiçaria após o Séc. XV devem sua fonte do Tratado Mágico de Salomão. Nele, o poder das operações de magia vem das pedras, das ervas e dos encantamentos (palavras), bem como do conhecimento das posições dos astros. Herdando fontes bizantinas, as quais o preservaram até sua introdução na Europa na Idade Média, bem como a estrutura de o Testamento de Salomão, o Tratado Mágico de Salomão instrui na invocação de anjos e demônios: anjos para magia do bem e demônios para magia do mal. Essa é uma típica dicotomia cristã, mas é interessante que ele apresente tanto anjos quanto demônios como aliados do mago. Particularmente eu classifico o Tratado Mágico de Salomão como a extensão fiel do que é apresentado no Testamento de Salomão.

Acima eu disse que no Tratado Mágico de Salomão o poder das operações de magia vem das pedras, das ervas e dos encantamentos (palavras), bem como do conhecimento das posições dos astros. Esse foi um conhecimento transmitido de Salomão a Robão já no início do grimório em um diálogo entre eles. Então veja que diferente daquela ideia apresentada em o Testamento de Salomão de que o poder da magia e autoridade do mago sobre os espíritos vem de Deus, o Tratado Mágico de Salomão estabelece que o poder da magia está contido nas plantas, pedras e encantamentos. Essa estrutura muda novamente em a Chave de Salomão; no diálogo que a Chave de Salomão apresenta entre Salomão e Robão, a ideia do Primeiro Livro de Reis que subjaz o Testamento de Salomão é restabelecida e o poder da magia passa a ser atribuído ao mérito pessoal do mago: quer dizer, através de uma piedade de preces e ações segundo os desígnios de Deus, é possível ter poder na magia. Essa é a verdadeira Chave de Salomão, o verdadeiro segredo.

Dessa maneira, respondendo meus alunos mais ávidos pela persona do Rei Salomão como um grande mago goético, toda tradição salomônica desenvolveu-se dentro da cosmovisão cristã a partir dos primeiros séculos de nossa era, herdando a prática mágica grega apresentada nos Papiros Mágicos Gregos e mantendo a metalinguagem judaica do Velho Testamento.


O Ochēma

Anteriormente nós vimos que o ochēma-pneuma trata-se do veículo pneumático da alma, como um invólucro tênue que envolve a alma na forma de um ovo de luz. A visão moderna que o ocultismo no ocidente tem deste veículo pneumático é importada da tradição hindu via Sociedade Teosófica no Séc. XIX. Mas a visão deste veículo pneumático que o mago da Antiguidade possuía foi desenvolvida pela própria tradição ocidental de mistérios, cujo refinamento ficou sob a responsabilidade da tradição neoplatônica. É no neoplatonismo tardio ou baixo que ao ochēma foi dado maior atenção para os fins do trabalho teúrgico sobre a alma. É através do ochēma que os deuses podem influenciar e envelopar o teurgo, para usar um termo de Jâmblico. Ele sustenta que o teurgo veste-se com o manto dos deuses no curso do ritual, quando ocorre a inspiração divina, termo que Jâmblico usa para dizer possessão daimônica ou transe mediúnico. Em estado de transe/êxtase, o ochēma se expande consideravelmente, abrindo espaço para presença de um agente externo, uma deidade (deus, daimon, exu etc.) que temporariamente ocupa este ochēma expandido. Para Jâmblico, a inspiração divina só é efetiva quando o agente externo se apodera completamente do aparato psico-fisiológico do teurgo, o que nós identificamos como incorporação total ou inconsciente, quando o médium/mago desliga-se completamente e apenas a deidade age em seus veículos. Sacerdotes de cabala crioula falam de incorporação consciente e semiconsciente, querendo dizer que de certo modo o médium/mago participa do processo. 

É através do ochēma que o teurgo recebe as virtudes dos deuses na alma. Isso é deveras importante ao comprometimento espiritual do teurgo com sua alma. Ao receber as virtudes dos deuses no ochēma, o que chamamos também de enriquecimento de alma, ele se torna um veículo pneumático luminoso (augoeides) através do qual a alma é deificada. É através do ochēma que a alma se alimenta, de tudo. Eu costumo dizer que a região sublunar, o reino da geração, é um grande mar onde tudo come tudo. Larvas astrais que perambulam pela região do plano astral tanto são devoradas por espíritos mais fortes quanto usam como carapaças, conchas invadidas, corpos astrais em decomposição, quando se tornam cascões astrais. Nós nos alimentamos e também servimos de alimento para tudo e todos, isso significa que influenciamos e somos influenciados por homens e os espíritos de todas as coisas. Mas existe uma forma de nos protegermos, de fortificarmos o ochēma para que ele se alimente apenas do que precisa para deificação da alma: o conhecimento e a conversação com o espírito tutelar. Este espírito tutelar na tradição neoplatônica-cristã é o Sagrado Anjo Guardião, na Quimbanda é o Exu Mentor.[1] 

Voltemos ao ponto da incorporação ou inspiração divina. Em O Espírito de São Cipriano eu falei acerca da incorporação do Sagrado Anjo Guardião. Se nesse ponto da jornada nós sabemos que o Sagrado Anjo Guardião como o entendemos hoje se trata da evolução da doutrina do espírito tutelar (patrono/assistente/familiar), da mesma maneira que nos comunicamos com qualquer espírito assistente também nos comunicamos com o Sagrado Anjo Guardião, quer dizer, por meio da incorporação mediúnica. BJ Swain expõe o tema nesses termos:

Estes espíritos [tutelares] sentam-se com o mago ou sacerdote e falam com ele, lhe dão conselhos, lhe ajudam a interpretar [mensagens de outros] espíritos e a divinação, além de organizarem o seu [do mago] trabalho com outros espíritos. Mas todas essas coisas o Sagrado Anjo Guardião também faz. [...] Essa comparação clareia a relação do Anjo com o mago, entendida na forma de possessão [mediúnica]. No Ocidente nós pensamos em possessão como uma coisa negativa, opressiva e involuntária. Mas em outras culturas a possessão é vista com bons olhos e é considerada positiva. Religiosos e magos criam uma relação com os espíritos onde tanto os espíritos quanto o mago se beneficiam mutuamente e através disso, toda comunidade. [...] Algumas tradições da magia ocidental têm uma visão positiva da possessão voluntária, como aquelas da diáspora africana para as Américas e Caribe. [...] A possessão ocorre em diferentes níveis; inicialmente o espírito se assenta no mago, quando o mago sente sua presença e eles compartilham conhecimento e íntima relação, mas não existe ainda a entrega do controle da consciência. Na medida em que a interação entre espírito e mago progride, cada vez mais o espírito toma parte da consciência do mago. Na possessão total o mago cede controle absoluto de sua consciência ao espírito. [...] O Anjo é o espírito [tutelar] que possui completamente [a consciência do] mago.[2] 

A possessão daimônica, inspiração divina ou incorporação mediúnica é uma das ferramentas fundamentais da feitiçaria brasileira. Quando Jâmblico explica o fenômeno da inspiração divina, se vê obrigado a descrever os ritos de teurgia que possibilitam o fenômeno. Em sua descrição, no entanto, ele fala do uso de instrumentos musicais como tambores, pandeiros e flautas que induzem um estado de receptividade no ochēma, permitindo sua expansão e a partir disso a possessão divina. Ao conhecedor de cabala crioula, a descrição de Jâmblico não difere em nada de uma gira onde entidades são convocadas. Até o presente em nossos estudos do Curso de Filosofia Oculta nós aprendemos: 

Que todas as criaturas da região sublunar, no reino da geração, possuem um ochēma ou veículo pneumático, pois ele sustenta a conexão da alma com o corpo. Não apenas as almas corporificadas, mas deuses, heróis e daimones possuem ochēma. Sem um ochēma nenhuma criatura espiritual seria capaz de agir no reino da geração.

O ochēma não sofre alterações em sua natureza devido a fatores externos, mas sofre alteração em sua sutileza, precisando ser purificado a partir de orações e invocações, banhos, fumigações e estilo de vida daimônico-espiritual-filosófico. Através do contato com a deidade tutelar, o ochēma torna-se um poderoso escudo contra ataques de magia negra, ácidos ou alcalinos.

Da mesma forma que na tradição neoplatônica-cristã cada alma é acompanhada por um Sagrado Anjo Guardião (o daimon pessoal), na tradição da quimbanda cada alma é acompanhada por um Exu Guia ou Exu Mentor Espiritual. O Exu Pessoal é a dinâmica ou movimento individual de cada alma, e que tem uma individualidade própria, aliás, individualidade essa primeiro reverenciada com oferendas nos cultos e giras.

O Sagrado Anjo Guardião (ou daimon pessoal) e o Exu Mentor possuem ochēma. A interação entre o ochēma individual e o ochēma da deidade que possibilita sua influência em nossa alma e a possessão divina. No processo da incorporação, é como se o Exu Mentor e o mago começassem a compartilhar de um só ochēma que passa a incluir o ochēma de ambos.

Anteriormente, nós falamos amplamente acerca da transformação do ochēma em um augoeides (Ovo de Luz). Por agora vamos nos concentrar no Culto de Exu. Por ignorância, muitos são levados a crer que o conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião livra a alma da danação no submundo e que o contato com Exus e Pombagiras leva a danação no inferno. Embora de certa maneira reflita uma realidade em termos soteriológicos, trata-se de uma deturpação que reflete apenas a escatologia criada pela cultura judaico-cristã e que perverteu inúmeros arcanos de iniciação do passado. É uma ignorância por muitos fatores! Por exemplo, um feiticeiro da quimbanda não pretende habitar os reinos de luz e perfeição dos éteres superiores. Na quimbanda, estes éteres superiores são a morada de almas que ainda vivem presas aos ciclos de morte e renascimento, hipnotizadas ou escravizadas dentro de um sono profundo. Um feiticeiro da quimbanda, ao contrário disso, pretende ser aceito nas legiões de Maioral, dentro de seu reinado espiritual, que são os Sete Reinos Infernais da Quimbanda. E isto está em sincronia com as crenças espirituais dos magos da Antiguidade, cujo objetivo era tornar-se uma alma deificada para auxiliar em espírito magos encarnados na legião dos vivos. Exus e Pombagiras são poderosos magos negros da região infernal, treinados nas artes mágicas e que possuem grande sabedoria. Mas para que a alma de um feiticeiro de quimbanda possa ser aceita no Reino Obscuro de Maioral, uma alquimia distinta no ochēma ocorre.[3] 

Através do Culto de Exu os quimbandeiros aperfeiçoam sua alma, despertam suas fagulhas ígneas e capacidades inatas. O Culto de Exu produz uma alquimia distinta no ochēma, transformando sua qualidade em um Ovo Negro. Enquanto a teurgia (clássica neoplatônica) busca transformar o ochēma em um augoeides (Ovo de Luz), a quimbanda opera uma alquimia de obscurecimento do ochēma para que a luz contida nos rincões mais sombrios da alma brilhe na escuridão; ao mesmo tempo, transformando o ochēma em uma carapaça rígida de proteção, um escudo negro intransponível. Esse escudo, no entanto, é fortalecido pela presença do Exu Mentor, que passa a compartilhá-lo com o mago/médium operando como um filtro para tudo o que entra e de tudo o que sai. É como se o Exu Mentor envolvesse o mago/médium com sua capa negra e colocasse a sua frente seu tridente de proteção. 

Alguns Exus, como o Sr. Tranca-Rua das Almas, estão profundamente engajados na alquimia da alma de seus filhos de fé. A quimbanda não sustenta nenhum tipo de vício ou faz apologia a uso de qualquer entorpecente; ou mesmo coaduna ou incentiva um estilo de vida de entrega desmedida aos sentidos e apetites animalescos. Esse tipo de comportamento afeta profundamente a qualidade do ochēma, atrapalhando a Alquimia Negra de Exu. Para que essa alquimia ocorra, o mago/médium deve procurar por um processo de simbiose entre seu ochēma e o de seu Exu Mentor através de um sistemático processo de desenvolvimento mediúnico e aperfeiçoamento da alma, libertando-a das descargas emocionais descontroladas, da falta de firmeza na mente (e, portanto, vontade), da preguiça, apetites desmedidos, vícios e indisciplinas. Exu é dinamismo e potência, é poder criativo e ímpeto ígneo. São essas as virtudes que Exu transmitirá ao ochēma do mago. 

Geralmente o Culto de Exu da quimbanda é tido como uma baixa feitiçaria em contraste com uma teurgia de tipo superior encontrada na alta magia moderna de inclinação judaico-cristã. Mas isso é outra ignorância dos arcanos espirituais da quimbanda. Os procedimentos mágicos da feitiçaria do Culto de Exu não são nada distintos dos procedimentos da teurgia clássica neoplatônica ou do xamanismo aborígene de muitas culturas. Não há procedimento nenhum que um feiticeiro da quimbanda faça que seja distinto do procedimento de um teurgo neoplatônico. A distinção não está no exercício da magia, mas na cosmovisão e metalinguagem que se adota. Enquanto um teurgo neoplatônico lida com criaturas espirituais dos éteres de luz e perfeição e também aquelas do reino da geração e submundo, um feiticeiro da quimbanda lida apenas com almas de mortos, poderosos magos negros dos Sete Reinos Infernais da Quimbanda; eles são, portanto, necromantes (ou nigromantes), feiticeiros (goēs) que lidam com Exus e Pombagiras para fins de divinação (necromancia/nigromancia) e magia (necrurgia). 


NOTAS:


[1] Existem sacerdotes de quimbanda que falam sobre trabalhos com o Sagrado Anjo Guardião (Anjo da Guarda) de seus filhos de santo. Isso é uma ruptura doutrinária medonha. A ideia de Sagrado Anjo Guardião como compreendida pelo neoplatonismo cristão não cabe dentro da quimbanda. Na quimbanda a doutrina do espírito assistente ou deidade tutelar está nas funções do Exu Mentor. Quando esses sacerdotes de quimbanda falam de Sagrado Anjo Guardião de seus filhos fé, estão sendo enganados ou estão enganando.

[2] BJ Swain, Living Spirits: A Guide to Magic in a World of Spirits. Publicação do autor, 2018. Os colchetes são meus.

[3] Como vimos no artigo anterior, A Influência de São Cipriano na Magia Brasileira, inúmeros magos e feiticeiras ao fazerem sua passagem tornaram-se Exus ou Pombagiras poderosas no Reino Obscuro de Maioral, como a Pombagira Maria de Padilha e Pombagira Arde-lhe o Rabo.

Cipriânismo

Não há dúvida de que existem os espíritos Bons e Maus; e que estão em relacionamento com os homens; não há dúvida de que os ditos espíritos estão dotados de uma inteligência soberana, posto que a própria religião lhes dá o poder de tentar-nos, de induzirmos ao bem e ao mal; logo, se por meio da Magia pode o homem pôr-se em relação com estes espíritos, esse homem logrará alcançar a suprema sabedoria.[1]

Minhas observações sobre o Universo convencem-me que existem Seres de inteligência e poder de uma qualidade muito superior do que qualquer coisa que nós possamos conceber como humano; eles não são necessariamente baseados nas estruturas nervosas e cerebrais que nós conhecemos; a única chance para a humanidade avançar como um todo é fazer com que individualmente cada humano entre em contato com estes Seres.[2]

Toda a tradição cipriânica da magia foi composta a partir de um eixo fantasmagórico, como um fantasma ou miragem projetado pela imaginação de apologistas cristãos que escreviam panfletos contra a feitiçaria e o paganismo na Antiguidade tardia. Nunca existiu, de fato, um São Cipriano que tivera sido bispo de Antioquia,[3] um mártir e santo que houvera se relacionado com o Diabo e se convertido ao cristianismo que, com seu misticismo simplificado, deteve o poder dos demônios apenas com preces e o símbolo da cruz. O autor deste mito que aparece pela primeira vez em A Confissão de São Cipriano no Séc. IV d.C. pretendia demonstrar que a magia e o tráfego com demônios (espíritos | daimones) não tinha poder ou era superior a fé cristã. No entanto, o tiro saiu pela culatra e o mito de São Cipriano e seu livro cresceu e fomentou aquilo que ele jamais desejaria: o poder intrínseco nos manuais de feitiçaria e o comercio com espíritos que, quando tratados corretamente,[4] proveriam ao mago toda sorte de riqueza, bonança, afeto, sabedoria oculta e a deificação (ou salvação) da alma.

O mito de São Cipriano começou a ser desenvolvido a partir de três fontes distintas: A primeira, A Confissão de São Cipriano, conta a história de um feiticeiro pagão iniciado nos cultos de mistérios de Mitras e Ceres na Antiguidade, nas escolas de magia da Caldeia e Egito, tornou-se adepto do culto do dragão e desde a infância fora consagrado ao culto de Apolo. Na Antiguidade muito valor era conferido a sábios como Pitágoras (570-495 a.C.) e Apolônio de Tiana (15-100 d.C.) dentre outros que empreendiam jornadas espirituais de estudo e vivência a centros religiosos e de iniciação nos mistérios como Egito, Caldeia e Babilônia. Estes sábios em algum momento de sua jornada espiritual encontravam o segredo ou arcano secreto da magia, coroando seu processo de iniciação. Para criar seu personagem, o autor de A Confissão de São Cipriano usou essa ideia para tecer a jornada espiritual do feiticeiro Cipriano. Após estudar e tornar-se um grande mago, digno de ser comparado a Moisés e Salomão segundo seus feitos e proezas, Cipriano teria convocado demônios na intenção de seduzir e fazer cair uma jovem cristã, Justina. Ela, no entanto, por meio de preces e o sinal da cruz, fez cair os demônios que Cipriano teria lhe enviado. Diante de sua falha magística perante os métodos simples do cristianismo, Cipriano se convertera ao cristianismo.[5]

As outras duas fontes, escritas como complementos à história narrada em A Confissão de São Cipriano, parecem terem sido tecidas pelo mesmo autor, uma para ser lida antes de A Confissão de São Cipriano, a outra para ser lida depois. A segunda fonte é A Conversão de São Cipriano, que narra a conversão de Justina ao cristianismo. Entre os cristãos da ecclesia que Justina participava, um despertou interesse por ela. Para facilitar seus enlaces de paixão por Justina, ele procura o feiticeiro Cipriano e lhe pagou para fazê-la cair em paixão por meios mágicos. Para tal Cipriano convoca três demônios, os quais visitam Justina e caem de joelhos pelas preces que ela profere, acompanhadas do sinal da cruz. Após tentar e falhar conquistar Justina magicamente, Cipriano converte-se ao cristianismo e torna-se bispo de Antioquia.

A terceira fonte, O Martírio de São Cipriano, narra à morte de Cipriano e Justina, trazidos à cidade de Damasco onde foram torturados e lançados no piche quente. Ao se manterem vivos após a tortura e queimaduras, ambos são enviados a cidade de Dicomédia, onde são decapitados. A trama de São Cipriano vem dessas três fontes e foi uma iniciativa para demonizar a magia e os cultos pagãos. O roteiro que seguiram foi este: primeiro era necessário criar o personagem de um grande mago, capaz de fazer feitos como os de Moisés, Salomão e Simão o Mago. Este mago teria sido iniciado nos principais cultos de mistérios da Antiguidade, conhecedor dos arcanos da magia segundo os egípcios, caldeus e babilônios. Após apresentarem este mago poderoso e sua jornada espiritual, seguiam acusando-o de tráfego com o Diabo, impelido por seus instintos mais grotescos. Vê-se, portanto, o pano de fundo difamatório da história de São Cipriano.

Todas as edições populares de O Livro de São Cipriano trazem resumos destas três fontes ou textos independentes baseados nelas, sempre com acréscimos, como o Arrependimento e Virtudes de São Cipriano em O Grande Livro de São Cipriano (Livraria Econômica) ou A Vida de São Cipriano em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro de Jonas Sufurino.[6] De modo geral existem duas tradições cipriânicas independentes: a tradição ibérica composta das publicações do livro de São Cipriano em Portugal e Espanha; e a tradição escandinava, composta das edições do norte da Europa, principalmente na Escandinávia e Noruega.

A edição-tronco na qual se baseiam as publicações portuguesas é O Tesouro do Feiticeiro, publicada no fim do Séc. XIX e atribuída a Jonas Sufurino. Essa edição de Jonas Sufurino apresenta uma magia cipriânica tangivelmente diabólica e ele recomenda que as cerimônias magísticas devem ser realizadas em zonas de poder longe de igrejas e centros religiosos, bem como devem estar livres de símbolos da cruz e outros da tradição cristã. Jonas explica que Lúcifer não pode se aproximar com sua horda de demônios caso haja símbolos da cruz no local onde os rituais devem ser executados. As edições brasileiras são largamente baseadas nas edições portuguesas que consistem basicamente de uma coleção de fórmulas mágicas populares muito similares aquelas da cultura mediterrânea desde a Antiguidade: o uso de múmias (bonecos mágicos) para enfeitiçar pessoas, a utilização de animais de todos os tipos para magias diversas etc. É possível comparar, por exemplo, feitiços de invisibilidade encontrados no Tratado Mágico de Salomão, o Hygromanteia, nos Papiros Mágicos Gregos, no Grimorium Verum e em O Livro de São Cipriano. Ver-se-á encontrar grande similaridade entre estes feitiços, demonstrando a influência da magia dos papiros gregos e da magia salomônica na tradição cipriânica ibérica. Como nós temos estudado, a magia cipriânica se adapta a cultura espiritual dos locais em que chega. Ao ser trazida ao Brasil na época da Inquisição em Portugal por bruxas exiladas, a magia cipriânica se adaptou a tradição do catimbó nordestino. A Oração da Cabra Preta, por exemplo, encontrada nas edições brasileiras de O Livro de São Cipriano, nasce de uma concepção popular de diabolismo, típica do período colonial quando a Igreja Católica exilou no Brasil as bruxas portuguesas. Com o tempo, São Cipriano começou a aparecer nas choupanas de  umbanda e principalmente quimbanda e hoje ele é patrono espiritual de muitas dessas casas. Recentemente ele começou a aparecer nos hinos sagrados do Santo Daime em alguns trabalhos de mão esquerda realizados dentro da doutrina:


São Cipriano é um Mestre no Astral

Um ser de hierarquia espiritual

Cancela a demanda do mal

Unido ao Pai Infernal

Aí estão os demônios dessa doutrina

Todos perfilados em disciplina

Trazendo a cura de Salomão

Para dentro do batalhão

Lá vem chegando Maria de Padilha

Conduzindo sua quadrilha

A estrela matutina que brilha

A luz vespertina

Essa força é o Mestre quem dá

Mostrando como trabalhar

São Cipriano e Maria de Padilha

Chegaram para disciplinar[7]

Feitiço para   Invisibilidade[8]


Colha   sete feijões pretos. Comece o rito em uma quarta feira, antes do nascer do  sol. Tome então a cabeça de um homem morto, coloque um dos feijões na boca,  dois nos olhos e dois nos ouvidos.


Faça então sobre a cabeça o sigilo de Morail.


Quando tiveres feito isso, enterre a cabeça, com a face   para cima, e durante nove dias, antes do nascer do sol, regue todas as manhas   com um excelente brandy. No oitavo dia tu encontrarás o espírito mencionado,   que dirá a ti: o que tu queres?

Tu irás responder: eu   estou regando a minha planta. Então o espírito irá dizer: dê-me a garrafa, eu desejo regar eu mesmo.   Em resposta, recuse isto a ele, mesmo que ele lhe peça de novo.

Então ele irá esticar a mão e irá mostrar a mesma figura   que tu desenhaste sobre a cabeça. Agora tu podes estar certo de que é o espírito   certo, o espírito da cabeça.

Existe o perigo de que algum outro tente te enganar, o que   teria más consequências – e neste caso a operação não teria sucesso.

Então tu podes entregar a ele a garrafa, e ele irá regar a   cabeça e partir. No dia seguinte – que é o nono – quando tu retornares, irá   descobrir que os feijões começaram a germinar. Tome-os e coloque-os na tua   boca e olhe para ti no espelho. Se não puderes ver nada, está bem. Teste os   outros da mesma maneira, ou na tua própria boca, ou na de uma criança.   Aqueles que não conferirem invisibilidade devem ser reenterrados com a   cabeça.


Secular magia das   favas[9]


Matai   um gato preto, enterrai-o no vosso quintal, metei-lhe uma fava em cada olho,   outra sob a cauda, e duas outra cada ouvido. Depois de tudo isso feito,   cobrio-o de terra e vá regá-lo todas as noites, ao dar a meia noite, com   muito pouca água, até que as favas, que devem ter rebentado, estejam maduras,   e quando virdes que assim estão, corte-as pelo pé.

Depois de cortadas, levai-as para casa e metei uma de cada   vez na boca. Quando, porém, vos parecer que estais invisíveis, é porque a   fava que tendes na boca é a que tem força de magia, e assim se vos apetecer   entrar em qualquer parte sem que ninguém vos veja, meta primeiro a dita fava   na boca.

Isto obra por virtude oculta, sem ser necessário fazer   pacto com o demônio, como fazem as bruxas.


Invisibilidade[10]


Tome   a caveira seca de um homem que tenha morrido de morte natural. Vá a um lugar   secreto, inacessível e intransitável e recite estes nomes sobre a caveira:

Conceda   invisibilidade, Senhor, pelos nome Theophael, Diokaides, Peridon, Enarkale, Esboiel,   Apelout, Gakarkentos, para que esta obra seja efetiva.

Então tome as sementes da erva korakia. Os romanos a chamam phabenbesia,   ou seja, a fava. Plante uma semente em cada olho, e coloque uma na boca.   Cubra com terra e recite o seguinte:

Assim como os olhos   dos mortos não veem os vivos, assim essas favas possam ter o poder da   invisibilidade.

E quando os feijões derem sementes, cuide para que não   percas nenhuma delas, mas tire-as [das cascas] e as mantenha todas juntas.   Então, traga um espelho e coloque cada feijão na tua mão, um por um. Se não   puder ver a ti mesmo no espelho, este feijão em particular tem poder.   Carregue-o contigo e vás onde quiser. Ninguém poderá te ver.


Ritual com gato para   muitos propósitos[11]


Tome   um gato e o transforme em uma Esies[12]   submergindo seu corpo na água. Enquanto o afoga, recite a fórmula em suas   costas. Tome o gato e faça três lamellae,[13]   uma para seu ânus, uma para [ouvido], e uma para a sua garganta, e escreva a   fórmula concernente ao feito em uma folha limpa de papiro, e envolva isso ao   redor do corpo do gato e o enterre. Acenda sete lâmpadas sobre tijolos não   cozidos, e faça uma oferenda. Tome o corpo e o preserve murando-o em uma   tumba ou em um local de enterro.

A edição-tronco das publicações espanholas é Cipriano o Temeroso de 1874, baseada completamente em grimórios tardios como o Veritable Magie Noir, com influencia do Grimorium Verum, o Heptameron, o Arbatel e o Grand Grimoire. Esta seria a edição que muito possivelmente deu origem a versão de Jonas Sufurino, O Tesouro do Feiticeiro. Existe uma versão atribuída São Cipriano do Heptameron, chamada de Elementos Mágicos: composta pelo Grande Cipriano o Mago. O conteúdo desta obra não é o mesmo que o Heptameron de Pietro d’Abano, mas de um material composto com influencias do Grand Grimoire. Na verdade, só o nome de São Cipriano consta no frontispício e o livro não se parece nada com os tradicionais livros de São Cipriano. Uma edição de O Livro de São Cipriano conhecida como Ciprianilo já circulava por volta de 1800 e 1885. As referências mais antigas ao O Livro de São Cipriano são encontradas nos anais da Inquisição espanhola no fim do Séc. XVI, um período que nem o povo ou o clero sabiam da existência do livro, não com a popularidade que alcançou nos Sécs. XVIII e XIX.

Seja como for, podemos observar na tradição cipriânica ibérica uma forte influência dos principais grimórios medievais e tardios, usados livremente para compor os livros atribuídos a São Cipriano. Quando as edições dos livros de São Cipriano não eram versões completas de grimórios conhecidos, como é o caso de Cipriano o Temeroso que é uma versão espanhola do Veritable Magie Noir, os livros traziam partes de grimórios, às vezes três ou mais, como O Tesouro do Feiticeiro de Jonas Sufurino, cuja primeira parte é composta de passagens diversas do Veritable Magie Noir, mas com material adicional próprio do autor ou tradutor, que incorporou elementos diversos além do conteúdo dos grimórios, como feitiços e encantamentos, preces e orações, maldições e sortilégios populares da região ibérica. Na edição de Jonas Sufurino podemos encontrar influências diversas e ritos da tradição salomônica, da doutrina dos pactos, compromissos e alianças dos grimórios tardios, amuletos poderosos como do Dragão Vermelho e da Cabra Infernal, exorcismos, sortilégios, encantamentos e filtros, além de um resumo da magia dos egípcios e caldeus. Os livros ibéricos de São Cipriano podem ser considerados manuais populares de feitiçaria e iniciação na magia da Antiguidade e Idade Média.

A tradição cipriânica escandinava é aquela dos Livros Negros de Wittenberg no norte da Europa. Aqui a São Cipriano são atribuídos grimórios dos Sécs. XVII e XVIII que apareceram na Escandinávia e Noruega. Estes grimórios de São Cipriano eram chamados de Livros Negros e havia um consenso de que a cidade de Wittenberg na Alemanha fosse o local de onde eles vinham. Na verdade, acredita-se em uma Escola Negra de Wittenberg, de onde eles supostamente saíram. Enquanto Fausto é considerado o grande feiticeiro da Alemanha, São Cipriano é considerado o grande feiticeiro da Escandinávia e Noruega. A tradição da magia popular escandinava celebra inúmeras ocorrências dessa Escola Negra e atribui a São Cipriano a autoria de diversos Livros Negros como Os Livros Ocultos de Moisés. Todas as histórias atribuídas a essa Escola Negra na verdade parecem ter apenas uma fonte: um homem na Suíça que vivia isolado na floresta e que ensinava alguns estudantes os segredos da magia. Este homem teria em sua posse o original de O Livro de São Cipriano, de onde tirava os ensinamentos que transmitia a seus alunos. Ele viveu, ao que parece, por volta de 1700.

Assim como na tradição cipriânica ibérica, na Escandinávia e Noruega o livro de São Cipriano era considerado como uma ferramenta mágica que possibilita o acesso direto ao próprio Diabo. Através dos manuais de feitiçaria atribuídos a São Cipriano, acreditava-se que era possível conjurar os espíritos dos mortos e as hostes infernais, encontrar tesouros e curar doenças. O mago que vivia isolado na floresta ensinando os seus alunos, assim acredita-se, detinha os mesmos poderes que São Cipriano e havia feito um trato com o Diabo. Por tamanha fama ele era respeitado e temido. Ele era apelidado de o homem do livro negro, porque detinha o comando de espíritos que estavam presos ou associados ao livro de São Cipriano. Quando alguém sofria algum malefício de magia negra, ele era chamado para quebrar a demanda; quando alguém adoecia, ele era procurado para administrar poções mágicas (remédios), rezas e exorcismos. Em um tempo onde não havia saneamento básico ou médicos disponíveis em hospitais, é possível inferir a importância de feiticeiros como este nas diversas localidades da Europa.

Acreditava-se que os feiticeiros haviam feito um pacto com o Diabo e por causa disso a eles era conferido o poder e a autoridade sobre uma legião de demônios. Esses feiticeiros gozavam de prestigio, respeito e ao mesmo tempo eram temidos por todos. O caminho para se tornar um feiticeiro e possuidor do verdadeiro O Livro de São Cipriano, alem dos diversos Livros Negros a ele atribuídos, era realizar uma jornada espiritual de peregrinação até a Escola Negra de Wittenberg e lá aprender os segredos da arte negra da magia. Muitos estudantes se lançavam a essa viagem mágica e retornavam feiticeiros possuidores dos Livros Negros.

Um destes livros negros cipriânicos foi O Livro da Arte de Cipriano, descoberto no ano de 1722 na universidade de Wittenberg, escrito em pergaminho e datado do ano de 1354. Existe outro manuscrito desta obra datado de 1509. O conteúdo dos livros negros cipriânicos é distinto das edições ibéricas. Neles nós vemos preocupações que afligem o homem do campo, como a manutenção do equilíbrio entre homens e animais, caça, plantio e colheita. Por conta disso eles são cheios de feitiços, encantamentos e consagração de talismãs e amuletos para o bem-estar: atração de mulheres, ganho de força para vencer batalhas, conseguir dinheiro, proteção contra magia negra e inimigos. Pouquíssima atenção é dada a conjuração de demônios, preces ou exorcismos demonológicos.

Existem relatos que uma ramificação dessa tradição cipriânica escandinava penetrou nos Estados Unidos através da Pensilvânia, onde reside uma grande comunidade de descendentes holandeses que praticam as artes da magia do norte da Europa: Escandinávia, Suíça, Alemanha e Noruega. Entre estes descendentes existem feiticeiros que ensinam estudantes e trabalham em função da comunidade da mesma maneira que o mago isolado na Suíça fazia por volta de 1700. Uma tradição de feitiçaria ancestral que se perpetua no tempo. Através do estudo de Karl Herr, Hex and Spellwork: The Magical Practice of the Pennsylvania Dutch, descobrimos que essa feitiçaria é adaptada ao local e lida diretamente com entidades elementais simples como espíritos de árvores, plantas e pedras. Diferente da tradição ibérica que agregou a demonologia francesa, a tradição escandinava foi profundamente influenciada pelo cristianismo, principalmente o evangelho de Mateus, que afirma que toda pessoa pura e de bom coração pode realizar milagres.

Não importa se São Cipriano é um mito! A legião de feiticeiros que vêm convocando sua presença como espírito tutelar e colocando em prática o conteúdo dos livros a ele atribuídos, formou uma grande tradição cipriânica da magia. Nós falaremos, tecnicamente, como isso ocorre no fim desta seção. Os livros de São Cipriano são regidos por um espírito, um demônio guardião ou grigori que dá acesso espiritual a tradição cipriânica. O que os feiticeiros têm feito é conjurar este demônio guardião da tradição cipriânica e através dele, do comércio e trato com ele, eles têm acessado a magia de São Cipriano. Isso tanto é verdade que magos e feiticeiros de toda parte, desde a Antiguidade aos dias de hoje, têm fornecido manuscritos diversos dessa tradição ancestral e têm ensinado como acessá-la espiritualmente, como veremos na última seção deste artigo. A conjuração deste demônio guardião está diretamente relacionada à doutrina do pacto implícito com o Diabo.

Essa ideia de pacto implícito com o Diabo é de São Tomás de Aquino (1225-1274) e ela apareceu conectada a São Cipriano a partir das edições ibéricas do Séc. XIX, onde começou a se considerar que o livro de São Cipriano, per si, possuía poderes ocultos. Os manuais de feitiçaria de São Cipriano faziam tanto sucesso porque eram acessíveis a pessoas iletradas, a grande maioria da população da Europa. Diferente da feitiçaria dos grimórios, acessível apenas ao clero e pessoas letradas com condições financeiras suficientes para pagar por uma boa educação, a magia cipriânica era acessível a todos e não exigia tanto preparo espiritual e exorbitante soma de dinheiro como a magia dos grimórios. Por isso São Cipriano teve grande apelo popular por toda Europa. Entre esse público iletrado começou a nascer a ideia de que possuir qualquer edição de São Cipriano em casa era o suficiente para transformar a pessoa em um feiticeiro. Comprar ou aceitar de presente alguma edição de O Livro de São Cipriano era aceitar fazer um pacto implícito com o Diabo.

Adquirir ou ganhar um O Livro de São Cipriano e praticar sua magia é, de fato, travar conhecimento e conversação com o demônio guardião do livro de São Cipriano. Este demônio guardião, no entanto, é o próprio São Cipriano, hoje uma alma deificada no comando de uma legião de demônios, senhor da magia e disciplinador dos mortos, protetor e sentinela contra feitiçaria de todo tipo. Este São Cipriano foi forjado nos planos internos pela sabedoria popular, um feiticeiro que caminha pela mão direita e pela mão esquerda formando um eixo ou pilar do meio que une essa dualística dicotomia espiritual. São Cipriano é o típico mago da Antiguidade na cultura hermética mediterrânea, seus pés cravados abaixo da terra, sua cabeça acima das nuvens. Em suas mãos ele carrega duas chaves: uma para a porta do inferno e outra para a porta do céu. Como vimos anteriormente, esse São Cipriano da cultura popular da magia é amado tanto por Deus quanto pelo Diabo. Diferente da visão salomônica tradicional da magia que segue uma cosmovisão cristã estreita onde o Diabo é forçado e imprecado pelo poder de Deus, na tradição cipriânica da magia o Diabo governa seus próprios domínios e é o senhor de sua morada. Como Hades que governava as celas do submundo, o Diabo é o regente das regiões infernais e para ter acesso a todo esse domínio, hordas e legiões, é necessário tratar diretamente com ele. É assim que São Cipriano nos apresenta o Diabo.

Trazer para dentro de casa qualquer uma das edições de O Livro de São Cipriano, estudá-lo e praticá-lo, guardá-lo e cuidadosamente reverenciar seu poder e toda tradição mágica que ele herda, é tratar de algum modo diretamente com o espírito de São Cipriano. Esse é o pacto implícito com o Diabo que todo feiticeiro faz quando adquiri um exemplar de O Livro de São Cipriano. O diabo desta lenda popular é o demônio guardião deificado, São Cipriano que, por sua vez, tem íntima relação com o Diabo.

Por outro lado, como falei no vídeo Pacto com o Demônio do Livro de São Cipriano, possuir qualquer edição do livro de São Cipriano atrai uma miríade de espíritos, almas, zombeteiros, kiumbas e demônios. Tratar com o grigori do livro de São Cipriano é ter de lidar com todas essas criaturas espirituais, travar comercio e estabelecer relação com elas, o que também está associado à ideia de pacto com o Diabo.

Como nos é apresentado em A Confissão de São Cipriano, antes de ter o seu encontro com o Diabo, Cipriano se preparou por longos anos. Desde a infância ele foi consagrado ao Culto de Apolo e iniciado no Culto do Dragão. Foi admitido nos Cultos de Mistérios da Grécia e Ásia, bem como empreendeu uma jornada visionária no Monte Olimpo; foi instruído na Arte da Magia diretamente por sacerdotes egípcios e caldeus, tendo empreendido viagens a muitos centros religiosos na antiguidade. Anos de treinamento serviam para que no momento certo o mago pudesse conjurar seu espírito assistente, o paredros dos papiros gregos. Essa era a meta da jornada empreendida por todo mago na Antiguidade. A magia sagrada de Abramelin apresenta essa ideia dentro de uma estrutura bem organizada. Mas em A Confissão de São Cipriano, o espírito que São Cipriano convoca é o próprio Diabo: Acredite em mim, depois que o apaziguei com sacrifícios, eu vi o Diabo. [...] O recebi com alegria e conversei com ele, e fui reconhecido entre aqueles que ocupavam as posições mais importantes ao lado dele.[14] Como vimos acima, esse Diabo apresentado por São Cipriano é muito distinto da imagem bestial tradicional que a cristandade apresenta: Sua forma era como uma flor dourada adornada com pedras preciosas, e ele coroou sua cabeça com pedras que estavam entrelaçadas.[15] É interessante notar que em A Magia sagrada de Abramelin, o Mago, o Sagrado Anjo Guardião se apresenta como um homem de aparência majestosa que com grande afabilidade promete maravilhas; nos Papiros Mágicos Gregos o paredros compartilha com o mago seus poderes miraculosos.[16] Após convocar o Diabo, São Cipriano recebe dele inúmeros poderes, além da promessa de torná-lo um príncipe, quer dizer, uma alma deificada: Ele prometeu me fazer um príncipe depois de minha morte, e que eu teria poder e o seu apoio enquanto vivo.[17] Aqui reside o segredo de toda jornada de São Cipriano: o seu diabo pessoal em verdade é seu espírito assistente. A semelhança entre o Diabo apresentado em A Confissão de São Cipriano e o paredros dos Papiros Mágicos Gregos é saliente aos olhos, como estudamos na Carta 15.

O Diabo que São Cipriano nos apresenta é uma espécie de deus regente de suas próprias moradas. O paredros nos papiros gregos é apresentado como um deus [...] um espírito aéreo que você viu. Ele levará seu espírito e o carregará ao ar.[18] A promessa que o Diabo faz a São Cipriano é a mesma promessa escatológica e soteriológica que o paredros conferia aos magos dos papiros gregos e cujo terror era passar o pós-morte no submundo. O que para o mago da Antiguidade era a salvação da alma do calabouço do submundo, na cristandade tornou-se a condenação eterna no inferno. Por isso que magos, feiticeiros e pagãos têm levantado chacotas do posicionamento escatológico cristão dizendo ser melhor reinar no inferno do que servir no céu. Ao terem suas almas deificadas pelo espírito assistente ou diabo pessoal, os magos têm mantido sua consciência intacta nos planos internos, participando de uma família de espíritos e auxiliando outros magos ainda na legião dos vivos no comando de uma horda de criaturas espirituais. Tal conquista demanda esforço diligente: A Magia, como todas as ciências, requer indubitavelmente condições muito especiais das pessoas que se dedicam aos seus estudos e conhecimento. [...] Em primeiro lugar deve-se ter verdadeiro desejo e vocação, pois se não for assim é inútil que se proponha a conseguir qualquer coisa. [...] Se precisa um estudo constante das coisas naturais para poder chegar por meio de sua investigação ao verdadeiro conhecimento do sobrenatural que é o fim e o objeto das Artes Mágicas.[19] A salvação da alma proposta pela escatologia cristã era simplista em demasia e disponível a todos. Não era preciso se esforçar tanto como os magos faziam: bastava apenas eleger Jesus Cristo como único caminho e Senhor e imitá-lo que as portas do céu estavam abertas e o cativeiro do inferno suprimido. Para fazê-lo, a cristandade teve de transformar o paredros no Diabo de São Cipriano e Fausto.

Então, como temos estudado o pacto com o Diabo tão difundido pelas apologias cristãs contra a tradição da magia e o paganismo é uma herança deturpada do pacto que o mago estabelecia com seu espírito assistente, o paredros. O pacto associado ao demônio guardião do livro de São Cipriano é, em verdade, o pacto que todo mago estabelece com o espírito de São Cipriano e as criaturas espirituais a ele associadas: mortos e daimones (demônios) de toda classe e categoria ao entrarem em contato com as diversas edições existentes de O Livro de São Cipriano.

Como exploramos nas Cartas 14, 15 e 16, a crença em espíritos assistentes está na tradição da magia desde os primórdios e é a gênese de muitas ideias – em grande parte deturpadas – populares como o conhecimento & conversação com o Sagrado Anjo Guardião, o pacto com diabo ou a ideia de alma gêmea. Modernamente, quando pensamos em alma gêmea, entendemos como uma companhia ideal, na maioria das vezes uma companhia afetiva romântica. E muito embora o termo seja moderno, cunhado em 1822 por Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) em uma carta privada, a ideia é muito mais antiga e implica uma profunda conexão com uma criatura espiritual através de um ato mágico. Muitas são as culturas mágico-religiosas que apresentam essa ideia da alma gêmea que acompanha as pessoas na forma de espíritos assistentes (ou familiares) diversos como animais de poder, almas dos mortos principalmente, espíritos de pedras, árvores, tempos e zonas de poder; quer dizer, servidores espirituais do Corpo de Deus conjurados para auxilio dos magos. Existem relatos de santos que se relacionavam intimamente com espíritos de montanhas, árvores, flores e animais. Por exemplo, o espírito do beija-flor, o mensageiro da cura, é louvado em cânticos na doutrina do Santo Daime e tanto Mestre Irineu quanto Padrinho Sebastião tinham uma relação profunda com esse espírito familiar. Buda manteve uma relação especial com o espírito da árvore sob a qual ele se iluminou e que, segundo contam, lhe instruiu na arte de conquistar uma mente búdica. Nós vimos anteriormente na Carta 14 que Sócrates fora instruído em sua inquirição filosófica por um daimon. Os druidas acreditavam que os espíritos das árvores poderiam transmitir conhecimento, inspirar e amar seres humanos. Na tradição do xamanismo vermelho os espíritos das árvores são incluídos na ancestralidade das famílias, auxiliando como guias e professores na família de espíritos assistentes. Na tradição do catimbó nordestino os mestres do além são almas desencarnadas deificadas que se apresentam como espíritos tutelares dos curadores que os convocam. A quimbanda é uma tradição que opera principalmente através de espíritos tutelares ancestrais. E assim como o espírito assistente dos papiros gregos, o paredros, inúmeras tradições xamânicas atribuem aos espíritos familiares todo o poder de cura e a medicina particular de cada xamã. Através das eras o homem tem travado contato com espíritos diversos, mantendo com eles uma relação harmoniosa de troca onde sociedades e culturas inteiras são beneficiadas. Como vimos anteriormente o contato com os espíritos está por trás da construção da sociedade ocidental. O pacto com espíritos familiares tem beneficiado o homem em todos os campos do conhecimento humano. Os norte-americanos, por exemplo, têm um forte senso de patriotismo. Esse amor a pátria que todos compartilham tão profundamente é a influência do espírito tutelar dos Estados Unidos, a Lady Columbia, retratada sendo acompanhada de uma águia, carregando arco, flecha e a bandeira nacional. Lady Columbia foi imortalizada pelos norte-americanos na Estátua da Liberdade.

A palavra familiar que usamos no termo espírito familiar vem de famulus, que significa servir e era usada para especificar uma serva do lar, quer dizer, uma mulher que cuida da casa e da família com devoção e comprometimento, de onde vem a ideia moderna de dona de casa e empregada doméstica. O interessante dessa definição é o significado que ela carrega, que diz mais acerca dos deveres assumidos por compromisso do que o posto que hoje significa. Uma palavra cognata é doula, que literalmente significa escrava e é usada para descrever uma serva ou assistente doméstica que ajuda no parto de crianças. Ambas as palavras têm essa conotação de serviço devotado; essa mesma noção é conferida ao espírito familiar ou assistente, pois ele age como uma dona de casa ou parteira devotada ao mago. Trata-se, portanto, de um servidor conjurado diretamente do Corpo de Deus e unido ao mago pelos laços de um contrato ou compromisso, um pacto. Essa ideia de ter um servo, seja ele um agente espiritual, um animal ou ser humano, é tão antiga quanto o próprio homem, encontrado em várias escrituras sagradas de tempos imemoriais.

A palavra doméstica que usamos no termo empregada doméstica está também conectada a ideia de família e a habilidade de domesticar criaturas diversas para o auxilio do lar: bois para lavrar, vacas para alimentar, cães para proteger etc. O conceito de doméstico vem da noção de trazer para ou se tornar parte da família, o que está por trás também da ideia de domínio. Todas essas ideias-chaves formam o pano de fundo da prática da goécia universal de todas as culturas mágico-espirituais, quer dizer, a arte de conjurar espíritos. Na Lição 2 nós estudamos que na goécia da magia tradicional salomônica dois equipamentos são fundamentais: a arca de bronze e o triângulo da arte. Enquanto a arca de bronze é usada para capturar os espíritos (demônios) do Corpo de Deus, o triângulo da arte serve para conjurá-los quando já tiverem sido dominados ou domesticados pelo mago, que passa a usá-los como espíritos assistentes. E muito embora essa lógica não apareça nos grimórios, ela é presente na arte da goécia de todos os povos. Mircea Eliade (1907-1986) diz: Uma relação de «família» é estabelecida entre o xamã e seus «espíritos». De fato, na literatura etnológica eles são conhecidos como «familiares», «assistentes» ou «espíritos guardiões».[20]

Na tradição da magia muita importância é dada ao trato e a maneira correta de se comunicar com os espíritos assistentes. Perder o controle sobre um cão de guarda pode trazer muitos problemas, como ele morder outra pessoa. Da mesma maneira, quando um mago perde o controle sobre seus espíritos assistentes, seja por falta de zelo no trato com eles ou ataque mágico, ele pode ter inúmeros problemas. Por esse motivo a tradição da magia desenvolveu uma tecnologia capaz de controlá-los: o anel mágico. No Testamento de Salomão o Rei Salomão não perdeu somente o controle sobre os demônios ao perder o seu anel mágico, ele perdeu o próprio reino para o demônio Asmodeus. Neste texto que inaugura a tradição da magia salomônica, a sorte do Rei Salomão muda novamente quando ele encontra seu anel perdido na barriga de um peixe. São Cipriano, falando sobre a arte de evocar os mortos para fins de nigromancia, diz: Para se evocar os mortos deve se levar colocado o anel de Salomão no dedo do coração da mão direita, e depois de levar o espírito a Deus, se colocará a mão sobre a parte do coração do cadáver e se dirá: «Eu te conjuro, criatura que fostes e já não és, da parte dos espíritos cujos nomes leva gravado este anel mágico e imantado, que atendas a meu chamado e contestes as minhas perguntas que vou fazer-te. Pela segunda e pela terceira vez te conjuro para que teus lábios formulem as respostas que te peço, pelo poder maravilhoso deste sagrado anel, representação daquele que Salomão possuiu durante a vida». Tendo tua mão sobre o coração do cadáver, lhe perguntarás e se és digno e virtuoso, te obedecerá no ato.[21] Essa é uma influência transparente da tradição salomônica na tradição cipriânica da magia, configurando o exercício da Arte dos Magi como uma prática sacerdotal. Essa conjuração de São Cipriano serve para almas recém-falecidas e trata-se de se apoderar delas como espíritos assistentes antes da ocasião do enterro do corpo.

Sobre o anel mágico, o Testamento de Salomão diz: [O Arcano Miguel me trouxe] um pequeno anel, tendo um selo consistindo de uma pedra gravada, e disse-me: «Toma, ó Salomão, rei, filho de Davi, o dom que o Senhor Deus te enviou, o mais elevado sabaoth. Com ele tu deverás prender todos os demônios da terra, masculinos e femininos, e com sua ajuda tu deves construir Jerusalém. Mas tu deves usar este selo de Deus. E esta gravura no selo do anel enviado a ti é um pentalfa».[22] O anel mágico de Salomão é apresentado no texto que inaugura a tradição salomônica com um pentagrama.

São Cipriano também oferece sua própria instrução acerca do anel mágico do Rei Salomão. Ele diz:

Este anel deve ser fabricado com o ouro mais puro, em dia de domingo à saída do sol e no mês de maio. Há de levar no centro uma pedra de esmeralda, na qual se grava a figura do sol e do lado oposto do anel, sobre o mesmo ouro, a lua. Logo se gravam também com o buril, de aço novo, as seguintes palavras: Dabi, Habi, Alfa e Ômega, tendo presente que se há de fazer em caracteres hebreus, por ser de maior agrado aos espíritos cujos nomes leva. Para que se possa fazer com exatidão, ao desenho do anel se acompanha outro que representa o anel estendido com os signos hebreus que deve levar.

Para que este talismã adquira grandes efeitos mágicos, deverá pôr-se em contato com pedra imã a saída do sol e dizer a seguinte oração: Dedico-vos, Senhor Poderoso Alfa e Ômega, substância e espírito de toda criação, a lembrança diária de minha alma, que espera vossa divina proteção, em quantas obras há de executar neste dia.

Tendo fé, paciência, constância e observado todas as virtudes, podereis adquirir um domínio tão grande que até os reis necessitarão de tua ajuda e jamais alguém poderá lhe fazer dano de qualquer classe. Terás uma inteligência clara para adquirir toda classe de conhecimentos e prosperarás em quantos trabalhos empreendas. Este anel se coloca no dedo do coração da mão direita.[23]

A lenda do anel mágico do Rei Salomão se desenvolveu desde sua primeira menção em o Testamento de Salomão, ganhando camadas e mais camadas de mitos na tradição talmúdica e entre os árabes. As instruções de São Cipriano sobre o anel mágico carregam toda essa tradição enriquecida por lendas e contos dos feitos miraculosos do Rei Salomão no comando de demônios por intermédio do anel. Seja como for, as instruções de São Cipriano acima estão em acordo com o estudo anterior que fizemos sobre o anel mágico (Carta 16). O anel é de ouro, feito e consagrado no dia do sol porque estas são correspondências mágicas atribuídas ao trabalho com espírito assistente ou daimon pessoal, que opera sob a tutela de deuses solares e a medicina planetária do Sol. Como vimos anteriormente, o anel mágico deve carregar a assinatura astral do espírito assistente, conferindo poderes miraculosos ao mago e autoridade sobre uma miríade de criaturas espirituais. Quando São Cipriano diz: podereis adquirir um domínio tão grande que até os reis necessitarão de tua ajuda e jamais alguém poderá lhe fazer dano de qualquer classe, convoca a ideia dos poderes conferidos ao mago pelo espírito assistente; e quando menciona que o mago terá uma inteligência clara para adquirir toda classe de conhecimentos e prosperarás em quantos trabalhos empreendas, introduz também a ideia de que através das virtudes do anel mágico é possível adquirir por meio do espírito assistente conhecimento e sabedoria ocultos, bem como proteção espiritual. Entrelinhas o que São Cipriano faz é descrever a ação do daimon pessoal através do anel mágico. Tanto é assim que São Cipriano instrui em usar o anel no dedo do coração, quer dizer, o dedo anular da mão direita, aonde se diz que os espíritos familiares das bruxas se alimentam de seu sangue.[24] A famosa marca da bruxa, tão perseguida pelos inquisidores medievais, se trata da marca no corpo aonde as bruxas supostamente alimentavam seus diabos pessoais.[25]

De acordo com muitas tradições, o poder de voar se estendia aos homens na era mitológica; todos podiam alcançar os céus, seja pelas asas de um pássaro fabuloso ou sobre as nuvens. [...] Nós observamos que poderes mágicos como estes eram atribuídos a yogīs, faquires e alquimistas.[26] Nos Papiros Mágicos Gregos este poder era conferido ao paredros, o espírito assistente que vai levar você pelo ar; ele é um espírito aéreo que você viu. [Ele é o] assistente mais poderoso e único senhor do ar. [...] Quando você estiver morto, ele envolverá seu corpo como um deus, e levará seu espírito pelo ar com ele. Pois nenhum espírito aéreo que se une a um poderoso assistente irá para o Hades, pois para ele todas as coisas estão sujeitas.[27] Como temos observado, ao espírito assistente é dado todo o poder: invisibilidade, mudança de forma, trazer riquezas, mulheres, construir templos, revelador de sabedoria oculta e provedor de profecias, guia do destino, guardião poderoso e salvador da alma humana, libertando-a do cativeiro do Hades. Todos esses poderes eram conferidos ao mago assim que efetivamente tivesse conjurado o espírito assistente. Isso, na verdade, era a coroação de um profundo, rigoroso e longo processo de aprendizado e treinamento espiritual. No xamanismo, o trabalho com diversos espíritos familiares confere ao feiticeiro (homem de medicina) tipos distintos de capacidades paranormais, associadas a seus totens. Essa palavra, totem, nasceu na cultura do xamanismo vermelho norte-americano e se refere a uma relação espiritual íntimo-familiar com o espírito tutelar de um clã, família ou tribo, geralmente na forma de uma estátua de madeira. Nem sempre as criaturas espirituais retratadas nesses ídolos são animais; às vezes os totens trazem formas de criaturas sobrenaturais, consideradas espíritos guardiões. No xamanismo da América Setentrional os feiticeiros e xamãs mencionam o nagual como um espírito familiar que atua tanto como um aliado (servidor) quanto como um duplo astral, quer dizer, conferindo a capacidade ao mago de metamorfosear-se: Um aliado, [diz Don Juan], é a [fonte do] poder que pode ajudar o homem, aconselhá-lo e dotá-lo de força para agir, grande ou pequeno, certo ou errado. Esse aliado é necessário para empoderar a vida do homem, guiar suas ações, dá-lo conhecimento. De fato, o aliado é a ferramenta indispensável do conhecer. [...] O aliado fará você ver e entender coisas sobre as quais nenhum ser humano poderá lhe dizer. O Aliado muda de forma e o homem muda de forma com ele.[28] Acessar o nagual[29] de alguém, trata-se de acessar a fonte por trás de sua vida.

A capacidade de metamorfosear-se astralmente pelos feiticeiros é atestada por inúmeros relatos de experiência xamânica visionária e transe mediúnico em choupanas de cabala crioula. Os animais de poder do feiticeiro, seus espíritos assistentes, circulam livremente no seu veículo pneumático, transformando sua forma astral. Em cerimônia de feitiçaria xamânica, rituais do Santo Daime ou de cabala crioula, eu pude ver essa metamorfose astral. Mas de todos os poderes atribuídos ao espírito assistente do mago, os quais ele compartilha, seja transmissão de sabedoria oculta, vidência ou força sobre-humana,[30] o mais desejado é o poder de deificação da alma. Como vimos na Carta 0, o mago ou homem da Antiguidade não desejava passar seu pós-vida no Hades, o submundo. Esse era um duro castigo a alma, repudiado por todos nas culturas do Mediterrâneo, mas somente alguns tinham condições de escapulir deste destino: os magos. O conhecimento e conversação com o espírito assistente poderia livrar o mago do terrível destino do Hades, deificando sua alma. Essa era uma crença comum e muitos relatos mitológicos estão repletos de deuses deificando almas humanas. Os papiros gregos atestam, como vimos acima, que o contato com o paredros livra a alma do mago da masmorra do Hades, de maneira que ela permanece intacta, deificada e servindo como mestre, guia e assistente de outros magos em uma família de espíritos. São Cipriano, Fausto, Simão o Mago, Maria Padilha, Merlin entre muitos são almas deificadas que atuam como espíritos patronos ancestrais de magos e feiticeiros.

No xamanismo vermelho, uma maneira de entrar em contato com o espírito assistente é através da busca da visão, que implica jejum, esgotamento físico, preces e cânticos. Essa busca confere ao feiticeiro o poder de seu espírito assistente, quer dizer, sua medicina. Assim como um mago acessa a sua magia particular em contato com o espírito assistente, um feiticeiro xamânico acessa sua medicina particular de cura através dele. Como vimos nas Cartas 11, 13 e 14, a disciplina espiritual de todas as culturas para o conhecimento e conversação com o espírito assistente é quase que universal, compartilhada por xamãs, monges cristãos, magos salomônicos e feiticeiros crioulos. O weyekin é um espírito guardião do deserto conjurado na tradição do xamanismo vermelho através da mesma disciplina da busca da visão. Este espírito é convocado na entrada da adolescência, quando um jovem é enviado ao deserto, sendo ele assessorado por um homem de medicina (feiticeiro). A tradição conta que a alma deve atrair o weyekin que, por sua vez, é compelido a ela pelo seu poder de disciplina, propósito e força de vontade. Se o jovem não tem essas qualidades inatas na alma, despertas pela ocasião do retiro, o weyekin não é atraído por ela. O weyekin, desrespeitado pela falta de disciplina, coragem e vontade do jovem, ao invés de passar auxiliá-lo, diferente disso passa a castigá-lo, trazendo muitas mazelas a sua vida. A medicina do weyekin é o poder de cura e o trato com almas mortas, auxiliando o feiticeiro em suas pajelanças.

A tradição da magia oferece o pacto para se estabelecer uma relação harmoniosa de confiança entre o mago e os espíritos, todos eles. Na Antiguidade tardia, período em que situamos os Papiros Mágicos Gregos, a realização máxima da jornada de um mago era adquirir Conhecimento & Conversação com o espírito assistente e com ele forjar um pacto. Foi neste período que a apologia cristã contra a feitiçaria relatando a vida de São Cipriano começou a ser tecida em uma das muitas tentativas de depreciar a magia em detrimento da fé cristã.[31] Os Papiros Mágicos Gregos apresentam o gênio familiar como o paredros, um espírito assistente que é a origem dos poderes taumatúrgicos e oraculares de um mago. Santo Irineu de Lião (130-202 d.C.) em seu Contra as Heresias acusa o Marcos, um líder gnóstico que ele atribui a alcunha de mago, de ser acompanhado por um espírito assistente, o qual lhe dotava com capacidades proféticas. Os apologistas cristãos também acusam Simão o Mago de ser auxiliado por um espírito tutelar. Mas é somente em Santo Agostinho (354-430 d.C.) que o espírito assistente ou gênio familiar, o patrono do mago, se transforma definitivamente no Diabo, o qual solicita um pacto de posse da alma do mago, como vemos na história de Fausto. Os apologistas cristãos que teceram as histórias de São Cipriano, Fausto e Simão o Mago como ataques a tradição da magia tinham essa ideia em mente. Com essa demonização do espírito assistente, a Igreja de Roma apresentou, com o tempo, sua própria versão do espírito assistente, o Anjo da Guarda. No entanto, paralelamente, a ideia original do espírito assistente como apresentada nos papiros gregos sobreviveu e se tornou a estrutura por trás do retiro (ou isolamento) e operação mágica de Abramelin.[32] Assim como no xamanismo, o mago se retira na busca da visão, conhecimento e conversação com seu espírito tutelar. Isolamento, silêncio, jejum, preces, orações e invocações, alimentação e sono restritos. Os ingredientes para essa jornada são os mesmos tanto no xamanismo quanto na tradição da magia. Seu coroamento é o pacto que se estabelece com o gênio familiar para dele receber seus poderes e o controle sobre uma miríade de criaturas espirituais. São Cipriano diz: O grande segredo da magia é a arte de fazer pactos com os espíritos para deles obter ajuda em toda classe de experimentos e para que eles desvendem segredos, mostrem tesouros e operem prodígios.[33]

O pacto com as criaturas do Corpo de Deus pode ser considerado a primeira iniciação na Arte dos Magi ou, pelo menos, a mais especial. Como vimos na Carta 15, o famigerado pacto com o diabo data do período conflitante que marcou os Sécs. III e IV d.C., onde um profundo debate e embate ocorria entre o cristianismo e as tradições pagãs do Mediterrâneo. Apologias cristãs contra a magia como a história de São Cipriano começaram a ser disseminadas, ganhando prestígio e fama. Nessas apologias a magia aparecia como obra do Diabo e para aprendê-la, o mago teria de estudar com o próprio Diabo em troca de sua alma no pós-morte. Como essas histórias ilustravam a vitória do cristianismo sobre a tradição dos magos, aqueles que faziam pacto com o Diabo e vendiam a ele suas almas logo se arrependiam de seus feitos, suplicando a Deus por misericórdia e libertação da alma, presa ao Diabo pelo poder do pacto. Eram apologias de condenados arrependidos. As histórias mais antigas que relatam o pacto com o Diabo são as de Teófilo de Adana e a do senador romano Protério de Cesaréia. Ambos são personagens do Séc. IV d.C. Enquanto Teófilo de Adana fez um pacto com o Diabo para reaver sua posição na Igreja Católica, Protério de Cesaréia teve a sua filha seduzida por um servo que houvera feito um pacto com o Diabo. Essas histórias influenciaram substancialmente a Confissão de São Cipriano que já circulava no tempo de Santo Agostinho. Seja como for, essas apologias construíam a ideia de que por meio do pacto e o juramento da entrega de sua alma ao Diabo, o mago conquistaria sucesso naquilo que desejasse. Teófilo queria retomar o cargo episcopal de bispo na Igreja, mas São Cipriano, no entanto, queria algo mais, como vimos na Carta 0; ao avaliarmos a busca de São Cipriano entendemos que ela reflete os anseios espirituais do mago da Antiguidade: a deificação de sua alma através do conhecimento e conversação com o espírito assistente. São Cipriano representa, portanto, o típico mago da Tradição Hermética de Mistérios como estudamos nas Lições 1 e 2. Sua história e as conquistas nela narradas são importantes porque demonstram os passos pelos quais qualquer mago busca aprender, compreender e praticar a Arte dos Magi; em outras palavras, se inserir na tradição da magia. Toda essa estrutura é apresentada fielmente na história de Fausto, que apareceu como hoje a conhecemos somente no fim da Idade Média. Tanto São Cipriano quanto Fausto travaram comércio com o Diabo, no entanto, pessoal. O diabo pessoal de São Cipriano e Fausto e o espírito assistente ou Sagrado Anjo Guardião que todo mago anseia conhecer e estabelecer conversação.

Nesse ponto de nosso estudo você poderia se perguntar: se tudo o que foi escrito sobre São Cipriano, sua história, feitos, trajetória mágica, feitiços, orações e pensamento mágico-filosófico se tratam de uma construção fictícia, embora baseada fidedignamente na tradição da magia e nos feitos dos magos, como pode ele ser uma alma deificada? A resposta a esta indagação é técnica. Nos nossos estudos do Curso de Filosofia Oculta nós vimos que a Alma do Mundo se difunde de um modo especial por todas as partes do cosmos, um meio de qualidade feminina que os Oráculos Caldeus chamavam de Hécate e, segundo o pensamento de Agrippa, moldada a partir de proporções numéricas harmoniosas. Essas proporções numéricas são sunthēmatas noéticas, símbolos sencientes do Plano das Ideias arranjados em proporções áureas ideais que, por consequência, produzem efeitos miraculosos de criação mágica no reino da geração. É dessa maneira que o Criador manifestou fisicamente todas as coisas.[34] Assim, qualquer mago que manipule estes símbolos noéticos com precisão pode modular qualquer coisa que ele deseja na Alma do Mundo, claro, sob as conduções adequadas. Essas condições adequadas é o tema do primeiro livro de filosofia oculta de Agrippa e a manipulação desses símbolos noéticos o tema do segundo livro, magia natural e magia matemática respectivamente.[35]

Por outro lado, a história mítica de São Cipriano vem tomando forma desde a Antiguidade tardia. Aonde São Cipriano chegou sua feitiçaria se uniu a magia de culturas locais. Assim, com o tempo uma miríade de escritos começaram a aparecer com o nome de São Cipriano trazendo feitiços, rezas, benzas, maldiçoes, conjurações, orações etc. de várias culturas europeias e, recentemente, até brasileira. Com meio mundo entrando em contato com o espírito de São Cipriano através de seus grimórios, chamando seu nome, rezando seus feitos e poderes, uma criatura espiritual começa a ser gerada dentro da Alma do Mundo e hoje existe um São Cipriano deificado nos planos internos, espírito patrono dos feiticeiros, disciplinador da alma dos mortos, conjurado e assentado em altares por magos de várias partes do globo. É dessa maneira que São Cipriano tornou-se uma alma deificada capaz de auxiliar magos e feiticeiros em seus trabalhos espirituais. Hoje qualquer mago pode conjurar a presença espiritual de São Cipriano e assentá-lo como um espírito tutelar, como veremos na próxima seção.


NOTAS:


[1] Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro; veja Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores. É interessante notar que a visão aqui nos transmitida por Jonas Sufurino acerca da relação do homem com os espíritos seja àquela que a Igreja Católica adotou inspirada em Porfírio de Tiro, de que os espíritos influenciam os homens e que os homens influenciam os espíritos. Veja Carta 1: A Demonologia de Porfírio de Tiro.

[2] Aleister Crowley, Magick Whitout Tears.

[3] Frater Acher em seu livro Cyprian of Antioch trabalha com a tese de que São Cipriano pode ter vivido na legião dos vivos. Ele traça uma ampla pesquisa por pistas e provas que comprovem essa tese. Mas ele acaba por concordar que mesmo com tais provas a mão, ainda sim não é possível saber se São Cipriano viveu ou não entre os vivos.

[4] Essa é uma derivação direta do pensamento de Porfírio de Tiro. Em sua demonologia, ele demonstra que dependendo de como são tratados os espíritos (daimones), eles podem fazer bem ou mal aos humanos. Essa concepção sobrevive até hoje nas choupanas de cabala crioula. Veja carta 1: A Demonologia de Porfírio de Tiro.

[5] Nós vemos este mesmo padrão Faustino na história de Simão o Mago. Como um feiticeiro que necessitava de toda tecnologia da magia para realizar sua arte, quer dizer, círculo mágico, armas mágicas, sacrifícios etc., Simão teria se encantado pelos milagres que Felipe e Pedro podiam fazer apenas com o poder da palavra. Para adquirir este poder ele converte-se ao cristianismo e é batizado. Veja Lição 2. Este padrão Faustino também é encontrado na tradição da magia popular ibérica, que arrasta através dos tempos admiração por um frade dominicano, Gilles de Santarem (1185-1265). Conhecido como Frei Gil, ele renunciou a Deus ao fazer um pacto com o Diabo. Mas ao apelar a Virgem Maria (evocando a história de Teófilo de Adana mencionada nas lições anteriores), rompeu o pacto com o Diabo e se converteu. Então essa lenda faustina do feiticeiro que se converte é culturalmente conhecida e espalhada na Península Ibérica, onde desenvolveu-se a tradição cipriânica da magia.

[6] Esses são textos considerados heterodoxos, pois não fazem parte do cânone cipriânico conhecido e baseado nas três fontes acima citadas.

[7] Hinário do Rei Salomão, Fernando de Ligório.

[8] Em Grimorium Verum, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[9] Em O Grande Livro de São Cipriano, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[10] Em Hygromanteia, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[11] Em Os Papiros Mágicos Gregos, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[12] Espírito assistente morto, ou seja, a alma deificada do gato através de um rito de deificação. Este rito trata-se do sacrifício ritual do animal. Veja Carta 16.

[13] Folhas de metal utilizadas nos feitiços dos papiros gregos.

[14] São Cipriano, A Confissão de São Cipriano em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[15] Idem.

[16] Veja Carta 15.

[17] São Cipriano, A Confissão de São Cipriano em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[18] Papiros Mágicos Gregos, I 1-195.

[19] São Cipriano em Qualidades Essenciais para Professar as Artes Mágicas em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[20] Mircea Eliade, Xamanismo: Técnicas Arcaicas de Êxtase, Martins Fontes.

[21] São Cipriano, Sobre a Arte de Evocar os Mortos em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[22] O Testamento de Salomão em Thesaurus Magicus, Vol. I. Humberto Maggi, 2010, Clube de Autores.

[23] São Cipriano, Sobre o Anel de Salomão em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[24] Algumas fontes incluem o dedo mindinho. São Cipriano ensina a alimentar um diabrete (espírito familiar) com sangue do dedo mindinho.

[25] Embora possa ser uma conexão difícil de compreender, ela ficará óbvia no curso de nossos estudos.

[26] Por alquimistas entenda rasāyaṇa-darśana, a ciência alquímica indiana. Passagem de Mircea Eliade, Xamanismo: Técnicas Arcaicas de Êxtase, Martins Fontes. A correção diacrônica é minha.

[27] Papiros Mágicos Gregos, I 1-195.

[28] Carlos Castañeda, Ensinamentos de Don Juan.

[29] É difícil traçar as origens da palavra nagual. Os acadêmicos costumam traduzi-la como feiticeiro ou feitiçaria, o que tem criado bastante obscurantismo. Ela já aparece no Códice Borgia, um texto mexicano pré-colonização espanhola para trabalhos de divinação. No xamanismo da América Setentrional a palavra nagual está associada a um meio pelo qual se obtém conhecimento. Ela é sempre acompanhada de outra expressão, o tonal, a contra parte do nagual ou a alma humana pelo qual nagual se atraiu. Como um espírito assistente, o nagual ainda é a conexão entre o feiticeiro e o mundo dos espíritos, sendo eles conectados pelo próprio destino. Ele age como espírito guardião, animal de destino e professor.

[30] Os berserkers nórdicos, por exemplo, eram guerreiros poderosos com força sobre-humana que recebiam seu poder de um espírito tutelar na forma de um urso. Antes de invadirem e pilharem, os berserkers se reuniam para convocar este espírito assistente e se vestiam com peles, dentes e ossos de urso em rituais orgásticos para invocar seus poderes, os quais eles usavam para se tornarem invencíveis.

Os poderes da orgia sexual e da quimiognose eram utilizados por tribos de muitas culturas para convocar espíritos assistentes. Kenneth Grant (1924-2011) explora o poder da magia sexual para o conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião ou deus oculto como ele nomeia em suas obras, O Renascer da Magia e Aleister Crowley & o Deus Oculto. Uma discussão esclarecedora do deus oculto como sombra (chaya) ou duplo aparece nessas obras e em outra, Cultos das Sombras.

Na Idade Média, o poder sexual de atração da bruxa era considerado um espírito familiar, um duplo astral que a acompanhava. A palavra em inglês utilizada para este duplo é fetch (encantar, fascinar); considerava-se que ele possuía grande poder magnético. Desse termo vem outro, fetiche, que descreve algo (um objeto mágico como um talismã) ou alguém com grande poder de atração. Quando a libido é dirigida a um objeto, ação ou parte do corpo ao invés de um parceiro ou um espírito familiar produz-se o espírito do fetichismo. Modernamente entende-se que um fetiche se trata de um objeto, geralmente sem implicações sexuais, como um calçado, que atraí a atenção sexual. No entanto, na tradição da magia desde tempos antigos, um fetiche se trata de um objeto mágico, a morada de um espírito assistente cujas virtudes despertam certo magnetismo. Estátuas adoradas em diversos cultos são, dessa maneira, fetiches. Na Antiguidade, dentre os sistemas oraculares da cultura mediterrânea existia a divinação através de estátuas que ganhavam vida. As estátuas eram portais através dos quais as sacerdotisas oraculares acessavam o espírito assistente que residia nelas. É interessante notar que essas sacerdotisas eram virgens (dedicadas à deusa Vesta, portanto, vestais) ou castas, dedicadas a outros deuses e deusas. Todo o fetch era dirigido ao conhecimento e conversação com a deidade. Se trata de uma prática pancultural bruxas, magos e xamãs de todas as culturas reservarem sua potência sexual para o contato com espíritos assistentes (magia) ou transcendência espiritual (misticismo).

A crença nesse espírito familiar era tão profunda que as bruxas acreditavam que sob certas circunstâncias, o fetch podia se manifestar materialmente, dependendo da concentração de desejo nele projetada. É através do fetch que a bruxa tem poder de magia e ele representa a própria força que produz a criação. Os gregos chamaram este espírito assistente de Eros e disseram que onde ele se manifesta, a magia se realiza. Representando o espírito da libido, o fetch poderia materializar-se como uma sombra ou duplo, engajando em coito sexual com a bruxa em um sabbath de bruxaria. É sobre o trabalho com o fetch ou sombra que Kenneth Grant se debruça em sua obra Cultos das Sombras. Eu falei sobre esse tema nas edições de O Olho de Hoor, Vol. I, Nos. 9 & 10. A palavra fantasia (faculdade de produzir imagens) que utilizamos no termo fantasia sexual vem da palavra fantasma (ilusão, projeção imaginativa). No grego, ambas denotam demonstrar, fazer visível, tornar aparente. Fantasmas ou fantasia podem ser, portanto, projeções da mente imaginativa, imagens projetadas pelos olhos da mente. A repetição de uma fantasia sexual acerca de uma pessoa como projeção imaginativa pode, com o tempo, capacitar o fetch a atrair a pessoa desejada pela bruxa. Em contos medievais de feitiçaria, as bruxas velhas atraíam suas vítimas para floresta, homens e mulheres, projetando a imagem de uma jovem voluptuosamente sedutora. Tratava-se do fetch materializado. Espíritos de todos os tipos, incluindo vampiros (súcubos ou íncubos), demônios etc. são atraídos ao fetch das bruxas como mariposas são atraídas a luz. Na magia sexual cerimonial, a lamparina mágica representa o fetch dos magos, que precisa ser alimentado com ojas para brilhar reluzente.

Por outro lado, a palavra fascinar é latina e originalmente significava feitiço ou encantamento. Fascinar é colocar alguém sob feitiço ou encanto. Nós nos fascinamos por tudo que nos chama atenção das inclinações naturais humanas; fantasias sexuais têm uma natureza obsessivamente atraente e é sobre este princípio que opera a magia sexual com o chaya. O fetch é o poder sobre o qual a bruxa projeta os fantasmas de sua mente, sejam eles conscientes ou não. Por sua vez, como um assistente mágico ele torna tangíveis esses fantasmas. Em outras palavras, o fetch é como o gênio da lâmpada que realiza os desejos da bruxa.

Através da magia sexual o fetch é alimentado com ojas, tornando-se uma lamparina reluzente nos planos internos, o que torna a bruxa magnética e atraente. As frustrações sexuais, de outra maneira, contaminam e adoecem o fetch, que atrairá apenas criaturas espirituais substancialmente torpes e de natureza vil.

[31] Uma dessas tentativas foi a demonização do mago Merlin que viveu no Norte da Bretanha por volta do Séc. V d.C. Merlin foi considerado o último profeta pagão da Europa. Nas apologias cristãs contra o paganismo europeu ele foi transformado em um velho druida meio-homem; filho do Diabo em pessoa, Merlin foi reverenciado por sua sabedoria e condenado ao inferno pela prática da magia. Como veremos adiante, a doutrina do pacto com o diabo proliferada pelas crônicas cristãs seguiu este mesmo caminho de deturpação do sentido original de pacto com os espíritos, mantendo aspectos essenciais da tradição, mas com implicações severamente negativas ao adicionarem a concessão da alma pela busca de poder temporal.

[32] É interessante notar a similaridade entre o sistema de magia divina em O Livro da Magia Sagrada de Anramelin, o Mago, com o sistema gnóstico de iniciação. Em meu livro Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon esse tema foi elaborado e apresentado com detalhes.

[33] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.

[34] Por Alma do Mundo nos escritos de Eliphas Levi leia-se Luz Astral. É interessante notar como essa doutrina fomentou as concepções modernas acerca da magia. Para Levi, a projeção da vontade via imaginação, quer dizer, a manipulação de sunthēmatas noéticas ou proporções numéricas harmoniosas é o suficiente para dar movimento e forma a Luz Astral.

[35] Veja Agrippa, Três Livros de Filosofia Oculta. É pela falta deste conhecimento que a magia – leia-se psicurgia – do caos não funciona efetivamente.