domingo, 16 de janeiro de 2022

O Ochēma

Anteriormente nós vimos que o ochēma-pneuma trata-se do veículo pneumático da alma, como um invólucro tênue que envolve a alma na forma de um ovo de luz. A visão moderna que o ocultismo no ocidente tem deste veículo pneumático é importada da tradição hindu via Sociedade Teosófica no Séc. XIX. Mas a visão deste veículo pneumático que o mago da Antiguidade possuía foi desenvolvida pela própria tradição ocidental de mistérios, cujo refinamento ficou sob a responsabilidade da tradição neoplatônica. É no neoplatonismo tardio ou baixo que ao ochēma foi dado maior atenção para os fins do trabalho teúrgico sobre a alma. É através do ochēma que os deuses podem influenciar e envelopar o teurgo, para usar um termo de Jâmblico. Ele sustenta que o teurgo veste-se com o manto dos deuses no curso do ritual, quando ocorre a inspiração divina, termo que Jâmblico usa para dizer possessão daimônica ou transe mediúnico. Em estado de transe/êxtase, o ochēma se expande consideravelmente, abrindo espaço para presença de um agente externo, uma deidade (deus, daimon, exu etc.) que temporariamente ocupa este ochēma expandido. Para Jâmblico, a inspiração divina só é efetiva quando o agente externo se apodera completamente do aparato psico-fisiológico do teurgo, o que nós identificamos como incorporação total ou inconsciente, quando o médium/mago desliga-se completamente e apenas a deidade age em seus veículos. Sacerdotes de cabala crioula falam de incorporação consciente e semiconsciente, querendo dizer que de certo modo o médium/mago participa do processo. 

É através do ochēma que o teurgo recebe as virtudes dos deuses na alma. Isso é deveras importante ao comprometimento espiritual do teurgo com sua alma. Ao receber as virtudes dos deuses no ochēma, o que chamamos também de enriquecimento de alma, ele se torna um veículo pneumático luminoso (augoeides) através do qual a alma é deificada. É através do ochēma que a alma se alimenta, de tudo. Eu costumo dizer que a região sublunar, o reino da geração, é um grande mar onde tudo come tudo. Larvas astrais que perambulam pela região do plano astral tanto são devoradas por espíritos mais fortes quanto usam como carapaças, conchas invadidas, corpos astrais em decomposição, quando se tornam cascões astrais. Nós nos alimentamos e também servimos de alimento para tudo e todos, isso significa que influenciamos e somos influenciados por homens e os espíritos de todas as coisas. Mas existe uma forma de nos protegermos, de fortificarmos o ochēma para que ele se alimente apenas do que precisa para deificação da alma: o conhecimento e a conversação com o espírito tutelar. Este espírito tutelar na tradição neoplatônica-cristã é o Sagrado Anjo Guardião, na Quimbanda é o Exu Mentor.[1] 

Voltemos ao ponto da incorporação ou inspiração divina. Em O Espírito de São Cipriano eu falei acerca da incorporação do Sagrado Anjo Guardião. Se nesse ponto da jornada nós sabemos que o Sagrado Anjo Guardião como o entendemos hoje se trata da evolução da doutrina do espírito tutelar (patrono/assistente/familiar), da mesma maneira que nos comunicamos com qualquer espírito assistente também nos comunicamos com o Sagrado Anjo Guardião, quer dizer, por meio da incorporação mediúnica. BJ Swain expõe o tema nesses termos:

Estes espíritos [tutelares] sentam-se com o mago ou sacerdote e falam com ele, lhe dão conselhos, lhe ajudam a interpretar [mensagens de outros] espíritos e a divinação, além de organizarem o seu [do mago] trabalho com outros espíritos. Mas todas essas coisas o Sagrado Anjo Guardião também faz. [...] Essa comparação clareia a relação do Anjo com o mago, entendida na forma de possessão [mediúnica]. No Ocidente nós pensamos em possessão como uma coisa negativa, opressiva e involuntária. Mas em outras culturas a possessão é vista com bons olhos e é considerada positiva. Religiosos e magos criam uma relação com os espíritos onde tanto os espíritos quanto o mago se beneficiam mutuamente e através disso, toda comunidade. [...] Algumas tradições da magia ocidental têm uma visão positiva da possessão voluntária, como aquelas da diáspora africana para as Américas e Caribe. [...] A possessão ocorre em diferentes níveis; inicialmente o espírito se assenta no mago, quando o mago sente sua presença e eles compartilham conhecimento e íntima relação, mas não existe ainda a entrega do controle da consciência. Na medida em que a interação entre espírito e mago progride, cada vez mais o espírito toma parte da consciência do mago. Na possessão total o mago cede controle absoluto de sua consciência ao espírito. [...] O Anjo é o espírito [tutelar] que possui completamente [a consciência do] mago.[2] 

A possessão daimônica, inspiração divina ou incorporação mediúnica é uma das ferramentas fundamentais da feitiçaria brasileira. Quando Jâmblico explica o fenômeno da inspiração divina, se vê obrigado a descrever os ritos de teurgia que possibilitam o fenômeno. Em sua descrição, no entanto, ele fala do uso de instrumentos musicais como tambores, pandeiros e flautas que induzem um estado de receptividade no ochēma, permitindo sua expansão e a partir disso a possessão divina. Ao conhecedor de cabala crioula, a descrição de Jâmblico não difere em nada de uma gira onde entidades são convocadas. Até o presente em nossos estudos do Curso de Filosofia Oculta nós aprendemos: 

Que todas as criaturas da região sublunar, no reino da geração, possuem um ochēma ou veículo pneumático, pois ele sustenta a conexão da alma com o corpo. Não apenas as almas corporificadas, mas deuses, heróis e daimones possuem ochēma. Sem um ochēma nenhuma criatura espiritual seria capaz de agir no reino da geração.

O ochēma não sofre alterações em sua natureza devido a fatores externos, mas sofre alteração em sua sutileza, precisando ser purificado a partir de orações e invocações, banhos, fumigações e estilo de vida daimônico-espiritual-filosófico. Através do contato com a deidade tutelar, o ochēma torna-se um poderoso escudo contra ataques de magia negra, ácidos ou alcalinos.

Da mesma forma que na tradição neoplatônica-cristã cada alma é acompanhada por um Sagrado Anjo Guardião (o daimon pessoal), na tradição da quimbanda cada alma é acompanhada por um Exu Guia ou Exu Mentor Espiritual. O Exu Pessoal é a dinâmica ou movimento individual de cada alma, e que tem uma individualidade própria, aliás, individualidade essa primeiro reverenciada com oferendas nos cultos e giras.

O Sagrado Anjo Guardião (ou daimon pessoal) e o Exu Mentor possuem ochēma. A interação entre o ochēma individual e o ochēma da deidade que possibilita sua influência em nossa alma e a possessão divina. No processo da incorporação, é como se o Exu Mentor e o mago começassem a compartilhar de um só ochēma que passa a incluir o ochēma de ambos.

Anteriormente, nós falamos amplamente acerca da transformação do ochēma em um augoeides (Ovo de Luz). Por agora vamos nos concentrar no Culto de Exu. Por ignorância, muitos são levados a crer que o conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião livra a alma da danação no submundo e que o contato com Exus e Pombagiras leva a danação no inferno. Embora de certa maneira reflita uma realidade em termos soteriológicos, trata-se de uma deturpação que reflete apenas a escatologia criada pela cultura judaico-cristã e que perverteu inúmeros arcanos de iniciação do passado. É uma ignorância por muitos fatores! Por exemplo, um feiticeiro da quimbanda não pretende habitar os reinos de luz e perfeição dos éteres superiores. Na quimbanda, estes éteres superiores são a morada de almas que ainda vivem presas aos ciclos de morte e renascimento, hipnotizadas ou escravizadas dentro de um sono profundo. Um feiticeiro da quimbanda, ao contrário disso, pretende ser aceito nas legiões de Maioral, dentro de seu reinado espiritual, que são os Sete Reinos Infernais da Quimbanda. E isto está em sincronia com as crenças espirituais dos magos da Antiguidade, cujo objetivo era tornar-se uma alma deificada para auxiliar em espírito magos encarnados na legião dos vivos. Exus e Pombagiras são poderosos magos negros da região infernal, treinados nas artes mágicas e que possuem grande sabedoria. Mas para que a alma de um feiticeiro de quimbanda possa ser aceita no Reino Obscuro de Maioral, uma alquimia distinta no ochēma ocorre.[3] 

Através do Culto de Exu os quimbandeiros aperfeiçoam sua alma, despertam suas fagulhas ígneas e capacidades inatas. O Culto de Exu produz uma alquimia distinta no ochēma, transformando sua qualidade em um Ovo Negro. Enquanto a teurgia (clássica neoplatônica) busca transformar o ochēma em um augoeides (Ovo de Luz), a quimbanda opera uma alquimia de obscurecimento do ochēma para que a luz contida nos rincões mais sombrios da alma brilhe na escuridão; ao mesmo tempo, transformando o ochēma em uma carapaça rígida de proteção, um escudo negro intransponível. Esse escudo, no entanto, é fortalecido pela presença do Exu Mentor, que passa a compartilhá-lo com o mago/médium operando como um filtro para tudo o que entra e de tudo o que sai. É como se o Exu Mentor envolvesse o mago/médium com sua capa negra e colocasse a sua frente seu tridente de proteção. 

Alguns Exus, como o Sr. Tranca-Rua das Almas, estão profundamente engajados na alquimia da alma de seus filhos de fé. A quimbanda não sustenta nenhum tipo de vício ou faz apologia a uso de qualquer entorpecente; ou mesmo coaduna ou incentiva um estilo de vida de entrega desmedida aos sentidos e apetites animalescos. Esse tipo de comportamento afeta profundamente a qualidade do ochēma, atrapalhando a Alquimia Negra de Exu. Para que essa alquimia ocorra, o mago/médium deve procurar por um processo de simbiose entre seu ochēma e o de seu Exu Mentor através de um sistemático processo de desenvolvimento mediúnico e aperfeiçoamento da alma, libertando-a das descargas emocionais descontroladas, da falta de firmeza na mente (e, portanto, vontade), da preguiça, apetites desmedidos, vícios e indisciplinas. Exu é dinamismo e potência, é poder criativo e ímpeto ígneo. São essas as virtudes que Exu transmitirá ao ochēma do mago. 

Geralmente o Culto de Exu da quimbanda é tido como uma baixa feitiçaria em contraste com uma teurgia de tipo superior encontrada na alta magia moderna de inclinação judaico-cristã. Mas isso é outra ignorância dos arcanos espirituais da quimbanda. Os procedimentos mágicos da feitiçaria do Culto de Exu não são nada distintos dos procedimentos da teurgia clássica neoplatônica ou do xamanismo aborígene de muitas culturas. Não há procedimento nenhum que um feiticeiro da quimbanda faça que seja distinto do procedimento de um teurgo neoplatônico. A distinção não está no exercício da magia, mas na cosmovisão e metalinguagem que se adota. Enquanto um teurgo neoplatônico lida com criaturas espirituais dos éteres de luz e perfeição e também aquelas do reino da geração e submundo, um feiticeiro da quimbanda lida apenas com almas de mortos, poderosos magos negros dos Sete Reinos Infernais da Quimbanda; eles são, portanto, necromantes (ou nigromantes), feiticeiros (goēs) que lidam com Exus e Pombagiras para fins de divinação (necromancia/nigromancia) e magia (necrurgia). 


NOTAS:


[1] Existem sacerdotes de quimbanda que falam sobre trabalhos com o Sagrado Anjo Guardião (Anjo da Guarda) de seus filhos de santo. Isso é uma ruptura doutrinária medonha. A ideia de Sagrado Anjo Guardião como compreendida pelo neoplatonismo cristão não cabe dentro da quimbanda. Na quimbanda a doutrina do espírito assistente ou deidade tutelar está nas funções do Exu Mentor. Quando esses sacerdotes de quimbanda falam de Sagrado Anjo Guardião de seus filhos fé, estão sendo enganados ou estão enganando.

[2] BJ Swain, Living Spirits: A Guide to Magic in a World of Spirits. Publicação do autor, 2018. Os colchetes são meus.

[3] Como vimos no artigo anterior, A Influência de São Cipriano na Magia Brasileira, inúmeros magos e feiticeiras ao fazerem sua passagem tornaram-se Exus ou Pombagiras poderosas no Reino Obscuro de Maioral, como a Pombagira Maria de Padilha e Pombagira Arde-lhe o Rabo.