domingo, 16 de janeiro de 2022

O Gnosticismo de Paulo e o Problema do Mal

 

“O que liberta é o conhecimento de quem nós fomos, e em quê nos tornamos; onde estávamos, e onde fomos lançados; para onde nós caminhamos, e de onde seremos redimidos; o que é o nascimento, e o que é renascer.”

Valentino (100-160)


Estas sábias palavras resumem bem o espírito gnóstico. Muito mais do que uma religião organizada, até porque suas origens são bastante confusas e dispersas, os gnósticos representam uma tentativa de responder ao mistério da existência do mal no mundo. Se a filosofia nasce do espanto, como diz Platão, pensar sobre o enorme sofrimento das criaturas que habitam este planeta não é algo menos importante. Os gnósticos souberam evitar a armadilha de alguns sofismas como negar a existência do mal, vendo-o como simples ausência de bem, ou de lançar a culpa de tudo de ruim que acontece no mundo nas costas do ser humano. Talvez o gnosticismo tenha nascido mais de uma intuição, de um sentimento de que alguma coisa estava, e está errada, no mundo.

Uma ousadia que me causa admiração nos textos gnósticos é a visão do todo, ou seja, de toda a obra da criação do universo como a origem do mal. Os gnósticos tendem a não pulverizar a ação do mal em eventos isolados como na suposta ação de Satanás na vida dos indivíduos. O demônio para eles tem uma ação muito restrita para ser levado em maiores considerações. O universo inteiro é visto como um calabouço que precisa ser superado e transcendido. Platão tentou harmonizar o otimismo de um mundo que á a cópia mais perfeita do mundo ideal com a noção de que deveríamos sair o mais rapidamente dele, porque o original é sempre melhor do que a cópia.

Quando os gnósticos situam o mundo como uma má criação, que nem mesmo deveria ter existido, julgo que anteciparam o pensamento de Schopenhauer de que a principal fonte do mal é o princípio de individuação. Ser lançado no espaço/tempo, no qual você não tem controle, é o que de pior poderia acontecer. Numa definição filosófica, os gnósticos foram perspicazes de antever o mal como existindo anterior a nós, e não na morte em si, ou em uma futura punição em um inferno no pós-vida. O drama da vida humana, o juízo final em si, é o intervalo entre o nascimento e a morte, e nunca a morte em si. O nascer, portanto, para os gnósticos, é um mal porque o ser humano e os outros seres terão de estar submetidos ao mal que reina no todo.

Alguns cristãos -e filósofos como Eric Voegelin- acusam respectivamente os gnósticos de pretenderem fazer do homem Deus, ou de imanentizarem o juízo final a partir da fé que o mundo está errado, logo deve ser mudado através da revolução histórica. A deificação está presente na filosofia de Plotino e dos neoplatônicos, e mesmo no Cristianismo Oriental, não sendo um monopólio dos gnósticos; quanto a interpretação de Voegelin, considero-a fantasiosa e desonesta porque em nenhum texto gnóstico existe uma convocação para a revolução mundial. Este mundo não pode ser redimido pela ação histórica; apenas no Judaísmo e no Catolicismo existe a semente da revolução. Voegelin bem leu a advertência do filósofo platônico Celso de que no Cristianismo estava localizado o gérmen da revolução futura.

O gnosticismo não tinha uma noção de história como os judeus; consideravam-na inadequada para explicar o drama cósmico. O Jesus que os gnósticos pregavam, o verdadeiro Cristo, não teve seu sacrifício localizado em algum tempo humano (1929, p.37). Os gnósticos tinham um grau de sofisticação elevado o suficiente para não submeter a vida do próprio Filho de Deus à interpretação dos documentos históricos. O filósofo católico Thonnard dizia, com razão, que ninguém que age historicamente é sem pecado. O pecado, então, da Igreja, foi o de ter situado Cristo na História…

A impressão que temos da grandeza do universo e do mundo nos faz ficar cegos diante do sofrimento que se desenrola abaixo. Olhamos para o oceano e esquecemos a selvageria dos seres aquáticos devorando uns aos outros nas profundezas; a selva se nos apresenta fascinante, mas os animais não são marionetes para nosso deleite, dizia Schopenhauer. Leibniz, que escreveu uma das mais infelizes obras da história da filosofia, a Teodiceia, muito enfatiza que o “mal” contribui para que o bem fique mais evidente, e que nós, os seres humanos, temos um bem, que deve ser exercitado, que é o da razão. Ora, mas quantos milhões de seres humanos passaram sobre o planeta Terra sem que jamais tivessem tido oportunidade de exercitá-la? As condições da vida neste mundo são hostis, na maior parte do tempo, ao exercício da razão e da filosofia. Os gnósticos não localizavam o despertar da gnosis na cultura dos livros nem nas escolas, mas a gnosis é a vida na alma (1940, p. 10).

Algo muito importante de ser compreendido no gnosticismo é o papel exercido pelos Arcontes (governantes, em grego). Tenhamos em mente que Paulo, na epístola aos Coríntios, escreve sobre esses “Arcontes”. Segue um esclarecimento sobre isto

Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus (1 Coríntios, 1:24). Tal frase implica uma doutrina gnóstica, e não teria sido usada por um católico primitivo ou um escritor judeu-cristão. Para o primeiro, Cristo foi um sacrifício expiatório, e para o último, o Messias. A ideia de que Deus revelou-se a si mesmo entrou na doutrina cristã através dos gnósticos. Novamente, os gnósticos distinguiam entre a alma do homem natural, que eles chamavam de Ψυχή, e o espírito, que somente poderia ser obtido de Deus através do Logos, Cristo, pela união com ele. O espírito é πνεῦμα. Portanto, os gnósticos classificavam os homens entre pneumáticos e psíquicos. No versículo 14, do capítulo 2, as palavras traduzidas em nossas versões (inclusive em português) por “homem natural”, estão em grego ψυχικὸς δὲ ἄνθρωπος (homem psíquico). Um gnóstico deve ter escrito a passagem na qual o termo ocorre.

Outra expressão é “os arcontes deste éon” ( ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτου), que ocorre em 1 Coríntios 2:8, que em português está “príncipes deste mundo”…

[…} nós sabemos, quando examinamos a Epístola aos Romanos, que esta frase envolve uma doutrina gnóstica.

Gordon Rylands, A Critical Analysis of the four chief Pauline Epistles, London: Watts & CO, 1929. (tradução nossa a partir do original em inglês)


Estes Arcontes exercem uma influência maligna neste mundo. Seu chefe é identificado como sendo o Jeová do Antigo Testamento. São relacionados com a ideia grega da Heimarmene, ou Destino, e que o verdadeiro sacrifício de Cristo, que não foi o de sangue do Jesus católico, foi a da descida para enfrentá-los. A descida é um tema frequente na filosofia e na mitologia, basta recordarmos que Sócrates, no início da República, desce ao Pireu, o filósofo tem que descer à caverna. E todos nós descemos a este mundo, e este é o começo de nossa história e sofrimento. Igualmente, Cristo veio para abolir a Lei judaica, que é obra do Demiurgo (que não tem o significado original platônico) que impede a ascensão da alma (2001, p.43). Poucos compreendem o Cristianismo primitivo há séculos. A psique daqueles homens nos parece estranha, ainda mais numa época tão otimista quanto à nossa. Paulo nunca esteve interessado na vida terrena de Cristo, e muito que leem suas epístolas ficam espantados por que ele não menciona nenhum fato do evangelho. A resposta é simples: o Cristo de Paulo não é de carne e sangue, e ele consideraria repulsiva a narrativa de um deus agindo historicamente. Atentem a esta passagem:

para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.

Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam;

Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória.


ἵνα ἡ πίστις ὑμῶν μὴ ᾖ ἐν σοφίᾳ ἀνθρώπων ἀλλ’ ἐν δυνάμει θεοῦΣοφίαν δὲ λαλοῦμεν ἐν τοῖς τελείοις, σοφίαν δὲ οὐ τοῦ αἰῶνος τούτου οὐδὲ τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτουτῶν καταργουμένωνἀλλὰ λαλοῦμεν θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ, τὴν ἀποκεκρυμμένην, ἣν προώρισεν ὁ θεὸς πρὸ τῶν αἰώνων εἰς δόξαν ἡμῶν: ἣν οὐδεὶς τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτουἔγνωκεν, εἰ γὰρ ἔγνωσαν, οὐκ ἂν τὸν κύριον τῆς δόξης ἐσταύρωσαν.


Os príncipes deste mundo não são governantes como Pilatos e Herodes; antes, são os Arcontes, os que verdadeiramente crucificaram a Cristo. Paulo mesmo faz a distinção daqueles iniciados nos mistérios do Cristianismo original como sendo “perfeitos”. Ao contrário de filósofos modernos como Leibniz, Paulo considerava que a Criação havia sido obra de um deus menor, obra de pura vaidade, à qual estamos sujeitos

Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus.

Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou


ἡ γὰρ ἀποκαραδοκία τῆς κτίσεως τὴν ἀποκάλυψιν τῶν υἱῶν τοῦ θεοῦ ἀπεκδέχεται

τῇ γὰρ ματαιότητι ἡ κτίσις ὑπετάγη, οὐχ ἑκοῦσα ἀλλὰ διὰ τὸν ὑποτάξαντα, ἐφ’ ἑλπίδι


Porque se o nosso mundo é o melhor dos possíveis, por que teríamos tal expectativa? Leibniz, como cristão, não teve como explicar satisfatoriamente a vinda de Cristo ao mundo, uma vez que o mundo não teria motivos para ser redimido. A Criação, para Paulo, só pode ter sido uma coisa má. Assim, porém, podemos começar a entender por que o Cristo de Paulo não é um professor de ética; diante da magnitude do problema, que lugar haveria para o Jesus dos evangelhos sinóticos?

Hans Jonas critica os gnósticos por haverem abandonado o maravilhar-se com o espetáculo da Criação, que tanto os gregos e os judeus sentiram. Mas este maravilhar-se talvez seja mais o exercício da razão do que da intuição e do coração. Vista do alto, a Terra é maravilhosa, mas as desgraças são individuais. Ninguém pensa, quando sofre ou é perseguido e morto, que está contribuindo para a harmonia do todo.

Não foram muitos os filósofos que adentraram neste reino escuro. A maioria se contentou em louvar o mundo e a razão, mas esqueceu da vida que as pessoas comuns levam. Onde a razão estará presente nos manicômios?

Paulo e os gnósticos negavam o sacrifício de sangue de Cristo; a salvação pelas obras também. A epístola de Tiago deve ser uma resposta “católica” a Paulo, porque o espírito é a antítese deste último. Nos Vedas há também a condenação dessas “boas obras”, cuja recompensa é entrar novamente neste mundo ou em um inferior (Mundaka Upanishad).

O que Paulo e o gnosticismo quer que percebamos é que o mundo teria sido obra de uma divindade ciumenta, que quer que abracemos suas obras como sendo a do Deus verdadeiro (2001, p.134). A reflexão a ser feita é o motivo do sofrimento de tantas criaturas para que a beleza do mundo deste Demiurgo inferior permaneça. E nem mesmo temos o consolo de um Schopenhauer, cuja natureza abraça seus filhos após o sofrimento temporário no mundo fenomênico. O Cristianismo oficial ainda inventou um inferno no além que prolonga pela eternidade nossa tortura. Leibniz ainda teve a audácia de defender esta “justiça” divina, que ele ao menos não definiu como “ausência de paraíso”.

Um efeito nefasto de ver o mundo como bom, e colocar toda a potência do ser na matéria, como o fazem Aristóteles, Tomás de Aquino, os neoliberais e tantos outros, é o de banir a verdadeira caridade do ser humano. No gnosticismo somos todos irmãos de sofrimento, inclusive os animais. Precisamos de redenção porque nosso verdadeiro lugar não é aqui. Em Platão a nossa potência verdadeira não está na matéria. Somos muito mais do que aparentamos. Schopenhauer e Jung reconheceram o perigo do princípio da individuação. Sendo assim, não deveríamos enxergar o fenômeno da matéria em si como a verdade última. Este é o reino de Maya. Cada um de nós é lançado no mundo e perde muita coisa. Não temos o consolo de exercer a razão e nos consolarmos que nossa miséria aumenta o bem geral. Se julgarmos que toda pessoa contém tudo dentro de si e nada mais, que o local e época no qual nasceu nada contam, e que o mundo em si é um verdadeiro juízo final, como a caridade irá surgir?

Rylands era bastante crítico do Cristianismo. Tivesse Jesus permanecido como um pregador de ética, a religião cristã teria morrido rapidamente.

Aqueles que imaginam que foi o fator dinamismo (que difundiu o Cristianismo) são convidados a ponderar a opinião de Orígenes, que, ao invés de protestar contra a preferência de Celso pelo melhor ensinamento ético dos gregos, responde que os ensinamentos de Jesus são melhores adaptados à compreensão do homem comum.

[…] Os ensinamentos éticos dos Evangelhos não se elevam acima da marca d’água máxima da moralidade contemporânea dos gregos e judeus e, em alguns aspectos, ainda cai abaixo da moralidade grega, especialmente quando coloca a recompensa ou punição futura como motivo para fazermos o bem.”

Gordon Rylands, The Beginnings of Gnostic Christianity, p.150 (tradução nossa a partir do original em inglês)


Se o Jesus histórico fosse a referência completa que tivéssemos, algumas coisas teriam de ser questionadas. Rylands menciona o tratamento que Cristo oferece à sua mãe, que não pode ser justificado sem uma interpretação alegórica da mãe sendo a sinagoga de Israel. A vida em si de Cristo não teria sido um grande sofrimento até ser crucificado. Viveu pouco, pregou apenas um ano, e sofreu menos do que as crianças que foram mortas em seu nascimento e sobre as quais ele nunca fala, nem mesmo diante de Herodes. A vida não é somente exercer autoridade diante de pescadores, lunáticos entre outros; quando esteve diante dos poderosos, e todos nós os enfrentamos em nossas vidas, calou-se e não se defendeu, talvez porque tivesse que morrer, como diz Rylands.

A moral dos evangelhos é a radicalização daquilo que estava no Antigo Testamento, mas muitas de suas passagens são fracas e excessivamente inferiores à moral de outras religiões mais antigas. Os ensinamentos de Jesus e das cartas de Paulo sobre a escravidão são fracos diante do que Sêneca escreveu na mesma época. O Jesus dos evangelhos preocupa-se muito com a morte, o que não parece ser muito sábio, ao menos no sentido de ter medo de morrer e de um juízo posterior. Tente comparar esta passagem abaixo, “a parábola da semente de mostarda”, com o Evangelho de Marcos 5: 22-42.

De acordo com esta parábola, uma mãe que está sofrendo a morte de seu filho aproxima-se de Buda para que ele o traga de volta à vida. Buda então instrui a mãe que ela será capaz de alcançar seu desejo se ela preparar um chá feito com sementes de mostarda que vieram de uma casa não tocada pela morte. É claro que a mulher é incapaz de encontrar tais sementes, e esse é o ponto; toda vida é impermanente. Encarando este fato, a mulher necessita refletir sobre seus desejos de aproximar-se de coisas que são necessariamente impermanentes.” Encyclopedia of Bioethics, pág. 466

Aqui há uma antítese entre Buda e o Jesus dos evangelhos: qual o sentido de querer ressuscitar na carne, se nem Marcos explica qual foi a vantagem de voltar a viver? No quê a menina que Jesus ressuscitou meditou sobre ter vencido temporariamente à morte? A verdadeira ressurreição da carne teria de ser provada se ossos velhos tivessem a carne recomposta, o que nunca aconteceu. Buda desdenhou de tal crença.

O verdadeiro Cristo de Paulo sofreu, isso sim, pois teve que descer. Isto representa o maior de todos os sacrifícios, e que não pode ser medido por uma escala humana e histórica. Na ocasião em que Jonas explica a importância do Logos (2001, p.21) para o futuro desenvolvimento do gnosticismo e da expansão da mentalidade grega, o Cristo Paulino é melhor compreendido. Os primeiros cristãos apelavam muito para o Cristo-Logos. Ficava mais fácil, porque sua existência terrena era ignorada, como lemos em Justino mártir. Este Cristo manifestava-se entre os “perfeitos”. Paulo nem mesmo preocupava-se se os judeus aceitariam sua mensagem ou não. Sabia que eles reprovariam a ideia de um Jesus de carne e osso. Marcião e os outros gnósticos queriam que os judeus fossem deixados em paz com suas escrituras; somente quando o Cristianismo histórico/católico passa a ser dominante é que a perseguição antissemita tem início.

Nem mesmo o celibato seria algo estranho aos pagãos, que sempre foram os verdadeiros conservadores. Hans Jonas critica o celibato dos gnósticos por supostamente não servir à elevação da alma como é no Cristianismo oficial (p.145). Porém, o celibato é estranho ao judaísmo (ver o episódio da filha de Jefté) e ao Cristianismo sárquico (carnal) católico primitivo. Tanto Clemente de Alexandria como Irineu de Lyon o condenam veementemente. Estavam imbuídos do espírito do Antigo Testamento. Somente com os gnósticos é que o verdadeiro espírito cristão adentrou na Igreja através do celibato sacerdotal, como bem viu Schopenhauer. O filósofo alemão recuperou o sentido dos gnósticos em relação à reprodução como sendo um truque da natureza e dos Arcontes para a manutenção do aprisionamento das almas neste mundo.

Algo muito diferente do que aprendemos sobre o Cristianismo é a rejeição de Paulo das “tradições”. O evangelho de Paulo não lhe foi dado nem de Jerusalém nem de Roma, mas foi uma revelação vinda do céu. A mesma falsa “tradição” que transmitiu a Irineu de Lyon que Jesus tinha vivido até os 50 anos…

Os cristãos ortodoxos não pensem que têm o benefício de serem diferenciados dos gnósticos aos olhos dos neoplatônicos. A opinião radical que o cosmos é um lugar hostil (gnósticos) ou sem a presença da Divindade (Cristianismo) foi duramente criticado por Plotino. Hans Jonas também não pode lamentar que perdemos alguma coisa porque aos olhos do Deus bíblico seríamos criados à sua imagem e semelhança porque isso nem mesmo é recordado nas escrituras. Onde estava “a imagem e semelhança” durante o dilúvio, no massacre dos primogênitos dos egípcios, quando Moisés passa os adoradores do bezerro de ouro sob o fio da espada, e isso segurando a tábua da lei, na qual estava escrito “não matarás”? Muito mais elevada do que esta ingênua observação de Jonas é o ensinamento dos maniqueus que ele reproduz em seu livro. Compare o texto a seguir com o Deus do Antigo Testamento ou com as ações da Igreja ao longo da história

Deus não possui nada de maligno com o qual possa castigar a matéria, pois na casa de Deus não existe nenhum mal. Ele não tem nem um fogo consumidor com o qual possa atirar trovões e raios, nem uma água sufocante com a qual possa enviar um dilúvio, nem um aço afiado nem qualquer outra arma; mas tudo Nele é Luz e substância nobre, portanto, Ele não pode ferir o Maligno.

Hans Jonas reconhece nesta visão maniqueísta uma grandiosidade evidente e, “longe de ser um sinal de covardia, a concepção de Deus dos maniqueus pressupõe que as Trevas não podem ser combatidas com força bruta, pois seria utilizar as mesmas armas do Maligno, mas que a vitória da Luz só pode ser alcançada indiretamente.

Hans Jonas, The Gnostic Religion, Beacon Press, p.215 (tradução nossa a partir da versão em inglês)


Esta passagem é a total negação da tese de Voegelin de um espírito gnóstico combativo para fazer descer o Céu na Terra. O combate principal proposto pelo gnosticismo é não contra o demônio ou contra os hereges, mas é a compreensão do todo. Sem saber de onde viemos e para onde vamos, o autoconhecimento não vem. É o maior de todos os combates e leva a vida inteira. Por causa disto afirmei que o drama da vida humana não é a morte em sim, mas os perigos infindáveis do mundo. Seria temerário considerar que cada um deve experimentar tais males porque são inevitáveis, mas algo nos diz que está longe de ser tão simples. A caridade humana é enorme quando cada um de nós nasce, mas basta a sequência da vida para os julgamentos surgirem e o amor esfriar. Ainda temos de enfrentar inúmeras ideias que aumentam a carga de responsabilidade e julgamento da cada ser, sem levar em consideração as contingências do mundo. É talvez o deus deste mundo de que nos fala Paulo que nos faz cegar (2. Coríntios 4:4)


ἐν οἷς ὁ θεὸς τοῦ αἰῶνος τούτου ἐτύφλωσεν τὰ νοήματα τῶν ἀπίστων εἰς τὸ μὴ αὐγάσαι τὸν φωτισμὸν τοῦ εὐαγγελίου τῆς δόξης τοῦ χριστοῦ, ὅς ἐστιν εἰκὼν τοῦ θεοῦ.


Schopenhauer, apesar da admiração que sentia pelos gnósticos (acreditava que o verdadeiro Cristo era o docético), ironiza seu sistema por tirar a culpa do presidente e lançá-la nos ministros. É verdade, e Jung vai ir muito mais fundo nesta aporia quando apresenta a coincidência dos opostos em Deus: O Criador seria bom e mau ao mesmo tempo. Lutero já possuía tal crença. Evita o dualismo dos gnósticos, mas se a religião dos mesmos já era difícil de se fazer compreender pelo povo, imagino a de Jung.

O que a religião gnóstica apresentou à humanidade é o enfrentamento do colossal problema do mal no mundo. Jung quis que enfrentássemos nossos demônios interiores sem apelar para a falta de consciência e nem para mascararmos o problema alegando que o mal é ausência de bem. Anunciava que a Era de Aquário seria a época no qual cada um carregaria seus próprios fardos, enfrentaria sua sombra interior e a integraria ao consciente. A muleta da religião e da privatio boni deveria ser superada.

Tanto Jung quanto Schopenhauer viram no Budismo uma religião muito mais parecida com o Cristianismo do que o Judaísmo. Mas as emoções são controladas no Budismo, o mesmo não ocorrendo na religião cristã. Quem puder ler o debate de Santo Agostinho com o bispo maniqueu Fausto, ou Orígenes respondendo ao filósofo Celso, verá como o Cristianismo é dominado por emoções. Nos Evangelhos a preocupação maior é enfrentar e expulsar o demônio dos outros, denunciar os outros, converter os outros. No gnosticismo existem dois grandes inimigos a serem enfrentados: o mundo em si e nós mesmos. Para esses dois lugares nossa energia deve estar voltada, que é a aplicação do pensamento de Valentino que coloquei na epígrafe. Jung fez uma comparação magistral entre Jesus (não o Cristo de Paulo) e Buda:

Cristo venceu o mundo ao tomar sobre si o sofrimento do mundo. Mas Buda venceu as duas coisas: o prazer e o sofrimento do mundo, afastando de si o prazer e o sofrimento. E assim entrou num não ser, no estado em que não há volta. Buda é um poder espiritual ainda maior, que também não se regozija mais com o domínio da carne, tão profundamente mergulharam atrás dele prazer e dor. A paixão, que em sua autossuperação ainda é tão poderosa em Cristo e que precisa de si mesma sempre de novo e sempre em maior quantidade para o triunfo da superação própria, migrou para fora do Buda e queima a seu redor como fogo chamejante. Ele está intocado e é intocável. (2013, p.504)

A verdadeira ressurreição que pregam os gnósticos é a do espírito. Em Paulo existe a oposição entre a psique e o espírito (pneuma), que é o novo homem cristão, que é o homem pneumático (2001, p.124). No evangelho de João, no qual a doutrina ética de Jesus ocupa tão pouco espaço, existe uma famosa passagem na qual Cristo ensina que é preciso nascer de novo


ἀπεκρίθη ἰησοῦς, ἀμὴν ἀμὴν λέγω σοι, ἐὰν μή τις γεννηθῇ ἐξ ὕδατος καὶ πνεύματος (pneumatos), οὐ δύναται εἰσελθεῖν εἰς τὴν βασιλείαν τοῦ θεοῦ. .respondit Jesus amen amen dico tibi nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu non potest introire in regnum Dei .τὸ γεγεννημένον ἐκ τῆς σαρκὸς σάρξ (carne) ἐστιν, καὶ τὸ γεγεννημένον ἐκ τοῦ πνεύματος πνεῦμά ἐστιν. .quod natum est ex carne caro est et quod natum est ex Spiritu spiritus est .μὴ θαυμάσῃς ὅτι εἶπόν σοι, δεῖ ὑμᾶς γεννηθῆναι ἄνωθεν.


Plotino faz a acusação contra a ressurreição da carne dizendo que ela nos faz cair de um sono em outro. A aproximação com o gnosticismo é grande quando vemos que o choque com a matéria é o maior perigo também no filósofo neoplatônico.  Portanto, o Cristo dos gnósticos precede o Jesus de carne do catolicismo; a salvação vem pelo conhecimento, e não por fé e muito menos, obras; o verdadeiro sacrifício de Cristo foi ter descido, o que para ele representou o maior de todos os sacrifícios; foi condenado pelos Arcontes, os emissários do Demiurgo; não há qualquer preocupação com uma narrativa histórica por parte dos gnósticos; Schopenhauer recupera o sentido do Cristianismo original com seu Cristo docético, não submetido à vontade da carne, e cujo sacrifício quebra o princípio da individuação.


ὅτι οὐκ ἔστιν ἡμῖν ἡ πάλη πρὸς αἷμα καὶ σάρκα, ἀλλὰ πρὸς τὰς ἀρχάς, πρὸς τὰς ἐξουσίας, πρὸς τοὺς κοσμοκράτορας τοῦ σκότους τούτου, πρὸς τὰ πνευματικὰ τῆς πονηρίας ἐν τοῖς ἐπουρανίοις.quia non est nobis conluctatio adversus carnem et sanguinem sed adversus principes et potestates adversus mundi rectores tenebrarum harum contra spiritalia nequitiæ in cælestibus


A luta, então, é contra estes seres espirituais, e não uma luta militar situada neste mundo. Estes “cosmocratores da escuridão”, um termo clássico do gnosticismo, são inimigos formidáveis, mas ficou mais fácil para a Igreja situar seus adversários neste mundo, como os judeus, os hereges, etc.


Referências:


Encyclopedia of Bioethics 3.Ed. New York:Macmillan Reference USA, 2003.

JONAS, Hans. The Gnostic Religion. Boston: Beacon Press, 2001.

JUNG, Carl Gustav. O Livro Vermelho. Ed.2 Petrópolis: Editora Vozes, 2013.

RYLANDS, Gordon. The Beginnings of Gnostic Christianity. London: Watts & CO, 1940.

RYLANDS, Gordon. A critical analysis of the four chief Pauline Espistles.London: Watts & CO, 1929.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

The Thirteen Principal Upanishads. Oxford University Press, 1921