domingo, 16 de janeiro de 2022

Cipriânismo

Não há dúvida de que existem os espíritos Bons e Maus; e que estão em relacionamento com os homens; não há dúvida de que os ditos espíritos estão dotados de uma inteligência soberana, posto que a própria religião lhes dá o poder de tentar-nos, de induzirmos ao bem e ao mal; logo, se por meio da Magia pode o homem pôr-se em relação com estes espíritos, esse homem logrará alcançar a suprema sabedoria.[1]

Minhas observações sobre o Universo convencem-me que existem Seres de inteligência e poder de uma qualidade muito superior do que qualquer coisa que nós possamos conceber como humano; eles não são necessariamente baseados nas estruturas nervosas e cerebrais que nós conhecemos; a única chance para a humanidade avançar como um todo é fazer com que individualmente cada humano entre em contato com estes Seres.[2]

Toda a tradição cipriânica da magia foi composta a partir de um eixo fantasmagórico, como um fantasma ou miragem projetado pela imaginação de apologistas cristãos que escreviam panfletos contra a feitiçaria e o paganismo na Antiguidade tardia. Nunca existiu, de fato, um São Cipriano que tivera sido bispo de Antioquia,[3] um mártir e santo que houvera se relacionado com o Diabo e se convertido ao cristianismo que, com seu misticismo simplificado, deteve o poder dos demônios apenas com preces e o símbolo da cruz. O autor deste mito que aparece pela primeira vez em A Confissão de São Cipriano no Séc. IV d.C. pretendia demonstrar que a magia e o tráfego com demônios (espíritos | daimones) não tinha poder ou era superior a fé cristã. No entanto, o tiro saiu pela culatra e o mito de São Cipriano e seu livro cresceu e fomentou aquilo que ele jamais desejaria: o poder intrínseco nos manuais de feitiçaria e o comercio com espíritos que, quando tratados corretamente,[4] proveriam ao mago toda sorte de riqueza, bonança, afeto, sabedoria oculta e a deificação (ou salvação) da alma.

O mito de São Cipriano começou a ser desenvolvido a partir de três fontes distintas: A primeira, A Confissão de São Cipriano, conta a história de um feiticeiro pagão iniciado nos cultos de mistérios de Mitras e Ceres na Antiguidade, nas escolas de magia da Caldeia e Egito, tornou-se adepto do culto do dragão e desde a infância fora consagrado ao culto de Apolo. Na Antiguidade muito valor era conferido a sábios como Pitágoras (570-495 a.C.) e Apolônio de Tiana (15-100 d.C.) dentre outros que empreendiam jornadas espirituais de estudo e vivência a centros religiosos e de iniciação nos mistérios como Egito, Caldeia e Babilônia. Estes sábios em algum momento de sua jornada espiritual encontravam o segredo ou arcano secreto da magia, coroando seu processo de iniciação. Para criar seu personagem, o autor de A Confissão de São Cipriano usou essa ideia para tecer a jornada espiritual do feiticeiro Cipriano. Após estudar e tornar-se um grande mago, digno de ser comparado a Moisés e Salomão segundo seus feitos e proezas, Cipriano teria convocado demônios na intenção de seduzir e fazer cair uma jovem cristã, Justina. Ela, no entanto, por meio de preces e o sinal da cruz, fez cair os demônios que Cipriano teria lhe enviado. Diante de sua falha magística perante os métodos simples do cristianismo, Cipriano se convertera ao cristianismo.[5]

As outras duas fontes, escritas como complementos à história narrada em A Confissão de São Cipriano, parecem terem sido tecidas pelo mesmo autor, uma para ser lida antes de A Confissão de São Cipriano, a outra para ser lida depois. A segunda fonte é A Conversão de São Cipriano, que narra a conversão de Justina ao cristianismo. Entre os cristãos da ecclesia que Justina participava, um despertou interesse por ela. Para facilitar seus enlaces de paixão por Justina, ele procura o feiticeiro Cipriano e lhe pagou para fazê-la cair em paixão por meios mágicos. Para tal Cipriano convoca três demônios, os quais visitam Justina e caem de joelhos pelas preces que ela profere, acompanhadas do sinal da cruz. Após tentar e falhar conquistar Justina magicamente, Cipriano converte-se ao cristianismo e torna-se bispo de Antioquia.

A terceira fonte, O Martírio de São Cipriano, narra à morte de Cipriano e Justina, trazidos à cidade de Damasco onde foram torturados e lançados no piche quente. Ao se manterem vivos após a tortura e queimaduras, ambos são enviados a cidade de Dicomédia, onde são decapitados. A trama de São Cipriano vem dessas três fontes e foi uma iniciativa para demonizar a magia e os cultos pagãos. O roteiro que seguiram foi este: primeiro era necessário criar o personagem de um grande mago, capaz de fazer feitos como os de Moisés, Salomão e Simão o Mago. Este mago teria sido iniciado nos principais cultos de mistérios da Antiguidade, conhecedor dos arcanos da magia segundo os egípcios, caldeus e babilônios. Após apresentarem este mago poderoso e sua jornada espiritual, seguiam acusando-o de tráfego com o Diabo, impelido por seus instintos mais grotescos. Vê-se, portanto, o pano de fundo difamatório da história de São Cipriano.

Todas as edições populares de O Livro de São Cipriano trazem resumos destas três fontes ou textos independentes baseados nelas, sempre com acréscimos, como o Arrependimento e Virtudes de São Cipriano em O Grande Livro de São Cipriano (Livraria Econômica) ou A Vida de São Cipriano em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro de Jonas Sufurino.[6] De modo geral existem duas tradições cipriânicas independentes: a tradição ibérica composta das publicações do livro de São Cipriano em Portugal e Espanha; e a tradição escandinava, composta das edições do norte da Europa, principalmente na Escandinávia e Noruega.

A edição-tronco na qual se baseiam as publicações portuguesas é O Tesouro do Feiticeiro, publicada no fim do Séc. XIX e atribuída a Jonas Sufurino. Essa edição de Jonas Sufurino apresenta uma magia cipriânica tangivelmente diabólica e ele recomenda que as cerimônias magísticas devem ser realizadas em zonas de poder longe de igrejas e centros religiosos, bem como devem estar livres de símbolos da cruz e outros da tradição cristã. Jonas explica que Lúcifer não pode se aproximar com sua horda de demônios caso haja símbolos da cruz no local onde os rituais devem ser executados. As edições brasileiras são largamente baseadas nas edições portuguesas que consistem basicamente de uma coleção de fórmulas mágicas populares muito similares aquelas da cultura mediterrânea desde a Antiguidade: o uso de múmias (bonecos mágicos) para enfeitiçar pessoas, a utilização de animais de todos os tipos para magias diversas etc. É possível comparar, por exemplo, feitiços de invisibilidade encontrados no Tratado Mágico de Salomão, o Hygromanteia, nos Papiros Mágicos Gregos, no Grimorium Verum e em O Livro de São Cipriano. Ver-se-á encontrar grande similaridade entre estes feitiços, demonstrando a influência da magia dos papiros gregos e da magia salomônica na tradição cipriânica ibérica. Como nós temos estudado, a magia cipriânica se adapta a cultura espiritual dos locais em que chega. Ao ser trazida ao Brasil na época da Inquisição em Portugal por bruxas exiladas, a magia cipriânica se adaptou a tradição do catimbó nordestino. A Oração da Cabra Preta, por exemplo, encontrada nas edições brasileiras de O Livro de São Cipriano, nasce de uma concepção popular de diabolismo, típica do período colonial quando a Igreja Católica exilou no Brasil as bruxas portuguesas. Com o tempo, São Cipriano começou a aparecer nas choupanas de  umbanda e principalmente quimbanda e hoje ele é patrono espiritual de muitas dessas casas. Recentemente ele começou a aparecer nos hinos sagrados do Santo Daime em alguns trabalhos de mão esquerda realizados dentro da doutrina:


São Cipriano é um Mestre no Astral

Um ser de hierarquia espiritual

Cancela a demanda do mal

Unido ao Pai Infernal

Aí estão os demônios dessa doutrina

Todos perfilados em disciplina

Trazendo a cura de Salomão

Para dentro do batalhão

Lá vem chegando Maria de Padilha

Conduzindo sua quadrilha

A estrela matutina que brilha

A luz vespertina

Essa força é o Mestre quem dá

Mostrando como trabalhar

São Cipriano e Maria de Padilha

Chegaram para disciplinar[7]

Feitiço para   Invisibilidade[8]


Colha   sete feijões pretos. Comece o rito em uma quarta feira, antes do nascer do  sol. Tome então a cabeça de um homem morto, coloque um dos feijões na boca,  dois nos olhos e dois nos ouvidos.


Faça então sobre a cabeça o sigilo de Morail.


Quando tiveres feito isso, enterre a cabeça, com a face   para cima, e durante nove dias, antes do nascer do sol, regue todas as manhas   com um excelente brandy. No oitavo dia tu encontrarás o espírito mencionado,   que dirá a ti: o que tu queres?

Tu irás responder: eu   estou regando a minha planta. Então o espírito irá dizer: dê-me a garrafa, eu desejo regar eu mesmo.   Em resposta, recuse isto a ele, mesmo que ele lhe peça de novo.

Então ele irá esticar a mão e irá mostrar a mesma figura   que tu desenhaste sobre a cabeça. Agora tu podes estar certo de que é o espírito   certo, o espírito da cabeça.

Existe o perigo de que algum outro tente te enganar, o que   teria más consequências – e neste caso a operação não teria sucesso.

Então tu podes entregar a ele a garrafa, e ele irá regar a   cabeça e partir. No dia seguinte – que é o nono – quando tu retornares, irá   descobrir que os feijões começaram a germinar. Tome-os e coloque-os na tua   boca e olhe para ti no espelho. Se não puderes ver nada, está bem. Teste os   outros da mesma maneira, ou na tua própria boca, ou na de uma criança.   Aqueles que não conferirem invisibilidade devem ser reenterrados com a   cabeça.


Secular magia das   favas[9]


Matai   um gato preto, enterrai-o no vosso quintal, metei-lhe uma fava em cada olho,   outra sob a cauda, e duas outra cada ouvido. Depois de tudo isso feito,   cobrio-o de terra e vá regá-lo todas as noites, ao dar a meia noite, com   muito pouca água, até que as favas, que devem ter rebentado, estejam maduras,   e quando virdes que assim estão, corte-as pelo pé.

Depois de cortadas, levai-as para casa e metei uma de cada   vez na boca. Quando, porém, vos parecer que estais invisíveis, é porque a   fava que tendes na boca é a que tem força de magia, e assim se vos apetecer   entrar em qualquer parte sem que ninguém vos veja, meta primeiro a dita fava   na boca.

Isto obra por virtude oculta, sem ser necessário fazer   pacto com o demônio, como fazem as bruxas.


Invisibilidade[10]


Tome   a caveira seca de um homem que tenha morrido de morte natural. Vá a um lugar   secreto, inacessível e intransitável e recite estes nomes sobre a caveira:

Conceda   invisibilidade, Senhor, pelos nome Theophael, Diokaides, Peridon, Enarkale, Esboiel,   Apelout, Gakarkentos, para que esta obra seja efetiva.

Então tome as sementes da erva korakia. Os romanos a chamam phabenbesia,   ou seja, a fava. Plante uma semente em cada olho, e coloque uma na boca.   Cubra com terra e recite o seguinte:

Assim como os olhos   dos mortos não veem os vivos, assim essas favas possam ter o poder da   invisibilidade.

E quando os feijões derem sementes, cuide para que não   percas nenhuma delas, mas tire-as [das cascas] e as mantenha todas juntas.   Então, traga um espelho e coloque cada feijão na tua mão, um por um. Se não   puder ver a ti mesmo no espelho, este feijão em particular tem poder.   Carregue-o contigo e vás onde quiser. Ninguém poderá te ver.


Ritual com gato para   muitos propósitos[11]


Tome   um gato e o transforme em uma Esies[12]   submergindo seu corpo na água. Enquanto o afoga, recite a fórmula em suas   costas. Tome o gato e faça três lamellae,[13]   uma para seu ânus, uma para [ouvido], e uma para a sua garganta, e escreva a   fórmula concernente ao feito em uma folha limpa de papiro, e envolva isso ao   redor do corpo do gato e o enterre. Acenda sete lâmpadas sobre tijolos não   cozidos, e faça uma oferenda. Tome o corpo e o preserve murando-o em uma   tumba ou em um local de enterro.

A edição-tronco das publicações espanholas é Cipriano o Temeroso de 1874, baseada completamente em grimórios tardios como o Veritable Magie Noir, com influencia do Grimorium Verum, o Heptameron, o Arbatel e o Grand Grimoire. Esta seria a edição que muito possivelmente deu origem a versão de Jonas Sufurino, O Tesouro do Feiticeiro. Existe uma versão atribuída São Cipriano do Heptameron, chamada de Elementos Mágicos: composta pelo Grande Cipriano o Mago. O conteúdo desta obra não é o mesmo que o Heptameron de Pietro d’Abano, mas de um material composto com influencias do Grand Grimoire. Na verdade, só o nome de São Cipriano consta no frontispício e o livro não se parece nada com os tradicionais livros de São Cipriano. Uma edição de O Livro de São Cipriano conhecida como Ciprianilo já circulava por volta de 1800 e 1885. As referências mais antigas ao O Livro de São Cipriano são encontradas nos anais da Inquisição espanhola no fim do Séc. XVI, um período que nem o povo ou o clero sabiam da existência do livro, não com a popularidade que alcançou nos Sécs. XVIII e XIX.

Seja como for, podemos observar na tradição cipriânica ibérica uma forte influência dos principais grimórios medievais e tardios, usados livremente para compor os livros atribuídos a São Cipriano. Quando as edições dos livros de São Cipriano não eram versões completas de grimórios conhecidos, como é o caso de Cipriano o Temeroso que é uma versão espanhola do Veritable Magie Noir, os livros traziam partes de grimórios, às vezes três ou mais, como O Tesouro do Feiticeiro de Jonas Sufurino, cuja primeira parte é composta de passagens diversas do Veritable Magie Noir, mas com material adicional próprio do autor ou tradutor, que incorporou elementos diversos além do conteúdo dos grimórios, como feitiços e encantamentos, preces e orações, maldições e sortilégios populares da região ibérica. Na edição de Jonas Sufurino podemos encontrar influências diversas e ritos da tradição salomônica, da doutrina dos pactos, compromissos e alianças dos grimórios tardios, amuletos poderosos como do Dragão Vermelho e da Cabra Infernal, exorcismos, sortilégios, encantamentos e filtros, além de um resumo da magia dos egípcios e caldeus. Os livros ibéricos de São Cipriano podem ser considerados manuais populares de feitiçaria e iniciação na magia da Antiguidade e Idade Média.

A tradição cipriânica escandinava é aquela dos Livros Negros de Wittenberg no norte da Europa. Aqui a São Cipriano são atribuídos grimórios dos Sécs. XVII e XVIII que apareceram na Escandinávia e Noruega. Estes grimórios de São Cipriano eram chamados de Livros Negros e havia um consenso de que a cidade de Wittenberg na Alemanha fosse o local de onde eles vinham. Na verdade, acredita-se em uma Escola Negra de Wittenberg, de onde eles supostamente saíram. Enquanto Fausto é considerado o grande feiticeiro da Alemanha, São Cipriano é considerado o grande feiticeiro da Escandinávia e Noruega. A tradição da magia popular escandinava celebra inúmeras ocorrências dessa Escola Negra e atribui a São Cipriano a autoria de diversos Livros Negros como Os Livros Ocultos de Moisés. Todas as histórias atribuídas a essa Escola Negra na verdade parecem ter apenas uma fonte: um homem na Suíça que vivia isolado na floresta e que ensinava alguns estudantes os segredos da magia. Este homem teria em sua posse o original de O Livro de São Cipriano, de onde tirava os ensinamentos que transmitia a seus alunos. Ele viveu, ao que parece, por volta de 1700.

Assim como na tradição cipriânica ibérica, na Escandinávia e Noruega o livro de São Cipriano era considerado como uma ferramenta mágica que possibilita o acesso direto ao próprio Diabo. Através dos manuais de feitiçaria atribuídos a São Cipriano, acreditava-se que era possível conjurar os espíritos dos mortos e as hostes infernais, encontrar tesouros e curar doenças. O mago que vivia isolado na floresta ensinando os seus alunos, assim acredita-se, detinha os mesmos poderes que São Cipriano e havia feito um trato com o Diabo. Por tamanha fama ele era respeitado e temido. Ele era apelidado de o homem do livro negro, porque detinha o comando de espíritos que estavam presos ou associados ao livro de São Cipriano. Quando alguém sofria algum malefício de magia negra, ele era chamado para quebrar a demanda; quando alguém adoecia, ele era procurado para administrar poções mágicas (remédios), rezas e exorcismos. Em um tempo onde não havia saneamento básico ou médicos disponíveis em hospitais, é possível inferir a importância de feiticeiros como este nas diversas localidades da Europa.

Acreditava-se que os feiticeiros haviam feito um pacto com o Diabo e por causa disso a eles era conferido o poder e a autoridade sobre uma legião de demônios. Esses feiticeiros gozavam de prestigio, respeito e ao mesmo tempo eram temidos por todos. O caminho para se tornar um feiticeiro e possuidor do verdadeiro O Livro de São Cipriano, alem dos diversos Livros Negros a ele atribuídos, era realizar uma jornada espiritual de peregrinação até a Escola Negra de Wittenberg e lá aprender os segredos da arte negra da magia. Muitos estudantes se lançavam a essa viagem mágica e retornavam feiticeiros possuidores dos Livros Negros.

Um destes livros negros cipriânicos foi O Livro da Arte de Cipriano, descoberto no ano de 1722 na universidade de Wittenberg, escrito em pergaminho e datado do ano de 1354. Existe outro manuscrito desta obra datado de 1509. O conteúdo dos livros negros cipriânicos é distinto das edições ibéricas. Neles nós vemos preocupações que afligem o homem do campo, como a manutenção do equilíbrio entre homens e animais, caça, plantio e colheita. Por conta disso eles são cheios de feitiços, encantamentos e consagração de talismãs e amuletos para o bem-estar: atração de mulheres, ganho de força para vencer batalhas, conseguir dinheiro, proteção contra magia negra e inimigos. Pouquíssima atenção é dada a conjuração de demônios, preces ou exorcismos demonológicos.

Existem relatos que uma ramificação dessa tradição cipriânica escandinava penetrou nos Estados Unidos através da Pensilvânia, onde reside uma grande comunidade de descendentes holandeses que praticam as artes da magia do norte da Europa: Escandinávia, Suíça, Alemanha e Noruega. Entre estes descendentes existem feiticeiros que ensinam estudantes e trabalham em função da comunidade da mesma maneira que o mago isolado na Suíça fazia por volta de 1700. Uma tradição de feitiçaria ancestral que se perpetua no tempo. Através do estudo de Karl Herr, Hex and Spellwork: The Magical Practice of the Pennsylvania Dutch, descobrimos que essa feitiçaria é adaptada ao local e lida diretamente com entidades elementais simples como espíritos de árvores, plantas e pedras. Diferente da tradição ibérica que agregou a demonologia francesa, a tradição escandinava foi profundamente influenciada pelo cristianismo, principalmente o evangelho de Mateus, que afirma que toda pessoa pura e de bom coração pode realizar milagres.

Não importa se São Cipriano é um mito! A legião de feiticeiros que vêm convocando sua presença como espírito tutelar e colocando em prática o conteúdo dos livros a ele atribuídos, formou uma grande tradição cipriânica da magia. Nós falaremos, tecnicamente, como isso ocorre no fim desta seção. Os livros de São Cipriano são regidos por um espírito, um demônio guardião ou grigori que dá acesso espiritual a tradição cipriânica. O que os feiticeiros têm feito é conjurar este demônio guardião da tradição cipriânica e através dele, do comércio e trato com ele, eles têm acessado a magia de São Cipriano. Isso tanto é verdade que magos e feiticeiros de toda parte, desde a Antiguidade aos dias de hoje, têm fornecido manuscritos diversos dessa tradição ancestral e têm ensinado como acessá-la espiritualmente, como veremos na última seção deste artigo. A conjuração deste demônio guardião está diretamente relacionada à doutrina do pacto implícito com o Diabo.

Essa ideia de pacto implícito com o Diabo é de São Tomás de Aquino (1225-1274) e ela apareceu conectada a São Cipriano a partir das edições ibéricas do Séc. XIX, onde começou a se considerar que o livro de São Cipriano, per si, possuía poderes ocultos. Os manuais de feitiçaria de São Cipriano faziam tanto sucesso porque eram acessíveis a pessoas iletradas, a grande maioria da população da Europa. Diferente da feitiçaria dos grimórios, acessível apenas ao clero e pessoas letradas com condições financeiras suficientes para pagar por uma boa educação, a magia cipriânica era acessível a todos e não exigia tanto preparo espiritual e exorbitante soma de dinheiro como a magia dos grimórios. Por isso São Cipriano teve grande apelo popular por toda Europa. Entre esse público iletrado começou a nascer a ideia de que possuir qualquer edição de São Cipriano em casa era o suficiente para transformar a pessoa em um feiticeiro. Comprar ou aceitar de presente alguma edição de O Livro de São Cipriano era aceitar fazer um pacto implícito com o Diabo.

Adquirir ou ganhar um O Livro de São Cipriano e praticar sua magia é, de fato, travar conhecimento e conversação com o demônio guardião do livro de São Cipriano. Este demônio guardião, no entanto, é o próprio São Cipriano, hoje uma alma deificada no comando de uma legião de demônios, senhor da magia e disciplinador dos mortos, protetor e sentinela contra feitiçaria de todo tipo. Este São Cipriano foi forjado nos planos internos pela sabedoria popular, um feiticeiro que caminha pela mão direita e pela mão esquerda formando um eixo ou pilar do meio que une essa dualística dicotomia espiritual. São Cipriano é o típico mago da Antiguidade na cultura hermética mediterrânea, seus pés cravados abaixo da terra, sua cabeça acima das nuvens. Em suas mãos ele carrega duas chaves: uma para a porta do inferno e outra para a porta do céu. Como vimos anteriormente, esse São Cipriano da cultura popular da magia é amado tanto por Deus quanto pelo Diabo. Diferente da visão salomônica tradicional da magia que segue uma cosmovisão cristã estreita onde o Diabo é forçado e imprecado pelo poder de Deus, na tradição cipriânica da magia o Diabo governa seus próprios domínios e é o senhor de sua morada. Como Hades que governava as celas do submundo, o Diabo é o regente das regiões infernais e para ter acesso a todo esse domínio, hordas e legiões, é necessário tratar diretamente com ele. É assim que São Cipriano nos apresenta o Diabo.

Trazer para dentro de casa qualquer uma das edições de O Livro de São Cipriano, estudá-lo e praticá-lo, guardá-lo e cuidadosamente reverenciar seu poder e toda tradição mágica que ele herda, é tratar de algum modo diretamente com o espírito de São Cipriano. Esse é o pacto implícito com o Diabo que todo feiticeiro faz quando adquiri um exemplar de O Livro de São Cipriano. O diabo desta lenda popular é o demônio guardião deificado, São Cipriano que, por sua vez, tem íntima relação com o Diabo.

Por outro lado, como falei no vídeo Pacto com o Demônio do Livro de São Cipriano, possuir qualquer edição do livro de São Cipriano atrai uma miríade de espíritos, almas, zombeteiros, kiumbas e demônios. Tratar com o grigori do livro de São Cipriano é ter de lidar com todas essas criaturas espirituais, travar comercio e estabelecer relação com elas, o que também está associado à ideia de pacto com o Diabo.

Como nos é apresentado em A Confissão de São Cipriano, antes de ter o seu encontro com o Diabo, Cipriano se preparou por longos anos. Desde a infância ele foi consagrado ao Culto de Apolo e iniciado no Culto do Dragão. Foi admitido nos Cultos de Mistérios da Grécia e Ásia, bem como empreendeu uma jornada visionária no Monte Olimpo; foi instruído na Arte da Magia diretamente por sacerdotes egípcios e caldeus, tendo empreendido viagens a muitos centros religiosos na antiguidade. Anos de treinamento serviam para que no momento certo o mago pudesse conjurar seu espírito assistente, o paredros dos papiros gregos. Essa era a meta da jornada empreendida por todo mago na Antiguidade. A magia sagrada de Abramelin apresenta essa ideia dentro de uma estrutura bem organizada. Mas em A Confissão de São Cipriano, o espírito que São Cipriano convoca é o próprio Diabo: Acredite em mim, depois que o apaziguei com sacrifícios, eu vi o Diabo. [...] O recebi com alegria e conversei com ele, e fui reconhecido entre aqueles que ocupavam as posições mais importantes ao lado dele.[14] Como vimos acima, esse Diabo apresentado por São Cipriano é muito distinto da imagem bestial tradicional que a cristandade apresenta: Sua forma era como uma flor dourada adornada com pedras preciosas, e ele coroou sua cabeça com pedras que estavam entrelaçadas.[15] É interessante notar que em A Magia sagrada de Abramelin, o Mago, o Sagrado Anjo Guardião se apresenta como um homem de aparência majestosa que com grande afabilidade promete maravilhas; nos Papiros Mágicos Gregos o paredros compartilha com o mago seus poderes miraculosos.[16] Após convocar o Diabo, São Cipriano recebe dele inúmeros poderes, além da promessa de torná-lo um príncipe, quer dizer, uma alma deificada: Ele prometeu me fazer um príncipe depois de minha morte, e que eu teria poder e o seu apoio enquanto vivo.[17] Aqui reside o segredo de toda jornada de São Cipriano: o seu diabo pessoal em verdade é seu espírito assistente. A semelhança entre o Diabo apresentado em A Confissão de São Cipriano e o paredros dos Papiros Mágicos Gregos é saliente aos olhos, como estudamos na Carta 15.

O Diabo que São Cipriano nos apresenta é uma espécie de deus regente de suas próprias moradas. O paredros nos papiros gregos é apresentado como um deus [...] um espírito aéreo que você viu. Ele levará seu espírito e o carregará ao ar.[18] A promessa que o Diabo faz a São Cipriano é a mesma promessa escatológica e soteriológica que o paredros conferia aos magos dos papiros gregos e cujo terror era passar o pós-morte no submundo. O que para o mago da Antiguidade era a salvação da alma do calabouço do submundo, na cristandade tornou-se a condenação eterna no inferno. Por isso que magos, feiticeiros e pagãos têm levantado chacotas do posicionamento escatológico cristão dizendo ser melhor reinar no inferno do que servir no céu. Ao terem suas almas deificadas pelo espírito assistente ou diabo pessoal, os magos têm mantido sua consciência intacta nos planos internos, participando de uma família de espíritos e auxiliando outros magos ainda na legião dos vivos no comando de uma horda de criaturas espirituais. Tal conquista demanda esforço diligente: A Magia, como todas as ciências, requer indubitavelmente condições muito especiais das pessoas que se dedicam aos seus estudos e conhecimento. [...] Em primeiro lugar deve-se ter verdadeiro desejo e vocação, pois se não for assim é inútil que se proponha a conseguir qualquer coisa. [...] Se precisa um estudo constante das coisas naturais para poder chegar por meio de sua investigação ao verdadeiro conhecimento do sobrenatural que é o fim e o objeto das Artes Mágicas.[19] A salvação da alma proposta pela escatologia cristã era simplista em demasia e disponível a todos. Não era preciso se esforçar tanto como os magos faziam: bastava apenas eleger Jesus Cristo como único caminho e Senhor e imitá-lo que as portas do céu estavam abertas e o cativeiro do inferno suprimido. Para fazê-lo, a cristandade teve de transformar o paredros no Diabo de São Cipriano e Fausto.

Então, como temos estudado o pacto com o Diabo tão difundido pelas apologias cristãs contra a tradição da magia e o paganismo é uma herança deturpada do pacto que o mago estabelecia com seu espírito assistente, o paredros. O pacto associado ao demônio guardião do livro de São Cipriano é, em verdade, o pacto que todo mago estabelece com o espírito de São Cipriano e as criaturas espirituais a ele associadas: mortos e daimones (demônios) de toda classe e categoria ao entrarem em contato com as diversas edições existentes de O Livro de São Cipriano.

Como exploramos nas Cartas 14, 15 e 16, a crença em espíritos assistentes está na tradição da magia desde os primórdios e é a gênese de muitas ideias – em grande parte deturpadas – populares como o conhecimento & conversação com o Sagrado Anjo Guardião, o pacto com diabo ou a ideia de alma gêmea. Modernamente, quando pensamos em alma gêmea, entendemos como uma companhia ideal, na maioria das vezes uma companhia afetiva romântica. E muito embora o termo seja moderno, cunhado em 1822 por Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) em uma carta privada, a ideia é muito mais antiga e implica uma profunda conexão com uma criatura espiritual através de um ato mágico. Muitas são as culturas mágico-religiosas que apresentam essa ideia da alma gêmea que acompanha as pessoas na forma de espíritos assistentes (ou familiares) diversos como animais de poder, almas dos mortos principalmente, espíritos de pedras, árvores, tempos e zonas de poder; quer dizer, servidores espirituais do Corpo de Deus conjurados para auxilio dos magos. Existem relatos de santos que se relacionavam intimamente com espíritos de montanhas, árvores, flores e animais. Por exemplo, o espírito do beija-flor, o mensageiro da cura, é louvado em cânticos na doutrina do Santo Daime e tanto Mestre Irineu quanto Padrinho Sebastião tinham uma relação profunda com esse espírito familiar. Buda manteve uma relação especial com o espírito da árvore sob a qual ele se iluminou e que, segundo contam, lhe instruiu na arte de conquistar uma mente búdica. Nós vimos anteriormente na Carta 14 que Sócrates fora instruído em sua inquirição filosófica por um daimon. Os druidas acreditavam que os espíritos das árvores poderiam transmitir conhecimento, inspirar e amar seres humanos. Na tradição do xamanismo vermelho os espíritos das árvores são incluídos na ancestralidade das famílias, auxiliando como guias e professores na família de espíritos assistentes. Na tradição do catimbó nordestino os mestres do além são almas desencarnadas deificadas que se apresentam como espíritos tutelares dos curadores que os convocam. A quimbanda é uma tradição que opera principalmente através de espíritos tutelares ancestrais. E assim como o espírito assistente dos papiros gregos, o paredros, inúmeras tradições xamânicas atribuem aos espíritos familiares todo o poder de cura e a medicina particular de cada xamã. Através das eras o homem tem travado contato com espíritos diversos, mantendo com eles uma relação harmoniosa de troca onde sociedades e culturas inteiras são beneficiadas. Como vimos anteriormente o contato com os espíritos está por trás da construção da sociedade ocidental. O pacto com espíritos familiares tem beneficiado o homem em todos os campos do conhecimento humano. Os norte-americanos, por exemplo, têm um forte senso de patriotismo. Esse amor a pátria que todos compartilham tão profundamente é a influência do espírito tutelar dos Estados Unidos, a Lady Columbia, retratada sendo acompanhada de uma águia, carregando arco, flecha e a bandeira nacional. Lady Columbia foi imortalizada pelos norte-americanos na Estátua da Liberdade.

A palavra familiar que usamos no termo espírito familiar vem de famulus, que significa servir e era usada para especificar uma serva do lar, quer dizer, uma mulher que cuida da casa e da família com devoção e comprometimento, de onde vem a ideia moderna de dona de casa e empregada doméstica. O interessante dessa definição é o significado que ela carrega, que diz mais acerca dos deveres assumidos por compromisso do que o posto que hoje significa. Uma palavra cognata é doula, que literalmente significa escrava e é usada para descrever uma serva ou assistente doméstica que ajuda no parto de crianças. Ambas as palavras têm essa conotação de serviço devotado; essa mesma noção é conferida ao espírito familiar ou assistente, pois ele age como uma dona de casa ou parteira devotada ao mago. Trata-se, portanto, de um servidor conjurado diretamente do Corpo de Deus e unido ao mago pelos laços de um contrato ou compromisso, um pacto. Essa ideia de ter um servo, seja ele um agente espiritual, um animal ou ser humano, é tão antiga quanto o próprio homem, encontrado em várias escrituras sagradas de tempos imemoriais.

A palavra doméstica que usamos no termo empregada doméstica está também conectada a ideia de família e a habilidade de domesticar criaturas diversas para o auxilio do lar: bois para lavrar, vacas para alimentar, cães para proteger etc. O conceito de doméstico vem da noção de trazer para ou se tornar parte da família, o que está por trás também da ideia de domínio. Todas essas ideias-chaves formam o pano de fundo da prática da goécia universal de todas as culturas mágico-espirituais, quer dizer, a arte de conjurar espíritos. Na Lição 2 nós estudamos que na goécia da magia tradicional salomônica dois equipamentos são fundamentais: a arca de bronze e o triângulo da arte. Enquanto a arca de bronze é usada para capturar os espíritos (demônios) do Corpo de Deus, o triângulo da arte serve para conjurá-los quando já tiverem sido dominados ou domesticados pelo mago, que passa a usá-los como espíritos assistentes. E muito embora essa lógica não apareça nos grimórios, ela é presente na arte da goécia de todos os povos. Mircea Eliade (1907-1986) diz: Uma relação de «família» é estabelecida entre o xamã e seus «espíritos». De fato, na literatura etnológica eles são conhecidos como «familiares», «assistentes» ou «espíritos guardiões».[20]

Na tradição da magia muita importância é dada ao trato e a maneira correta de se comunicar com os espíritos assistentes. Perder o controle sobre um cão de guarda pode trazer muitos problemas, como ele morder outra pessoa. Da mesma maneira, quando um mago perde o controle sobre seus espíritos assistentes, seja por falta de zelo no trato com eles ou ataque mágico, ele pode ter inúmeros problemas. Por esse motivo a tradição da magia desenvolveu uma tecnologia capaz de controlá-los: o anel mágico. No Testamento de Salomão o Rei Salomão não perdeu somente o controle sobre os demônios ao perder o seu anel mágico, ele perdeu o próprio reino para o demônio Asmodeus. Neste texto que inaugura a tradição da magia salomônica, a sorte do Rei Salomão muda novamente quando ele encontra seu anel perdido na barriga de um peixe. São Cipriano, falando sobre a arte de evocar os mortos para fins de nigromancia, diz: Para se evocar os mortos deve se levar colocado o anel de Salomão no dedo do coração da mão direita, e depois de levar o espírito a Deus, se colocará a mão sobre a parte do coração do cadáver e se dirá: «Eu te conjuro, criatura que fostes e já não és, da parte dos espíritos cujos nomes leva gravado este anel mágico e imantado, que atendas a meu chamado e contestes as minhas perguntas que vou fazer-te. Pela segunda e pela terceira vez te conjuro para que teus lábios formulem as respostas que te peço, pelo poder maravilhoso deste sagrado anel, representação daquele que Salomão possuiu durante a vida». Tendo tua mão sobre o coração do cadáver, lhe perguntarás e se és digno e virtuoso, te obedecerá no ato.[21] Essa é uma influência transparente da tradição salomônica na tradição cipriânica da magia, configurando o exercício da Arte dos Magi como uma prática sacerdotal. Essa conjuração de São Cipriano serve para almas recém-falecidas e trata-se de se apoderar delas como espíritos assistentes antes da ocasião do enterro do corpo.

Sobre o anel mágico, o Testamento de Salomão diz: [O Arcano Miguel me trouxe] um pequeno anel, tendo um selo consistindo de uma pedra gravada, e disse-me: «Toma, ó Salomão, rei, filho de Davi, o dom que o Senhor Deus te enviou, o mais elevado sabaoth. Com ele tu deverás prender todos os demônios da terra, masculinos e femininos, e com sua ajuda tu deves construir Jerusalém. Mas tu deves usar este selo de Deus. E esta gravura no selo do anel enviado a ti é um pentalfa».[22] O anel mágico de Salomão é apresentado no texto que inaugura a tradição salomônica com um pentagrama.

São Cipriano também oferece sua própria instrução acerca do anel mágico do Rei Salomão. Ele diz:

Este anel deve ser fabricado com o ouro mais puro, em dia de domingo à saída do sol e no mês de maio. Há de levar no centro uma pedra de esmeralda, na qual se grava a figura do sol e do lado oposto do anel, sobre o mesmo ouro, a lua. Logo se gravam também com o buril, de aço novo, as seguintes palavras: Dabi, Habi, Alfa e Ômega, tendo presente que se há de fazer em caracteres hebreus, por ser de maior agrado aos espíritos cujos nomes leva. Para que se possa fazer com exatidão, ao desenho do anel se acompanha outro que representa o anel estendido com os signos hebreus que deve levar.

Para que este talismã adquira grandes efeitos mágicos, deverá pôr-se em contato com pedra imã a saída do sol e dizer a seguinte oração: Dedico-vos, Senhor Poderoso Alfa e Ômega, substância e espírito de toda criação, a lembrança diária de minha alma, que espera vossa divina proteção, em quantas obras há de executar neste dia.

Tendo fé, paciência, constância e observado todas as virtudes, podereis adquirir um domínio tão grande que até os reis necessitarão de tua ajuda e jamais alguém poderá lhe fazer dano de qualquer classe. Terás uma inteligência clara para adquirir toda classe de conhecimentos e prosperarás em quantos trabalhos empreendas. Este anel se coloca no dedo do coração da mão direita.[23]

A lenda do anel mágico do Rei Salomão se desenvolveu desde sua primeira menção em o Testamento de Salomão, ganhando camadas e mais camadas de mitos na tradição talmúdica e entre os árabes. As instruções de São Cipriano sobre o anel mágico carregam toda essa tradição enriquecida por lendas e contos dos feitos miraculosos do Rei Salomão no comando de demônios por intermédio do anel. Seja como for, as instruções de São Cipriano acima estão em acordo com o estudo anterior que fizemos sobre o anel mágico (Carta 16). O anel é de ouro, feito e consagrado no dia do sol porque estas são correspondências mágicas atribuídas ao trabalho com espírito assistente ou daimon pessoal, que opera sob a tutela de deuses solares e a medicina planetária do Sol. Como vimos anteriormente, o anel mágico deve carregar a assinatura astral do espírito assistente, conferindo poderes miraculosos ao mago e autoridade sobre uma miríade de criaturas espirituais. Quando São Cipriano diz: podereis adquirir um domínio tão grande que até os reis necessitarão de tua ajuda e jamais alguém poderá lhe fazer dano de qualquer classe, convoca a ideia dos poderes conferidos ao mago pelo espírito assistente; e quando menciona que o mago terá uma inteligência clara para adquirir toda classe de conhecimentos e prosperarás em quantos trabalhos empreendas, introduz também a ideia de que através das virtudes do anel mágico é possível adquirir por meio do espírito assistente conhecimento e sabedoria ocultos, bem como proteção espiritual. Entrelinhas o que São Cipriano faz é descrever a ação do daimon pessoal através do anel mágico. Tanto é assim que São Cipriano instrui em usar o anel no dedo do coração, quer dizer, o dedo anular da mão direita, aonde se diz que os espíritos familiares das bruxas se alimentam de seu sangue.[24] A famosa marca da bruxa, tão perseguida pelos inquisidores medievais, se trata da marca no corpo aonde as bruxas supostamente alimentavam seus diabos pessoais.[25]

De acordo com muitas tradições, o poder de voar se estendia aos homens na era mitológica; todos podiam alcançar os céus, seja pelas asas de um pássaro fabuloso ou sobre as nuvens. [...] Nós observamos que poderes mágicos como estes eram atribuídos a yogīs, faquires e alquimistas.[26] Nos Papiros Mágicos Gregos este poder era conferido ao paredros, o espírito assistente que vai levar você pelo ar; ele é um espírito aéreo que você viu. [Ele é o] assistente mais poderoso e único senhor do ar. [...] Quando você estiver morto, ele envolverá seu corpo como um deus, e levará seu espírito pelo ar com ele. Pois nenhum espírito aéreo que se une a um poderoso assistente irá para o Hades, pois para ele todas as coisas estão sujeitas.[27] Como temos observado, ao espírito assistente é dado todo o poder: invisibilidade, mudança de forma, trazer riquezas, mulheres, construir templos, revelador de sabedoria oculta e provedor de profecias, guia do destino, guardião poderoso e salvador da alma humana, libertando-a do cativeiro do Hades. Todos esses poderes eram conferidos ao mago assim que efetivamente tivesse conjurado o espírito assistente. Isso, na verdade, era a coroação de um profundo, rigoroso e longo processo de aprendizado e treinamento espiritual. No xamanismo, o trabalho com diversos espíritos familiares confere ao feiticeiro (homem de medicina) tipos distintos de capacidades paranormais, associadas a seus totens. Essa palavra, totem, nasceu na cultura do xamanismo vermelho norte-americano e se refere a uma relação espiritual íntimo-familiar com o espírito tutelar de um clã, família ou tribo, geralmente na forma de uma estátua de madeira. Nem sempre as criaturas espirituais retratadas nesses ídolos são animais; às vezes os totens trazem formas de criaturas sobrenaturais, consideradas espíritos guardiões. No xamanismo da América Setentrional os feiticeiros e xamãs mencionam o nagual como um espírito familiar que atua tanto como um aliado (servidor) quanto como um duplo astral, quer dizer, conferindo a capacidade ao mago de metamorfosear-se: Um aliado, [diz Don Juan], é a [fonte do] poder que pode ajudar o homem, aconselhá-lo e dotá-lo de força para agir, grande ou pequeno, certo ou errado. Esse aliado é necessário para empoderar a vida do homem, guiar suas ações, dá-lo conhecimento. De fato, o aliado é a ferramenta indispensável do conhecer. [...] O aliado fará você ver e entender coisas sobre as quais nenhum ser humano poderá lhe dizer. O Aliado muda de forma e o homem muda de forma com ele.[28] Acessar o nagual[29] de alguém, trata-se de acessar a fonte por trás de sua vida.

A capacidade de metamorfosear-se astralmente pelos feiticeiros é atestada por inúmeros relatos de experiência xamânica visionária e transe mediúnico em choupanas de cabala crioula. Os animais de poder do feiticeiro, seus espíritos assistentes, circulam livremente no seu veículo pneumático, transformando sua forma astral. Em cerimônia de feitiçaria xamânica, rituais do Santo Daime ou de cabala crioula, eu pude ver essa metamorfose astral. Mas de todos os poderes atribuídos ao espírito assistente do mago, os quais ele compartilha, seja transmissão de sabedoria oculta, vidência ou força sobre-humana,[30] o mais desejado é o poder de deificação da alma. Como vimos na Carta 0, o mago ou homem da Antiguidade não desejava passar seu pós-vida no Hades, o submundo. Esse era um duro castigo a alma, repudiado por todos nas culturas do Mediterrâneo, mas somente alguns tinham condições de escapulir deste destino: os magos. O conhecimento e conversação com o espírito assistente poderia livrar o mago do terrível destino do Hades, deificando sua alma. Essa era uma crença comum e muitos relatos mitológicos estão repletos de deuses deificando almas humanas. Os papiros gregos atestam, como vimos acima, que o contato com o paredros livra a alma do mago da masmorra do Hades, de maneira que ela permanece intacta, deificada e servindo como mestre, guia e assistente de outros magos em uma família de espíritos. São Cipriano, Fausto, Simão o Mago, Maria Padilha, Merlin entre muitos são almas deificadas que atuam como espíritos patronos ancestrais de magos e feiticeiros.

No xamanismo vermelho, uma maneira de entrar em contato com o espírito assistente é através da busca da visão, que implica jejum, esgotamento físico, preces e cânticos. Essa busca confere ao feiticeiro o poder de seu espírito assistente, quer dizer, sua medicina. Assim como um mago acessa a sua magia particular em contato com o espírito assistente, um feiticeiro xamânico acessa sua medicina particular de cura através dele. Como vimos nas Cartas 11, 13 e 14, a disciplina espiritual de todas as culturas para o conhecimento e conversação com o espírito assistente é quase que universal, compartilhada por xamãs, monges cristãos, magos salomônicos e feiticeiros crioulos. O weyekin é um espírito guardião do deserto conjurado na tradição do xamanismo vermelho através da mesma disciplina da busca da visão. Este espírito é convocado na entrada da adolescência, quando um jovem é enviado ao deserto, sendo ele assessorado por um homem de medicina (feiticeiro). A tradição conta que a alma deve atrair o weyekin que, por sua vez, é compelido a ela pelo seu poder de disciplina, propósito e força de vontade. Se o jovem não tem essas qualidades inatas na alma, despertas pela ocasião do retiro, o weyekin não é atraído por ela. O weyekin, desrespeitado pela falta de disciplina, coragem e vontade do jovem, ao invés de passar auxiliá-lo, diferente disso passa a castigá-lo, trazendo muitas mazelas a sua vida. A medicina do weyekin é o poder de cura e o trato com almas mortas, auxiliando o feiticeiro em suas pajelanças.

A tradição da magia oferece o pacto para se estabelecer uma relação harmoniosa de confiança entre o mago e os espíritos, todos eles. Na Antiguidade tardia, período em que situamos os Papiros Mágicos Gregos, a realização máxima da jornada de um mago era adquirir Conhecimento & Conversação com o espírito assistente e com ele forjar um pacto. Foi neste período que a apologia cristã contra a feitiçaria relatando a vida de São Cipriano começou a ser tecida em uma das muitas tentativas de depreciar a magia em detrimento da fé cristã.[31] Os Papiros Mágicos Gregos apresentam o gênio familiar como o paredros, um espírito assistente que é a origem dos poderes taumatúrgicos e oraculares de um mago. Santo Irineu de Lião (130-202 d.C.) em seu Contra as Heresias acusa o Marcos, um líder gnóstico que ele atribui a alcunha de mago, de ser acompanhado por um espírito assistente, o qual lhe dotava com capacidades proféticas. Os apologistas cristãos também acusam Simão o Mago de ser auxiliado por um espírito tutelar. Mas é somente em Santo Agostinho (354-430 d.C.) que o espírito assistente ou gênio familiar, o patrono do mago, se transforma definitivamente no Diabo, o qual solicita um pacto de posse da alma do mago, como vemos na história de Fausto. Os apologistas cristãos que teceram as histórias de São Cipriano, Fausto e Simão o Mago como ataques a tradição da magia tinham essa ideia em mente. Com essa demonização do espírito assistente, a Igreja de Roma apresentou, com o tempo, sua própria versão do espírito assistente, o Anjo da Guarda. No entanto, paralelamente, a ideia original do espírito assistente como apresentada nos papiros gregos sobreviveu e se tornou a estrutura por trás do retiro (ou isolamento) e operação mágica de Abramelin.[32] Assim como no xamanismo, o mago se retira na busca da visão, conhecimento e conversação com seu espírito tutelar. Isolamento, silêncio, jejum, preces, orações e invocações, alimentação e sono restritos. Os ingredientes para essa jornada são os mesmos tanto no xamanismo quanto na tradição da magia. Seu coroamento é o pacto que se estabelece com o gênio familiar para dele receber seus poderes e o controle sobre uma miríade de criaturas espirituais. São Cipriano diz: O grande segredo da magia é a arte de fazer pactos com os espíritos para deles obter ajuda em toda classe de experimentos e para que eles desvendem segredos, mostrem tesouros e operem prodígios.[33]

O pacto com as criaturas do Corpo de Deus pode ser considerado a primeira iniciação na Arte dos Magi ou, pelo menos, a mais especial. Como vimos na Carta 15, o famigerado pacto com o diabo data do período conflitante que marcou os Sécs. III e IV d.C., onde um profundo debate e embate ocorria entre o cristianismo e as tradições pagãs do Mediterrâneo. Apologias cristãs contra a magia como a história de São Cipriano começaram a ser disseminadas, ganhando prestígio e fama. Nessas apologias a magia aparecia como obra do Diabo e para aprendê-la, o mago teria de estudar com o próprio Diabo em troca de sua alma no pós-morte. Como essas histórias ilustravam a vitória do cristianismo sobre a tradição dos magos, aqueles que faziam pacto com o Diabo e vendiam a ele suas almas logo se arrependiam de seus feitos, suplicando a Deus por misericórdia e libertação da alma, presa ao Diabo pelo poder do pacto. Eram apologias de condenados arrependidos. As histórias mais antigas que relatam o pacto com o Diabo são as de Teófilo de Adana e a do senador romano Protério de Cesaréia. Ambos são personagens do Séc. IV d.C. Enquanto Teófilo de Adana fez um pacto com o Diabo para reaver sua posição na Igreja Católica, Protério de Cesaréia teve a sua filha seduzida por um servo que houvera feito um pacto com o Diabo. Essas histórias influenciaram substancialmente a Confissão de São Cipriano que já circulava no tempo de Santo Agostinho. Seja como for, essas apologias construíam a ideia de que por meio do pacto e o juramento da entrega de sua alma ao Diabo, o mago conquistaria sucesso naquilo que desejasse. Teófilo queria retomar o cargo episcopal de bispo na Igreja, mas São Cipriano, no entanto, queria algo mais, como vimos na Carta 0; ao avaliarmos a busca de São Cipriano entendemos que ela reflete os anseios espirituais do mago da Antiguidade: a deificação de sua alma através do conhecimento e conversação com o espírito assistente. São Cipriano representa, portanto, o típico mago da Tradição Hermética de Mistérios como estudamos nas Lições 1 e 2. Sua história e as conquistas nela narradas são importantes porque demonstram os passos pelos quais qualquer mago busca aprender, compreender e praticar a Arte dos Magi; em outras palavras, se inserir na tradição da magia. Toda essa estrutura é apresentada fielmente na história de Fausto, que apareceu como hoje a conhecemos somente no fim da Idade Média. Tanto São Cipriano quanto Fausto travaram comércio com o Diabo, no entanto, pessoal. O diabo pessoal de São Cipriano e Fausto e o espírito assistente ou Sagrado Anjo Guardião que todo mago anseia conhecer e estabelecer conversação.

Nesse ponto de nosso estudo você poderia se perguntar: se tudo o que foi escrito sobre São Cipriano, sua história, feitos, trajetória mágica, feitiços, orações e pensamento mágico-filosófico se tratam de uma construção fictícia, embora baseada fidedignamente na tradição da magia e nos feitos dos magos, como pode ele ser uma alma deificada? A resposta a esta indagação é técnica. Nos nossos estudos do Curso de Filosofia Oculta nós vimos que a Alma do Mundo se difunde de um modo especial por todas as partes do cosmos, um meio de qualidade feminina que os Oráculos Caldeus chamavam de Hécate e, segundo o pensamento de Agrippa, moldada a partir de proporções numéricas harmoniosas. Essas proporções numéricas são sunthēmatas noéticas, símbolos sencientes do Plano das Ideias arranjados em proporções áureas ideais que, por consequência, produzem efeitos miraculosos de criação mágica no reino da geração. É dessa maneira que o Criador manifestou fisicamente todas as coisas.[34] Assim, qualquer mago que manipule estes símbolos noéticos com precisão pode modular qualquer coisa que ele deseja na Alma do Mundo, claro, sob as conduções adequadas. Essas condições adequadas é o tema do primeiro livro de filosofia oculta de Agrippa e a manipulação desses símbolos noéticos o tema do segundo livro, magia natural e magia matemática respectivamente.[35]

Por outro lado, a história mítica de São Cipriano vem tomando forma desde a Antiguidade tardia. Aonde São Cipriano chegou sua feitiçaria se uniu a magia de culturas locais. Assim, com o tempo uma miríade de escritos começaram a aparecer com o nome de São Cipriano trazendo feitiços, rezas, benzas, maldiçoes, conjurações, orações etc. de várias culturas europeias e, recentemente, até brasileira. Com meio mundo entrando em contato com o espírito de São Cipriano através de seus grimórios, chamando seu nome, rezando seus feitos e poderes, uma criatura espiritual começa a ser gerada dentro da Alma do Mundo e hoje existe um São Cipriano deificado nos planos internos, espírito patrono dos feiticeiros, disciplinador da alma dos mortos, conjurado e assentado em altares por magos de várias partes do globo. É dessa maneira que São Cipriano tornou-se uma alma deificada capaz de auxiliar magos e feiticeiros em seus trabalhos espirituais. Hoje qualquer mago pode conjurar a presença espiritual de São Cipriano e assentá-lo como um espírito tutelar, como veremos na próxima seção.


NOTAS:


[1] Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro; veja Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores. É interessante notar que a visão aqui nos transmitida por Jonas Sufurino acerca da relação do homem com os espíritos seja àquela que a Igreja Católica adotou inspirada em Porfírio de Tiro, de que os espíritos influenciam os homens e que os homens influenciam os espíritos. Veja Carta 1: A Demonologia de Porfírio de Tiro.

[2] Aleister Crowley, Magick Whitout Tears.

[3] Frater Acher em seu livro Cyprian of Antioch trabalha com a tese de que São Cipriano pode ter vivido na legião dos vivos. Ele traça uma ampla pesquisa por pistas e provas que comprovem essa tese. Mas ele acaba por concordar que mesmo com tais provas a mão, ainda sim não é possível saber se São Cipriano viveu ou não entre os vivos.

[4] Essa é uma derivação direta do pensamento de Porfírio de Tiro. Em sua demonologia, ele demonstra que dependendo de como são tratados os espíritos (daimones), eles podem fazer bem ou mal aos humanos. Essa concepção sobrevive até hoje nas choupanas de cabala crioula. Veja carta 1: A Demonologia de Porfírio de Tiro.

[5] Nós vemos este mesmo padrão Faustino na história de Simão o Mago. Como um feiticeiro que necessitava de toda tecnologia da magia para realizar sua arte, quer dizer, círculo mágico, armas mágicas, sacrifícios etc., Simão teria se encantado pelos milagres que Felipe e Pedro podiam fazer apenas com o poder da palavra. Para adquirir este poder ele converte-se ao cristianismo e é batizado. Veja Lição 2. Este padrão Faustino também é encontrado na tradição da magia popular ibérica, que arrasta através dos tempos admiração por um frade dominicano, Gilles de Santarem (1185-1265). Conhecido como Frei Gil, ele renunciou a Deus ao fazer um pacto com o Diabo. Mas ao apelar a Virgem Maria (evocando a história de Teófilo de Adana mencionada nas lições anteriores), rompeu o pacto com o Diabo e se converteu. Então essa lenda faustina do feiticeiro que se converte é culturalmente conhecida e espalhada na Península Ibérica, onde desenvolveu-se a tradição cipriânica da magia.

[6] Esses são textos considerados heterodoxos, pois não fazem parte do cânone cipriânico conhecido e baseado nas três fontes acima citadas.

[7] Hinário do Rei Salomão, Fernando de Ligório.

[8] Em Grimorium Verum, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[9] Em O Grande Livro de São Cipriano, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[10] Em Hygromanteia, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[11] Em Os Papiros Mágicos Gregos, citado em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[12] Espírito assistente morto, ou seja, a alma deificada do gato através de um rito de deificação. Este rito trata-se do sacrifício ritual do animal. Veja Carta 16.

[13] Folhas de metal utilizadas nos feitiços dos papiros gregos.

[14] São Cipriano, A Confissão de São Cipriano em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[15] Idem.

[16] Veja Carta 15.

[17] São Cipriano, A Confissão de São Cipriano em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[18] Papiros Mágicos Gregos, I 1-195.

[19] São Cipriano em Qualidades Essenciais para Professar as Artes Mágicas em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[20] Mircea Eliade, Xamanismo: Técnicas Arcaicas de Êxtase, Martins Fontes.

[21] São Cipriano, Sobre a Arte de Evocar os Mortos em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[22] O Testamento de Salomão em Thesaurus Magicus, Vol. I. Humberto Maggi, 2010, Clube de Autores.

[23] São Cipriano, Sobre o Anel de Salomão em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[24] Algumas fontes incluem o dedo mindinho. São Cipriano ensina a alimentar um diabrete (espírito familiar) com sangue do dedo mindinho.

[25] Embora possa ser uma conexão difícil de compreender, ela ficará óbvia no curso de nossos estudos.

[26] Por alquimistas entenda rasāyaṇa-darśana, a ciência alquímica indiana. Passagem de Mircea Eliade, Xamanismo: Técnicas Arcaicas de Êxtase, Martins Fontes. A correção diacrônica é minha.

[27] Papiros Mágicos Gregos, I 1-195.

[28] Carlos Castañeda, Ensinamentos de Don Juan.

[29] É difícil traçar as origens da palavra nagual. Os acadêmicos costumam traduzi-la como feiticeiro ou feitiçaria, o que tem criado bastante obscurantismo. Ela já aparece no Códice Borgia, um texto mexicano pré-colonização espanhola para trabalhos de divinação. No xamanismo da América Setentrional a palavra nagual está associada a um meio pelo qual se obtém conhecimento. Ela é sempre acompanhada de outra expressão, o tonal, a contra parte do nagual ou a alma humana pelo qual nagual se atraiu. Como um espírito assistente, o nagual ainda é a conexão entre o feiticeiro e o mundo dos espíritos, sendo eles conectados pelo próprio destino. Ele age como espírito guardião, animal de destino e professor.

[30] Os berserkers nórdicos, por exemplo, eram guerreiros poderosos com força sobre-humana que recebiam seu poder de um espírito tutelar na forma de um urso. Antes de invadirem e pilharem, os berserkers se reuniam para convocar este espírito assistente e se vestiam com peles, dentes e ossos de urso em rituais orgásticos para invocar seus poderes, os quais eles usavam para se tornarem invencíveis.

Os poderes da orgia sexual e da quimiognose eram utilizados por tribos de muitas culturas para convocar espíritos assistentes. Kenneth Grant (1924-2011) explora o poder da magia sexual para o conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião ou deus oculto como ele nomeia em suas obras, O Renascer da Magia e Aleister Crowley & o Deus Oculto. Uma discussão esclarecedora do deus oculto como sombra (chaya) ou duplo aparece nessas obras e em outra, Cultos das Sombras.

Na Idade Média, o poder sexual de atração da bruxa era considerado um espírito familiar, um duplo astral que a acompanhava. A palavra em inglês utilizada para este duplo é fetch (encantar, fascinar); considerava-se que ele possuía grande poder magnético. Desse termo vem outro, fetiche, que descreve algo (um objeto mágico como um talismã) ou alguém com grande poder de atração. Quando a libido é dirigida a um objeto, ação ou parte do corpo ao invés de um parceiro ou um espírito familiar produz-se o espírito do fetichismo. Modernamente entende-se que um fetiche se trata de um objeto, geralmente sem implicações sexuais, como um calçado, que atraí a atenção sexual. No entanto, na tradição da magia desde tempos antigos, um fetiche se trata de um objeto mágico, a morada de um espírito assistente cujas virtudes despertam certo magnetismo. Estátuas adoradas em diversos cultos são, dessa maneira, fetiches. Na Antiguidade, dentre os sistemas oraculares da cultura mediterrânea existia a divinação através de estátuas que ganhavam vida. As estátuas eram portais através dos quais as sacerdotisas oraculares acessavam o espírito assistente que residia nelas. É interessante notar que essas sacerdotisas eram virgens (dedicadas à deusa Vesta, portanto, vestais) ou castas, dedicadas a outros deuses e deusas. Todo o fetch era dirigido ao conhecimento e conversação com a deidade. Se trata de uma prática pancultural bruxas, magos e xamãs de todas as culturas reservarem sua potência sexual para o contato com espíritos assistentes (magia) ou transcendência espiritual (misticismo).

A crença nesse espírito familiar era tão profunda que as bruxas acreditavam que sob certas circunstâncias, o fetch podia se manifestar materialmente, dependendo da concentração de desejo nele projetada. É através do fetch que a bruxa tem poder de magia e ele representa a própria força que produz a criação. Os gregos chamaram este espírito assistente de Eros e disseram que onde ele se manifesta, a magia se realiza. Representando o espírito da libido, o fetch poderia materializar-se como uma sombra ou duplo, engajando em coito sexual com a bruxa em um sabbath de bruxaria. É sobre o trabalho com o fetch ou sombra que Kenneth Grant se debruça em sua obra Cultos das Sombras. Eu falei sobre esse tema nas edições de O Olho de Hoor, Vol. I, Nos. 9 & 10. A palavra fantasia (faculdade de produzir imagens) que utilizamos no termo fantasia sexual vem da palavra fantasma (ilusão, projeção imaginativa). No grego, ambas denotam demonstrar, fazer visível, tornar aparente. Fantasmas ou fantasia podem ser, portanto, projeções da mente imaginativa, imagens projetadas pelos olhos da mente. A repetição de uma fantasia sexual acerca de uma pessoa como projeção imaginativa pode, com o tempo, capacitar o fetch a atrair a pessoa desejada pela bruxa. Em contos medievais de feitiçaria, as bruxas velhas atraíam suas vítimas para floresta, homens e mulheres, projetando a imagem de uma jovem voluptuosamente sedutora. Tratava-se do fetch materializado. Espíritos de todos os tipos, incluindo vampiros (súcubos ou íncubos), demônios etc. são atraídos ao fetch das bruxas como mariposas são atraídas a luz. Na magia sexual cerimonial, a lamparina mágica representa o fetch dos magos, que precisa ser alimentado com ojas para brilhar reluzente.

Por outro lado, a palavra fascinar é latina e originalmente significava feitiço ou encantamento. Fascinar é colocar alguém sob feitiço ou encanto. Nós nos fascinamos por tudo que nos chama atenção das inclinações naturais humanas; fantasias sexuais têm uma natureza obsessivamente atraente e é sobre este princípio que opera a magia sexual com o chaya. O fetch é o poder sobre o qual a bruxa projeta os fantasmas de sua mente, sejam eles conscientes ou não. Por sua vez, como um assistente mágico ele torna tangíveis esses fantasmas. Em outras palavras, o fetch é como o gênio da lâmpada que realiza os desejos da bruxa.

Através da magia sexual o fetch é alimentado com ojas, tornando-se uma lamparina reluzente nos planos internos, o que torna a bruxa magnética e atraente. As frustrações sexuais, de outra maneira, contaminam e adoecem o fetch, que atrairá apenas criaturas espirituais substancialmente torpes e de natureza vil.

[31] Uma dessas tentativas foi a demonização do mago Merlin que viveu no Norte da Bretanha por volta do Séc. V d.C. Merlin foi considerado o último profeta pagão da Europa. Nas apologias cristãs contra o paganismo europeu ele foi transformado em um velho druida meio-homem; filho do Diabo em pessoa, Merlin foi reverenciado por sua sabedoria e condenado ao inferno pela prática da magia. Como veremos adiante, a doutrina do pacto com o diabo proliferada pelas crônicas cristãs seguiu este mesmo caminho de deturpação do sentido original de pacto com os espíritos, mantendo aspectos essenciais da tradição, mas com implicações severamente negativas ao adicionarem a concessão da alma pela busca de poder temporal.

[32] É interessante notar a similaridade entre o sistema de magia divina em O Livro da Magia Sagrada de Anramelin, o Mago, com o sistema gnóstico de iniciação. Em meu livro Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon esse tema foi elaborado e apresentado com detalhes.

[33] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.

[34] Por Alma do Mundo nos escritos de Eliphas Levi leia-se Luz Astral. É interessante notar como essa doutrina fomentou as concepções modernas acerca da magia. Para Levi, a projeção da vontade via imaginação, quer dizer, a manipulação de sunthēmatas noéticas ou proporções numéricas harmoniosas é o suficiente para dar movimento e forma a Luz Astral.

[35] Veja Agrippa, Três Livros de Filosofia Oculta. É pela falta deste conhecimento que a magia – leia-se psicurgia – do caos não funciona efetivamente.