domingo, 16 de janeiro de 2022

Origens da Tradição Salomônica

Grande parte da influência dos grimórios na tradição cipriânica da magia herda seu conteúdo do Veritable Magie Noir, o grimório da verdadeira magia negra, a partir da obra do fictício e diabólico monge Jonas Sufurino, O Tesouro do Feiticeiro. Este grimório faz parte do conjunto de textos (sete no total) pesquisados por S.L. MacGregor Mathers (1854-1918) para constituir a sua versão de a Chave de Salomão. E muito embora Mathers tenha méritos por traduzir e publicar essa obra que é uma das peças chave do quebra-cabeça da Tradição Esotérica Ocidental, por conta de sua visão estreita de mundo ele omitiu alguns capítulos relevantes, presentes, no entanto, no Veritable Magie Noir.

Ao falar da influência dos grimórios em O Espírito de São Cipriano, eu disse:

Em uma passagem do Talmud nós descobrimos que os judeus reconhecem que a magia vem do Egito: Dez medidas de magia vieram ao mundo. O Egito recebeu nove delas, o resto do mundo só uma (49b). Não existem fontes que provem a existência de uma magia judaica antes dos primeiros séculos da presente era. Não existem registros de métodos mágicos utilizados pelos judeus, uma assim chamada magia salomônica, no período pré-cristão em fontes judaicas a parte dos hinos de exorcismo que só começaram a aparecer no Séc. III d.C. Não existiu, portanto, uma tradição salomônica de magia antes de Jesus Cristo. A magia judaica como temos conhecimento só nasceu com a influência da magia greco-egípcia. É somente a partir do Séc. III d.C. que testemunhamos o nascimento de uma tradição judaica de magia. E é interessante notar que a influência judaica na magia dos papiros não incluía métodos ou técnicas de magia, mas apenas o uso dos nomes de Deus, anjos e demônios. Isso demonstra – e é só mais uma prova – que a magia que aparece nos grimórios salomônicos não é judaica, mas greco-egípcia, cuja origem são os Papiros Mágicos Gregos.  

Isso contrastou com a ideia equivocada de alguns alunos de que a assim chamada tradição salomônica da magia foi iniciada pelo Rei Salomão do Velho Testamento e que, pior que isso, o Rei Salomão praticou a magia que está nos grimórios salomônicos. Existe um consenso iletrado de que a magia salomônica é a magia que o Rei Salomão praticou. Isso é deveras equivocado por muitos, muitos motivos. Um deles é este: a tradição salomônica da magia nasceu a partir de duas importantes fontes. A primeira delas é o Testamento de Salomão, que apareceu nos primeiros séculos de nossa era. Este é o texto que inaugura a tradição salomônica da magia e estabelece seu elemento central e fundamental, a chave da prática: o poder para se comandar os espíritos do Corpo de Deus é uma dádiva, benção ou dom conferido pelo próprio Deus. Este elemento central posteriormente foi transmitido aos textos da tradição salomônica e outros grimórios modernos como o Grimorium Verum e o Grand Grimoire.

Essa ideia central da tradição salomônica é inspirada no Primeiro Livro de Reis, quando Salomão é arrebatado por uma epifania. Mas em o Testamento de Salomão ela é apresentada em um contexto diferente: após Salomão dirigir-se a Deus com preces para obter auxílio contra as forças de um demônio, Deus lhe envia o Arcanjo Miguel, o qual lhe apresenta um anel mágico capaz de comandar qualquer demônio. O anel descrito tem um pentagrama cravado em pedra. O pentagrama é e sempre foi na tradição da magia o símbolo mágico de imprecação demoníaca. É a força do equilíbrio que o pentagrama estabelece sobre os elementos que lhe dota de poder sobre as criaturas dos elementos ou regidas por eles. E é interessante a cristalização da ideia de que através de uma piedade de orações e a prática dos preceitos de Deus recebe-se a autoridade sobre as criaturas do Corpo de Deus. Mas assim como salomão teria perdido essa autoridade por se lançar em idolatria e culto aos deuses pagãos, qualquer um que deixa de seguir os preceitos de Deus e começa a levar uma vida de indulgências também perderá ou nunca conquistará.

A segunda fonte importante da qual nasce a tradição salomônica é o Tratado Mágico de Salomão, o Hygromanteia. A palavra hygromanteia tem sido considerada uma técnica de divinação através da água, no entanto, no contexto do grimório segundo Stephen Skinner e David Rankini, a palavra pode estar indicando uma antiga prática de restringir demônios em urnas, jarros ou vasos de água feitos em metal. Foi daí que eu tirei a ideia prática de construir um triângulo da arte de concreto e nele incluir água, porque a água tem se mostrado desde a Antiguidade um portal entre mundos. Nada melhor que um triângulo da arte com água para manifestação demoníaca. O Tratado Mágico de Salomão é sem dúvida um dos livros mais importantes da tradição da magia: ele estabelece a ponte entre a magia grega e aquela apresentada nos grimórios, definindo o que seria o tripé da magia salomônica: a cosmovisão cristã, a metalinguagem judaica e a estrutura de magia greco-egípcia. Sem este tripé a tradição salomônica não existiria, muito menos os grimórios que a sucederam.

A Chave de Salomão, bem como todos os grimórios posteriores, beberam do Tratado Mágico de Salomão. Sem ele, por exemplo, a hierarquia demoníaca apresentada nos grimórios tardios e até mesmo o Lemegeton não faria sentido algum. O Grand Grimoire, o Grimorium Verum, o Abramelin e todos os manuais de feitiçaria após o Séc. XV devem sua fonte do Tratado Mágico de Salomão. Nele, o poder das operações de magia vem das pedras, das ervas e dos encantamentos (palavras), bem como do conhecimento das posições dos astros. Herdando fontes bizantinas, as quais o preservaram até sua introdução na Europa na Idade Média, bem como a estrutura de o Testamento de Salomão, o Tratado Mágico de Salomão instrui na invocação de anjos e demônios: anjos para magia do bem e demônios para magia do mal. Essa é uma típica dicotomia cristã, mas é interessante que ele apresente tanto anjos quanto demônios como aliados do mago. Particularmente eu classifico o Tratado Mágico de Salomão como a extensão fiel do que é apresentado no Testamento de Salomão.

Acima eu disse que no Tratado Mágico de Salomão o poder das operações de magia vem das pedras, das ervas e dos encantamentos (palavras), bem como do conhecimento das posições dos astros. Esse foi um conhecimento transmitido de Salomão a Robão já no início do grimório em um diálogo entre eles. Então veja que diferente daquela ideia apresentada em o Testamento de Salomão de que o poder da magia e autoridade do mago sobre os espíritos vem de Deus, o Tratado Mágico de Salomão estabelece que o poder da magia está contido nas plantas, pedras e encantamentos. Essa estrutura muda novamente em a Chave de Salomão; no diálogo que a Chave de Salomão apresenta entre Salomão e Robão, a ideia do Primeiro Livro de Reis que subjaz o Testamento de Salomão é restabelecida e o poder da magia passa a ser atribuído ao mérito pessoal do mago: quer dizer, através de uma piedade de preces e ações segundo os desígnios de Deus, é possível ter poder na magia. Essa é a verdadeira Chave de Salomão, o verdadeiro segredo.

Dessa maneira, respondendo meus alunos mais ávidos pela persona do Rei Salomão como um grande mago goético, toda tradição salomônica desenvolveu-se dentro da cosmovisão cristã a partir dos primeiros séculos de nossa era, herdando a prática mágica grega apresentada nos Papiros Mágicos Gregos e mantendo a metalinguagem judaica do Velho Testamento.