domingo, 16 de janeiro de 2022

A Comunicação com Espíritos

Na teurgia caldeia da qual Jâmblico era especialista, os nomes bárbaros entoados nos ritos teúrgicos eram considerados símbolos através dos quais era possível acessar deuses, anjos, heróis e daimones. Estes nomes bárbaros eram desconhecidos a qualquer língua humana, pois se tratavam de nomes divinos de poder e um presente dos deuses dado aos homens para que estes usassem e se comunicassem com diversas criaturas do corpo de Deus. O xamanismo de todas as culturas, a teurgia neoplatônica, a magia dos papiros greco-egípcios da Antiguidade tardia, a tradição salomônica e cipriânica da Idade Média, todos compartilhavam da crença de que: i. existem espíritos diversos que desempenham papeis demiúrgicos na criação e na sociedade; ii. estes espíritos podem ser benéficos ou malfazejos a vida humana e criação; iii. através da tecnologia adequada e requerida (segundo cada sistema e cultura), é possível se comunicar com estes diversos espíritos em estados alterados de consciência, aprendendo com eles uma sabedoria arcana não detida pelos homens. Esse sempre foi um norte para tradições xamânicas, magia antiga e da feitiçaria salomônica: ser capaz de se comunicar com os espíritos, aprender com a sabedoria deles e também conjurá-los utilizando a autoridade dos Nomes Divinos quando, segundo Jâmblico, nos vestimos com a capa dos deuses.

Eu tive a oportunidade de conhecer um mago taumaturgo, detentor de poderes paranormais reais que testemunhei em várias ocasiões. Uma vez foi quando ele fez parar de chover em poucos minutos. Nessa ocasião fazia pouco tempo que eu o conhecia. Fui apresentado a ele por seu sobrinho, meu amigo ocultista Elcio Zaghetto. Foi Elcio quem me introduziu efetivamente no mundo do ocultismo. Aos doze anos conheci com Elcio Eliphas Levi, Papus, Krumm Heller, Jorge Adoum, Blavatsky e vários autores teosóficos, Israel Regardie, Dion Fortune, Samael Aum Weor e o pior homem do mundo, Aleister Crowley e thelemitas brasileiros como Marcelo Motta e Euclydes Lacerda. Aos doze anos o Elcio escancarou para mim as portas do Templo de Salomão. Ele me levou para conhecer diversas fraternidades rosacrucianas, a gnose de Samael, o Colégio dos Magos e o falecido Vasariah.

Foi em uma tarde de sexta feira quando Elcio me convidou para irmos a casa do tio dele. Eu prefiro não revelar seu nome, a pedido do próprio tio e sobrinho. Também não me lembro exatamente de todos os pontos, eu tinha quatorze anos na época e não tinha o habito de fazer anotações em diários. De lembrança, foi o seguinte: nós chegamos em uma tarde ensolarada para em pouquíssimos minutos começar a chover intensamente. Nós tínhamos ido lá para que o Elcio pegasse com ele alguns livros. O tio dele não podia esperar muito, devido a um compromisso e estava com bastante pressa para nos atender. Quando a chuva caiu ele se viu preso em casa conosco. Por outro lado, o Elcio não havia levado mochila ou sacola, não tendo como sair com os livros na chuva. Diante disso, o tio do Elcio tirou os sapatos, entrou no seu pequeno santuário e saiu de lá com uma varinha mágica. Dirigiu-se a varanda da sala, toda alagada pelo temporal, apontou a varinha para cima e entoou nomes de poder inteligíveis para mim na época e até hoje. Não faço a mínima ideia das palavras de poder que ele proferiu, mas a chuva acabou como que por instantaneamente. Naquele momento eu fiquei sem saber o que dizer, não sabia se sentava no sofá, morria de rir ou saia correndo. Uma corrente de energia invadiu o ambiente que se tornou pesado, úmido e quente. Eu comecei a suar muito. Curioso eu indaguei ao Elcio o que seu tio fez. Ele balançou a cabeça e fez que não. Então, quando o tio dele saiu da varanda, sequinho, eu perguntei a ele: em que livro posso aprender isso? Ele respondeu: isso não se aprende em livros.

Anos depois, conversando com Elcio sobre esse fato, ele me falou que seu tio tinha o auxílio de uma entidade-guia, foi esse o termo que ele usou. Hoje sei que naquele dia testemunhei um mago em ação taumatúrgica e que sua magia ele aprendeu diretamente através do conhecimento & conversação com seu Sagrado Anjo Guardião. Ele aprendeu com esta entidade-guia nomes divinos que ninguém conhece, procedimentos magísticos que não estão listados em livros. Esse tipo de conhecimento que é transmitido espiritualmente por um espírito assistente e que não é encontrado em livros é o que a Tradição Oculta tem chamado de arcanum arcanorum.

O mago se vale de inúmeros nomes de poder para contatar e conjurar espíritos. Dependendo de seu conhecimento acerca do poder destes nomes, ele logra êxito em suas operações. No entanto, ao invocar um espírito assistente, seu Sagrado Anjo Guardião, ele tem acesso a um conhecimento arcano da Arte dos Magi só dele, desconhecido a outros magos. Esse fenômeno é padrão em toda cultura e tradição animista. O xamã, por exemplo, tem uma medicina particular, distinta da medicina de outros xamãs. Essa medicina ele aprende através do contato com criaturas espirituais do corpo de Deus.

Para os praticantes de magia tradicional salomônica, é Salomão o maior exemplo e expoente dessa doutrina de receber dos espíritos conhecimentos divinos e secretos. Salomão, um homem que se provou digno para receber a graça de Deus tornou-se também o sacrário da magia salomônica. A tradição dos grimórios salomônicos opera dentro de uma cosmovisão e mitologia particulares. Quando um mago salomônico conjura um espírito e exerce sobre ele autoridade, está emulando o próprio Salomão, o primeiro a receber os favores divinos e inaugurador de uma tradição mágica outorgada pelo próprio Deus. Nessa tradição mágica outorgada por Deus, conjura-se espíritos menores com a autoridade de potestades, arcanjos e anjos invocados previamente. Toda a magia tradicional salomônica se baseia nisso: primeiro aprende-se com anjos e arcanjos as regras da Arte dos Magi para somente depois, com preparo e conhecimento, conjurar espíritos do corpo de Deus. Isso é tão evidente que as inúmeras versões da Chave de Salomão trazem contos diversos acerca dessa mitologia. Isso significa que a magia tradicional salomônica pode ser considerada como uma Arte revelada pelo próprio Deus e, portanto, não é ilícita aos olhos de Deus. Vamos nos lembrar que a cosmovisão dos grimórios é medieval e, portanto, altamente influenciada pelo cristianismo. Sem um conhecimento de toda escatologia cristã e dos manuais de demonologia medievais é difícil perceber a dimensão mais profunda da tradição salomônica. Alguns ocultistas tentam desesperadamente se agarrar a ideia de que a magia tradicional salomônica é sinônimo de magia judaica, o que demonstra um terrível desconhecimento da tradição, tamanha a falta de estudo. Os grimórios salomônicos são manuais de feitiçaria escritos pelos padres da Igreja de Roma, manuais estes que foram escritos para o homem da Idade Média. Não há evidência que o mago da Idade Média tivesse ideias religiosas distintas daquelas vigentes em seu tempo na Europa. Isso significa que ele não esperava conjurar daimones como compreendidos no paganismo, mas demônios como compreendidos no cristianismo, e ele esperaria que tais demônios se comportassem segundo a cosmovisão cristã. Qualquer um que consultar a gênese da Chave de Salomão, quer dizer, O Tratado Mágico de Salomão (Hygromanteia) constatará que a intenção do mago medieval era conjurar demônios com o auxílio das forças celestiais, e assim temos:

Por esses nomes, eu vos conjuro, espíritos e demônios das quatro partes do mundo, para se materializarem, assumir uma forma humana mansa e bela para se apresentarem diante de mim e fazer o que eu mando. Eu vos conjuro, vos amarro e vos amaldiçoo com o poder dos nomes: Retienim, Fenakim, no precioso nome do Senhor Samiforas. Sejam temerosos e envergonhados diante dos nomes do Senhor. Ó demônios, apareçam diante de mim e não me desobedeçam [pelo poder destes] santos nomes. [...] Eu vos constranjo, eu vos obrigo e vos digo pelo nome de Mikael, Gabriel e Rafael e pelos santos anjos Amafriel, Serapefouel, Giamiel e Ladodoel.[1]

Nós podemos atribuir ao Testamento de Salomão o início da tradição salomônica. Este é um manuscrito pseudoepigráfico atribuído a Salomão escrito em grego por volta do fim do Séc. I d.C., mas diversos pesquisadores dizem que ele foi escrito entre os Sécs. III e VI d.C. O texto tem inúmeras referências teológicas judaico-cristãs, a magia e a astrologia gregas. O autor foi provavelmente um cristão grego. Dessa maneira, desde o documento oficial que funda a tradição salomônica da magia, é preciso considerar a extensão da influência cristã nele. Ao consultar o texto vê-se o demônio Rath fazer uma profecia quando se manifestava na forma de um leão. A profecia era sobre a vinda de Emanuel. Temos então um demônio profetizando a vinda de Jesus, o que por si determina a validade da magia ali transmitida. Dessa maneira, o Testamento de Salomão pode ser considerado a primeira iniciativa de se formular uma magia de inclinação cristã, uma tradição mágica que aceita a cosmovisão cristã acerca dos demônios e o contato e controle deles por intervenção divina. Até o Testamento de Salomão, a nenhum demônio foram atribuídas boas obras, ele é o primeiro a fazê-lo. Durante o Renascimento essa mecânica ou tecnologia salomônica da magia foi deturpada pelos magos da época, que queriam higienizar a magia, retirando dela seu aspecto conjuratório e contato com demônios e colocando ênfase na prática da magia natural, astrológica e o misticismo teúrgico para o benefício de todos. É dessa interpretação que nasce a magia como uma prática de espiritualização. Ela ganhou força durante o Iluminismo e deu nascimento a magia moderna transmitida por organizações como a Ordem Hermética da Aurora Dourada e outras da mesma época.


NOTA:    


[1] The Magical Treatise of Solomon or Hygromanteia, Ioannis Marathakis, Golden Hoard Publishing.