domingo, 16 de janeiro de 2022

As Crônicas de São Cipriano

 

O Mito & a Verdade Magística de São Cipriano

Como demonstrado nessa jornada de O Espírito de São Cipriano, de São Cipriano nós tiramos muitas lições importante na iniciação magística. Um dos temas abordados é a iniciação a tradição cipriânica da magia. Ao tocar nesse assunto, é impossível deixar de nos debruçar um pouco sobre a questão da iniciação na feitiçaria. Até o presente o que compreendemos acerca da tradição cipriânica? Em linhas gerais podemos dizer que:


1. O mito de São Cipriano foi criado por volta do Séc. IV d.C. quando fervilhava um profundo intercâmbio mágico-religioso na região do Mediterrâneo.  Contemporâneo ao mito era a magia dos Papiros Mágicos Gregos, os Oráculos Caldeus e a teurgia de Jâmblico, e o Testamento de Salomão que inaugura a magia tradicional salomônica. Tudo isso serviu como pano de fundo para construção da história de São Cipriano e por isso tiramos dela elementos genuinamente mágico-iniciáticos.

2. O Pacto com o Diabo (sendo este uma paródia do contato com espírito assistente ou deidade tutelar), o elemento central do drama de São Cipriano, já era amplamente conhecido através da história de Teófilo de Adana,  um personagem mítico do Séc. IV d.C. que teria feito um pacto com o Diabo após muitos anos de serviço a Igreja Católica, devido a ter sido removido de seu cargo após a eleição de um novo bispo para cidade de Adana. O Diabo teria tentado Teófilo com pensamentos depressivos e criminosos, o que o levou a pedir ajuda de um feiticeiro judeu, através do qual ele conheceu o próprio Diabo. Como Fausto posteriormente, Teófilo arrependeu-se amargamente; após conquistar tudo o que queria se viu frente à realidade de ter perdido a salvação de sua alma. Diferente de Fausto que assinou seu pacto com sangue, Teófilo o selou com cera de abelha dentro de um anel mágico. É incrível a semelhança entre as histórias de Fausto, São Cipriano e Teófilo. Soldo: a ideia de pacto está conectada diretamente a aquisição de um espírito assistente. Um contrato mágico é feito entre as duas partes, o mago e o espírito. Sendo este um contrato mágico, de sua assinatura nasce o espírito do contrato que passa a atuar tanto na alma do mago como no veículo astral do espírito assistente. Nos Papiros Mágico Gregos (I.1-42), o mago deve pegar testemunhos mágicos (unhas e cabelos) e assentá-los no mesmo altar em que colocará a múmia do falcão sacrificado. Esse procedimento mágico é uma forma de unir magicamente a alma do mago ao espírito assistente morto, o paredoi. Esse procedimento mágico é o ancestral direto do pacto assinado que vemos nas lendas de Teófilo, Fausto e até São Cipriano, de certo modo. 

3. Fecundado na Alma do Mundo por séculos de projeções de magos, bruxos e feiticeiros pagãos e cristãos, São Cipriano tornou-se um espírito tutelar nos planos internos, capaz de ser conjurado a assistir um feiticeiro que pede seu auxílio. Como um espírito tutelar ou espírito patrono, São Cipriano tem sido assentado em santuários e templos de feitiçaria em várias partes do globo, principalmente na Península Ibérica, Escandinava e nas Américas.

4. Na Idade Média inúmeras versões de O Livro de São Cipriano circulavam na Europa, da Ibéria a Escandinávia. Por volta do Séc. XVI as primeiras feiticeiras condenadas ao exílio pelo Santo Ofício de Portugal aportavam no Brasil, trazendo com elas a feitiçaria cipriânica popular da Ibéria. Trocando conhecimentos acerca da Arte com escravos africanos, iniciou-se um entrecruzamento mágico-religioso entre a magia crioula africana, a cura cabocla ameríndia e a magia cipriânica popular da Ibéria. Nas tradições brasileiras de magia, umbanda e quimbanda, nós podemos falar de uma linha de São Cipriano devido a influência de sua feitiçaria nos trabalhos do Pai Cipriano de Angola, um preto-velho-kimbanda, Exu Meia Noite, Exu Tranca-Ruas, Pombagira Rosa Caveira, Maria de Padilha e outros espíritos. Todos trabalhando na linha de Cipriano feiticeiro.

5. O mito de São Cipriano espelha a busca solitária e silenciosa de todo feiticeiro rumo a sua independência espiritual. Essa independência espiritual é o coroamento de sua iniciação magística.  Quando nós falamos sobre conexão espiritual com uma corrente ou tradição mágica, inevitavelmente falamos também de iniciação, ou pelo menos o que se entende por este termo, cada vez mais elástico com o passar do tempo. Essa conexão ocorre através de um espírito! Seja lá o que te ensinarem acerca da iniciação na feitiçaria, de rituais de iniciação a confirmações pelas mãos de sacerdotes, o fato é que quem confere a iniciação de verdade é o espírito. Feitiçaria se trata de incorporação mediúnica, tratos, pactos e alianças com espíritos, assentamentos de poder e sacrifícios. É o espírito tutelar do feiticeiro quem decide como será sua iniciação, não um sacerdote ou um professor. Perceba que quando falamos de feitiçaria, falamos do conhecimento e conversação com espíritos, não do contato com doutrinas.   Este ponto devo a reflexão do feiticeiro-kimbanda Youssef Ish'baq. Em conversa particular ele me disse:

Na esquerda mesmo a coisa é diferente; não tem isso de mestre. Você puxa a linha de espíritos e pede ao espírito-kimbanda para te iniciar e pronto. Os kimbandeiros antigos mesmo, trabalham em casa, sozinhos. Eles não abrem centros, isso é coisa jovem [i.e. moderna]. 

6. Como temos estudado no Curso de Filosofia Oculta, o arquétipo primordial do mago é um homem distante da sociedade, imerso no mundo dos espíritos.  A tradição moderna da magia caminha em uma direção oposta. O mago moderno não necessita se isolar, antes disso, ser um elemento ativo da sociedade. Essa quebra de protocolo tem sido ensinada como regra aos buscadores de hoje, negando uma das mais importantes lições da tradição da magia. O mago precisa ser só para desenvolver uma intimidade com os espíritos, os quais cerceiam sua atenção apenas para eles.

7. A conexão espiritual com a tradição cipriânica da magia ocorre por meio de seu gringori, o Espírito de O Livro de São Cipriano, conjurado como uma deidade tutelar para acompanhar o feiticeiro ensinando-lhe os segredos da Arte.


Na Antiguidade, quando eclodiu o mito de São Cipriano como uma borbulha do caldeirão fervilhante do entrecruzamento mágico-religioso da região do Mediterrâneo, o conceito de iniciação estava conectado a ideia de longa jornada, trabalho de esforço e preparo espiritual, o que incluía treinamento intelectual e prática nas principais áreas da Arte: magia natural, magia matemática, magia celeste etc. dentre muitas matérias.

Convém que o iniciado passe por todas as fases, que são: desejo, perseverança e domínio. A primeira pertence ao noviço, ou seja, o desejo de aprender. A segunda, ao iniciado, que precisa de perseverança para chegar ao fim. A terceira, ao mestre, que é o verdadeiro mago, pois atingiu o domínio absoluto da Arte.

Seguir o caminho de iniciação na tradição da magia se tratava de empreender uma longa e distante jornada na busca do conhecimento e domínio da Filosofia Oculta:

Se precisa de um estudo constante das coisas naturais para poder chegar por meio de sua investigação ao verdadeiro conhecimento do sobrenatural, que é o fim e o objeto das Artes Mágicas.

Dessa maneira, a fórmula geral da iniciação sempre teve como pano de fundo a iniciativa pessoal de busca e realização através do estudo e da continuidade de propósito. É o estudante que tem de produzir as condições adequadas para que ele se torne um mago:

A Magia, como todas as ciências, requer indubitavelmente condições muito especiais das pessoas que se dedicam aos seus estudos e conhecimento.

Na Antiguidade essa longa jornada era compreendida com o um extenso período de viagens onde o estudante aprendia com vários mestres, adentrando em sociedades secretas, sendo aceito em colegiados magísticos e sendo iniciado em cultos de mistérios. É dessa maneira que a carreira mágica, assim entendia-se, era construída.  Na tradição da magia grande valor é conferido aquele que buscou conhecimento e foi verdadeiramente iniciado em tradições e cultos de mistérios. Na iniciação um processo verdadeiramente mágico (e psiúrgico) ocorre, pois o veículo pneumático da alma dos iniciados é completamente saturado com os códigos de luz ou virtudes da corrente mágica a qual está sendo iniciado. Essa impregnação do veículo pneumático com as virtudes da tradição deixa uma marca indelével na alma, uma chancela mágica da iniciação.

Mas ao se aproximar da tradição cipriânica através do Espírito de O Livro de São Cipriano, o mago se encontrará na mesma encruzilhada dos magos da Antiguidade e Idade Média. Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média até os dias de hoje notamos um padrão na tradição mágica ocidental: trata-se de uma tradição desenvolvida através de manuais que contêm os segredos da Arte. Estes manuais na Antiguidade eram difundidos em papiros secretamente. Da mesma maneira, na Idade Média estes manuais eram difundidos em pergaminhos, também secretamente. Possuir papiros ou pergaminhos de magia poderia levar a condenação por morte. Dessa maneira, os magos têm se debruçado sobre estes manuais, despertando seu espírito e perpetuando a tradição secretamente, em silêncio. Por conta disso, os arcanos da Arte dos Magi têm permanecido ocultos por longos períodos. Magos aqui e ali no curso do tempo os têm encontrado, estudado e praticado, colhendo experiência magística de seus experimentos solitários ou coletivos, a qual se perpetua no tempo quando zelosamente preservada. Estes magos morrem e novamente os arcanos se ocultam, até que outros magos, às vezes em um distante período do tempo, os reencontram nos manuais de magia. Nos dias de hoje passamos por um reavivamento na tradição da magia e os arcanos da Arte têm sido disseminados pelo encontro do passado (os gimórios e papiros que hoje temos a disposição) com a tecnologia do presente. No futuro, não é possível prever quando e nem onde, um novo ocultamento ocorrerá e os arcanos da se manterão nas sombras para um novo despertar. É assim que a tradição mágica ocidental tem se desenvolvido no curso da história, em ondas de descobertas, reavivamentos e ocultamentos.

O verdadeiro mago deverá ser portanto estudioso discreto e constante em seus trabalhos.

Dois requerimentos fundamentais da Arte dos Magi são o silêncio e o segredo.

De nenhum modo se deve revelar, a alguém que não seja adepto dessas ciências, as coisas sobrenaturais que se chegar a conhecer.

Esses dois requerimentos na Antiguidade eram poderosos talismãs, mas o efeito colateral dessas duas medicinas produzia o espírito da solidão. O mago sempre foi um homem solitário, isolado, imerso na ciência e arte da magia.

A pessoa que quiser fazer os experimentos da arte mágica deverá estar completamente sozinha, a menos que a acompanhe pessoa iniciada na Arte e que tenha feito pacto com algum espírito.

Ao seu lado, um mago trazia consigo um aprendiz. Até aqui, explorando a ideia de iniciação, nós temos todos os elementos da narrativa faustina presente nas edições de O Livro de São Cipriano:  

O jovem aprendiz que se interessa pela filosofia oculta e inicia sua jornada de aprendizado através de estudo, viagens e iniciações.

O encontro com um tutor espiritual que lhe auxiliará a desenvolver suas capacidades para se conectar com espíritos.

O conhecimento e a conversação com um espírito tutelar para obter dele conhecimento oculto acerca da Arte por meio de um pacto.

Acompanhar um aprendiz que já tenha passado ou esteja em transição das etapas 1 e 2 acima.


O Reavivamento da Tradição Cipriânica da Magia


Por muitos anos São Cipriano manteve-se na espreita, oculto nas sombras como um exu, no entanto exercendo uma função importante na Tradição Hermética de Mistérios. Como um símbolo da tradição, seu olhar revela  o âmago da própria tradição: seu mito traduz a busca de todo mago que é obter um espírito assistente, caracterizado modernamente como Sagrado Anjo Guardião, e aprender com ele os segredos e arcanos da magia. E assim como exu é incompreendido, sua função e atuação espiritual, também São Cipriano tem sido incompreendido por magos, bruxos e feiticeiros. Por descaso ou pura ignorância, eles têm deixado de lado este grande ícone da tradição ocidental de mistérios. No entanto, hoje existe um profundo movimento encabeçado por ocultas-estudiosos e magos praticantes que busca reavivar São Cipriano, sua magia e símbolo, revelando seu prístino relicário.

Os principais expoentes deste reavivamento cipriânico são: Felix Castro Vicente, José Leitão, Jake Stratton-Kent,  Nicholaj de Mattos Frisvold, Humberto Maggi e outros. Recentemente Humberto Maggi publicou uma ontologia de textos de São Cipriano no seu Thesaurus Magicus (Vol. II), o que de mais completo temos em português. Estes autores têm demonstrado como São Cipriano trata-se de um rico símbolo-espelho da tradição da magia, presente na magia da Antiguidade, grimórios medievais, magia popular europeia e os cultos da umbanda e quimbanda. Nicholaj de Mattos Frisvold em  St. Cyprian & the Sorcerous Transmutation (Headen Press, 2013) tece uma linha de apresentação que demonstra como São Cipriano foi diluído ou transmutado nos mistérios de Exu Meia Noite. Ele diz:

[...] A metamorfose de São Cipriano se fundindo a Exu Meia Noite é o pulso da Quimbanda no trabalho com São Cipriano como tem trabalhado com muitos outros espíritos, conhecidos e desconhecidos, realizando a transmutação. Nós podemos falar de uma linha de São Cipriano na Quimbanda se nós o considerarmos como uma inspiração para uma variedade de mestres na artes da cura e da mironga.

Todos estes autores têm demonstrado como São Cipriano aportou em terras brasileiras junto as feiticeiras exiladas pelo Santo Ofício de Portugal. Ao chegarem elas se misturaram com escravos e estes, já haviam se misturado com nativos. Após a abolição da escravatura, os escravos libertos começaram a compartilhar conhecimento com outros europeus que, por sua vez, também traziam farto material sobre a magia popular europeia e sua demonologia. Podemos ver aí um caldo grosso de influências mágico-culturais que se formou no período colonial e que introduziu a magia cipriânica aos negros praticantes de cabala crioula.

Dessa maneira é preciso esclarecer que não é São Cipriano que está dentro da quimbanda ou da umbanda, mas sua influência espiritual na praxis da feitiçaria, algo que vemos com bastante clareza nos trabalhos de quimbanda. São Cipriano, seu símbolo e relicário mágico, tem tentáculos que se espalham por toda tradição ocidental de mistérios.


Nicholaj de Mattos Frisvold continua:

Este legado vive em seus epitáfios, São Cipriano de Angola, que o revela como o patrono da Quimbanda. Deste modo ele assume a forma de um preto-velho, um negro idoso, mas sua sabedoria é de Quimbanda.

O livro O Espírito de São Cipriano propõe uma autêntica magia cipriânica diabólica. Na demonologia de São Cipriano os 72 espíritos do Lemegeton não são criaturas infernais, mas espíritos celestes. A magia cipriânica diabólica lida com espíritos que São Cipriano classifica como inferiores, criaturas infernais regidas por Lúcifer, Belzebu e Ashtaroth. Será apresentado um ritual, o Estrela da Calunga, onde as legiões de demônios e mortos se perfilam ao redor do Cruzeiro das Almas. Esta magia cipriânica diabólica construirá, como você perceberá, uma ponte com a quimbanda luciferiana.


O Relicário da Tradição Oculta Ocidental


Uma indagação enviada por um dos assinantes do site Filosofia Oculta acerca do livro O Espírito de São Cipriano, me questiona o porquê da ênfase em São Cipriânico ou na tradição cipriânica da magia. No seu questionamento ele trata São Cipriano ou sua feitiçaria como fantasiosa e sem uso prático ao magista moderno.

De fato, quem lê O Livro de São Cipriano em qualquer uma de suas edições, principalmente um ocultista letrado e acostumado a autores difíceis no campo do ocultismo, logo se sente decepcionado, para não dizer completamente desolado. Assim cabe esclarecer que O Livro de São Cipriano é destinado a pessoas simples cujas demandas estão longe de questões filosóficas refinadas ou até mesmo o misticismo da catedral interior. Como diz José Leitão em sua edição de O Tesouro do Feiticeiro (Headen Press, 2014), a magia de São Cipriano é visceral   e para  praticá-la é preciso ter estômago.

Dito isso, cabe dizer que São Cipriano é um relicário da tradição oculta ocidental. Nele a magia da Antiguidade (ou dos Papiros Mágicos Gregos), a teurgia de Jâmblico e Proclo, a cabala crioula da África Setentrional, a demonologia, demonolatria e tradição dos grimórios medievais (o que inclui a tradição salomônica), a magia de cura ameríndia e o catolicismo popular se encontram, tradições jogadas dentro de um grande caldeirão mágico fervilhante. É desse caldo grosso que é feita a feitiçaria cipriânica. Compreendê-la, portanto, nos pede o entendimento do desenvolvimento e desdobramento destas tradições no seu encontro, mistura e transmutação. A umbanda, por exemplo, é uma tradição mágica brasileira que foi sistematizada nas três primeiras décadas do Séc. XX como um desenvolvimento de um movimento anterior conhecido como macumba. E é interessante notar como que o modus operandi da umbanda resgata toda influência espiritual que fundou o Brasil: a mistura étnico-religiosa dos negros-escravos africanos (o trabalho com os sábios preto-velhos), os índios (o trabalho de cura com os caboclos) e a iconografia diabólica européia (o trabalho com os exus). Posteriormente o trabalho com os exus tomaria rumos independentes que eclodiram nas diversas choupanas de quimbanda.

São Cipriano veio ao Brasil por meio de feiticeiras exiladas pelo Santo Ofício de Portugal que, ao chegarem em nossas terras, logo associaram sua feitiçaria aquela dos escravos. Após a abolição da escravatura, estes ex-escravos travaram uma profunda confluência com europeus que, por sua vez, trouxeram muito de sua magia popular. Isso tudo somado a influência do espiritismo francês do fim do Séc. XIX e início do Séc. XX, forma uma intricada tradição espiritual genuinamente brasileira. Não é possível determinar, por exemplo, a extensão da influência dos sigilos mágicos dos grimórios medievais nos pontos riscados utilizados na umbanda e quimbanda. Esse estudo, como podemos ver, nos leva em uma direção completamente oposta as interpretações da magia moderna e nos coloca na senda da gnose do diabo. Então quando imergimos na feitiçaria cipriânica, é essa gnose que encontraremos.  

Em uma das vídeo-aulas do Curso de Filosofia Oculta eu mencionei que ao estudarmos a magia hermética na Antiguidade e Idade Média, é impossível não nos encontrarmos com São Cipriano, pois ele representa, resgata e engloba toda essa tradição descrita nos parágrafos anteriores. Desdenhar São Cipriano por imaturidade, inocência ou ignorância é fechar os olhos para um dos maiores símbolos da tradição da magia. Símbolos não velam, mas explicam a tradição. Dessa maneira, destrinchar São Cipriano, um símbolo vivo da tradição da magia, é destrinchar a própria tradição e se encontrar com suas raízes. Esse exemplo que segue, da indagação me enviada, demonstra:

Pois é, isso é criticado pela maioria dos magos. A possessão daimônica já era amplamente conhecida na Antiguidade com críticas e elogios. Os teurgos neoplatônicos e a própria religião greco-romana reconhecia o fenômeno como inspiração divina. Por exemplo, em oráculos como àquele de Delfos, acreditava-se que as sacerdotisas estavam divinamente inspiradas pelos deuses, quer dizer, literalmente possuídas. Esse é um dos maiores arcanos da tradição da magia. A possessão mediúnica é um meio efetivo de se comunicar com os espíritos, daimones ou deuses. Certa vez um ocultista me disse: Fernando, você nunca ouviu falar de incorporação de um deus! Como assim? Esse é um dos elementos mais antigos da tradição: a possessão divina. Mas as concepções modernas acerca da invocação vão em um caminho distinto; se por um lado é admitido que o mago traz para dentro de si as virtudes divinas de uma deidade ao invocá-la, por outro lado não se admite que a deidade possua completamente os veículos espirituais e físico do mago. Quando viramos as costas a essas concepções modernas e mergulhamos profundamente neste caldo grosso da feitiçaria torna-se inevitável o encontro com a magia da noite, do sangue e do fogo que tanto sintetiza a herança da magia na Antiguidade e Idade Média e que faz vasto uso dessa tecnologia da tradição mágica ocidental.

É por isto que neste livro, O Espírito de São Cipriano, é oferecido a oportunidade de fazer do Santo o patrono espiritual do trabalho de feitiçaria. Com ele vem criaturas da noite, arautos das sombras. Em um dos capítulos eu menciono que você poderá escolher entre a feitiçaria cipriânica católico-popular e a feitiçaria cipriânica pagã. Esta, não se engane, fecha as portas para os éteres de luz e perfeição e opera apenas com as criaturas espirituais sub-lunares. Bastam apenas três tapas no chão e as portas para o alto se fecham, começam os batuques e batuleios do inferninho. 


Sintonização com o Espírito de São Cipriano


A espinha dorsal desse opúsculo de meditação, O Espírito de São Cipriano, é o tema mais importante da Arte dos Magi, quer dizer, a obtenção do paredros, o espírito assistente e arcano primitivo do moderno Sagrado Anjo Guardião.

Diferente da interpretação moderna do Sagrado Anjo Guardião que nasceu de ideias neoplatônicas-cristãs, o espírito assistente está presente nas arcaicas culturas da magia desde o xamanismo paleolítico. Por este termo, xamanismo paleolítico, entenda uma prática de feitiçaria que antecede a formação de mitos e os rituais, festivais e celebrações a eles associados. Em um tempo onde o Sol não tinha nome ou mesmo qualquer construção cultural e mítica sobre ele, os feiticeiros trabalhavam com sua força bruta; as diversas mitologias e sistematizações espirituais acerca do Sol e outros astros e forças da natureza servem apenas para categorizar e codificar essas forças brutas da natureza, quer dizer, seus espíritos, em estruturas palatáveis a assimilação e, portanto, mais fáceis de serem trabalhadas. Bem, muito antes dessa formação de sistemas e estruturas, o feiticeiro já partilhava o conhecimento arcano da natureza com os espíritos ao seu redor.

Em O Espírito de São Cipriano instruções precisas, baseadas na tradição mágica cipriânica, são dadas na intenção de se construir um assentamento mágico para presença de São Cipriano. Em um primeiro momento é proposto uma aproximação ou sintonização com o Santo. Para tal a proposta é a construção de uma cripta cipriânica com um altar psiúrgico simples onde orações ao Santo, principalmente as dele, são  executadas. Em um segundo momento é proposto a construção de um assentamento mágico de poder, o que requer uma acurada ciência mágica, exposta em detalhes no livro. A construção desse assentamento mágico criará na cripta cipriânica uma zona de poder definitiva onde o contato com o Santo será efetivo.

E poderemos dizer, sem medo de errar, que a construção desse assentamento na cripta cipriânica fará dela a própria Cova de São Cipriano, uma zona de poder onde o Diabo se apresenta para ensinar a Ars Nigra a seus estudantes.  

O contato com São Cipriano requererá o aperfeiçoamento da invocação mágica. Uma invocação mágica bem sucedida, assim veremos no livro, trata-se de uma possessão mediúnica onde a consciência (ego) do mago é completamente solapada e apartada do processo e São Cipriano (ou qualquer deidade convocada) assume completamente os veículos espirituais e físico do mago. E esse é um dos temas fundamentais do livro, pois a tradição moderna da magia  deturpou completamente o verdadeiro sentido e significado da palavra invocação. A invocação mais poderosa de todas, assim já ensinavam os teurgos neoplatôpnicos, trata-se da possessão daimônica, típica das choupanas de cabala crioula. E isso abre um vasto universo pela frente dentro da tradição cipriânica, trazendo elementos novos a confluência de elementos antigos, estabelecendo novas técnicas e abordagens mágicas. Falando sobre o tema em sua edição de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro (Headen Press, 2014), José Leitão diz:

Este terceiro período [da tradição cipriânica] não pode ser separado da efervescência mágico-religiosa da atmosfera Sul-americana. Foi ali, num grande cadinho cultural de sangue branco, negro e nativo-americano que as práticas da magia cipriânica foram revitalizadas e desenvolvidas para além dos princípios da prática ibérica, afastando-se dos livros originais. Essa nova e impressionante onda de práticas parece estar fazendo seu caminho de retorno a Ibéria e Europa, seja através da imigração ou pelo incrível prestígio e reconhecimento das técnicas mágico-religiosas Sul-americanas, colorindo e revitalizando antigos cultos cipriânicos. Em teoria, devido a seu caráter altamente pragmático, estas novas práticas revitalizadas poderão no futuro uma vez mais cristalizar uma nova ortodoxia cipriânica. Contudo, devido à possibilidade de se estabelecer contato mediúnico com São Cipriano, um constante fluxo de material novo e atualizado é estabelecido, fazendo dele uma corrente viva, como uma vez o foi em um distante passado da Ibéria 

Meu envolvimento com a tradição cipriânica ocorreu, assim relato com detalhes no livro, em três ondas. Na primeira delas através de uma feiticeira cipriânica ainda na minha juventude, quando fui apresentado ao Diabo em uma cerimônia de iniciação. A segunda onda ocorreu enquanto estive em viagem a comunidades ribeirinhas ayahuasqueiras, onde pude ver São Cipriano como unha e carne a tradição mágico-católica popular. A terceira e mais recente, quem sabe a mais importante e magicamente gratificante, com as expressões cipriânicas na quimbanda com o Sr. Exu Meia Noite, o Sr. Exu Tranca Rua das Almas, a Sra. Pombagira Rosa Caveira e Maria de Padilha. Essa terceira onda mudou completamente minhas perspectivas acerca da Arte dos Magi e isso eu tento transmitir também com detalhes.

Compreender São Cipriano exige de nós o entendimento da evolução da tradição mágico-popular ibérica e sua transposição para terras brasileiras com a chegada de São Cipriano no Brasil através de feiticeiras exiladas por meio da Inquisição em Portugal. O Livro de São Cipriano, em acordo a evolução e transmutação que sofreu ao longo dos anos, é uma metamorfose. Captá-la em sua profundidade exige um envolvimento total com o Diabo do livro ou o próprio Espírito de São Cipriano. Falando sobre o livro  José Leitão finalmente acrescenta:

Deve ser entendido que este [O Livro de São Cipriano], diferente de outros grimórios, não é uma relíquia de um distante passado mágico, ele não é um livro antigo e morto que espera para ver a luz novamente através de um devotado magista. O Livro de São Cipriano não se trata de um livro; ele não está localizado no tempo ou no espaço. Como qualquer culto, ordem ou religião viva e ativa, trata-se de um contínuo, uma corrente. Ele muda seu conteúdo porque está vivo, porque é praticado e vivido em vários contextos culturais, sociais e geográficos [...] [e] ele constantemente responde as necessidades de seus leitores. Da costa da Catalunha a Algarve, da Ibéria rural ao nordeste do Brasil, dos terreiros de Quimbanda e finalmente até as cidades, ele é em todo o sentido do termo um livro de magia popular, um livro [de magia] para o povo. [...] Ele vive a margem da sociedade, nas sombras, no limiar entre religiosidade e heresia, virtude e vício. Como o próprio Santo, ele vive naquela linha onde Deus e o Diabo se encontram. [...] Mas como um contínuo, um ponto parece ser constante em suas edições, todas trazem a narrativa faustina. 


O Espírito de São Cipriano


O livro O Espírito de São Cipriano é um estudo do Curso de Filosofia Oculta (Módulo 1: Magia na Antiguidade). Ao explorarmos a Tradição Hermética de Mistérios na Antiguidade tardia, é inevitável o encontro com São Cipriano. Como demonstramos neste estudo, São Cipriano representa o arquétipo legítimo do mago hermético da Antiguidade e Idade Média. Ao avaliarmos o mito ou a lenda de São Cipriano através dos elementos que a constroem, percebemos que se tratam de temas legítimos da tradição da magia e Arte dos Magi.

O livro é uma introdução a tradição cipriânica da magia, que formou-se dentro de um caldeirão de influências mágicas que se arrastam no tempo desde a Antiguidade: é possível vê-lo na feitiçaria ibérica e escandinava, nas quermesses do catolicismo popular, no catimbó nordestino, na umbanda e na quimbanda. Através das edições de O Livro de São Cipriano e os estudos que autores modernos como Jake Stratton-Kent, Don Felix Castro Vicente, Nicholaj de Mattos Frisvold, José Leitão, Humberto Maggi, Frater Acher e outros têm contribuído, é possível rastrear as influências que formaram a tradição cipriânica desde a magia copta da Antiguidade. A própria ideia de São Cipriano como santo e feiticeiro transmutou-se no tempo aparecendo de variadas formas em cultos distintos, desde a magia popular europeia as tradições crioulas miscigenadas no caldeirão religioso do Brasil.

No livro São Cipriano trata-se de uma alma deificada que não encarnou no reino da geração, mas uma entidade gerada no útero da Alma do Mundo a partir de séculos de construção mítica tendo como fonte elementos genuinamente mágico-espirituais. Existem vias de estudo, como a linha de raciocínio de Frater Acher em Cyprian of Antioch: A Mage of Many Faces (Quareia, 2017) que buscam elementos reais da existência de São Cipriano, no entanto, ele mesmo concorda que não é possível saber se São Cipriano caminhou entre os vivos ou não. Então a construção da ideia central do livro é a partir da experiência pessoal, concordando que tanto São Cipriano quanto a egrégora que formou-se ao seu redor são projeções que fecundaram a Alma do Mundo, produzindo um espírito deificado que atende feiticeiros e religiosos espalhados pelo globo.

A espinha dorsal do livro é o tema mais importante da tradição da magia e Arte dos Magi: o espírito assistente ou deidade tutelar, modernamente conhecido como Sagrado Anjo Guardião. Essa ideia moderna do Sagrado Anjo guardião é construída a partir de fontes cristãs neoplatônicas, no entanto, trata-se da evolução de um conhecimento arcano que existe desde a gênese da tradição da magia no xamanismo paleolítico, a conjuração e apropriação de um espírito patrono. No curso da história, este conhecimento arcano apareceu de variadas formas no tempo: na magia greco-egípcia dos papiros ele é o paredros; na teurgia clássica neoplatônica, o daimon pessoal; nos mitos de Fausto ele foi seu diabo pessoal, Mefistófeles; nos mitos de São Cipriano, o próprio Diabo; na feitiçaria medieval, o espírito familiar; na magia de Abramelin, o Sagrado Anjo Guardião; na tradição católica, o Anjo da Guarda ou Anjo Apostólico; no xamanismo, o Animal de Poder; nos feitos de Salomão, ele foi o daimon Ornias etc. Através do tempo os magos têm conjurado espíritos familiares para se capacitarem a produzir milagres (taumaturgia) e obter conhecimento oculto. Neste livro, São Cipriano é conjurado como uma deidade tutelar para auxiliar os feiticeiros.

Na magia dos papiros, ao paredros é conferido todo o poder. O poder da deidade tutelar se estende a sua natureza. As deidades tutelares  de um feiticeiro podem ser várias e de vários tipos. Entre as mais poderosas estão os ancestrais (mortos)  - e estes também podem ser de vários tipos e para cada um há uma maneira distinta de trabalho - ou animais deificados. Nos Papiros Mágicos Gregos o paredros mais poderoso parece ser um falcão morto cerimonialmente. A atuação de um espírito não é distinta de sua natureza em vida. Como o mago hermético da Antiguidade almejava que sua alma fosse liberta das catacumbas do submundo, um falcão que alcança os éteres superiores, morada dos deuses e das virtudes celestiais, era apropriado para levar sua alma até estes planos de luz e perfeição. Como podemos ver, a versão moderna desta entidade espiritual acolhe todas as ideias fundamentais de seus protótipos: uma criatura capaz de salvar a alma conduzindo-a no caminho de Deus, revelando-lhe seu destino derradeiro, atuando como guia e guardião. O livro propõe a eleição de São Cipriano como deidade tutelar para auxiliar o mago em sua Arte.


NOTAS:


[1] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.

[2] São Cipriano em Qualidades Essenciais para Professar as Artes Mágicas em Thesaurus Magicus, Vol. II. Humberto Maggi, 2016, Clube de Autores.

[3] Ibidem

[4] Ibidem.

[5] São Cipriano, O Livro de São Cipriano: Tratado Completo da Verdadeira Magia, Pallas, 2017.