domingo, 16 de janeiro de 2022

Pombagira

Quando falamos de Quimbanda dialogamos com um riquíssimo imaginário sincrético fortemente conectado as heranças culturais e ancestrais africanas, europeias e ameríndias. As representações simbólicas da Quimbanda, em especial sua iconografia, se conectam a múltiplas míticas religiosas de procedências distintas que se encontraram e se miscigenaram no Brasil. Por trás das representações simbólicas da Quimbanda existe um pano de fundo, um repertório mítico multicultural que se condensa de forma variada na iconografia, principalmente a da Pombagira. Na verdade a Pombagira é tudo na Quimbanda, mas poucos se atêm a esse arcano de mistério.

A força mágica de Pombagira na Quimbanda concentra a potencia sexual de Èṣú òrìṣà e de todos os òrìṣà femininos. Mas a iconografia de Pombagira está associada a um antigo imaginário grego, o da megera, arquétipo conectado ao uso libidinoso da força sexual, a paixão e a feitiçaria nos mitos de deusas como Hécate e Afrodite. Esse corpo mítico grego na cristandade foi corrompido e na Idade Média foi associado às bruxas e ao culto ao Diabo. No imaginário europeu essa pecha acabou por se manifestar em dois arquétipos que se concentram nas formas míticas de Pombagira no Brasil: a prostituta e a feiticeira. A imagem mais concreta disso se materializa em Pombagira Maria de Padilha: primeiro, celebrada personagem das cortes espanholas; segundo, transformada em uma diáboa (espírito tutelar diabólico e libidinoso) na feitiçaria popular e literatura ibérica; terceiro, transportada até o Brasil nas páginas de O Livro de São Cipriano, tornou-se não apenas uma Pombagira, mas a própria guardiã da Quimbanda.


A Pombagira é uma Diaba

Quando alguém me pergunta o que é a Quimbanda, eu respondo que é uma cultura, porque não há como falar de Quimbanda sem falar de miscigenação cultural e convulsão social; o fim da escravidão, o fenômeno da mestiçagem, a imigração, urbanização, industrialização, a formação de classes sociais, aculturação e hibridização religiosa são convulsões sociais que jazem subjacentes à formação do Culto de Exu, a Quimbanda no Brasil.

Vez ou outra eu trago aqui o tema sobre o arquétipo da Pombagira, além de colocar bastante ênfase na influência da feitiçaria ibérico-cipriânica-faustina na Quimbanda. Estou escrevendo dois textos ainda em curso que falam sobre este tema: A Tradição de Quimbanda e A Influência da Feitiçaria Ibérica na Quimbanda. 

A Pombagira como deidade brasileira (não existe Pombagira em nenhuma cultura além da nossa), sua iconografia e arquétipo, são heranças da influência que as feiticeiras ibéricas e O Livro de São Cipriano tiveram sobre a conformação do Culto de Exu no Brasil. As feiticeiras ibéricas convocavam um espírito assistente, uma forma de diabrete feminina, que as assistiam prontamente e que elas nomeavam como diáboa. No Brasil a diáboa ibérica mais antiga que sobreviveu na Quimbanda é Maria de Padilha, já presente nas edições de O Livro de São Cipriano. Existem escritores que insistem que a Quimbanda não possui influência cipriânica. Toda Quimbanda é cipriânica! Toda Quimbanda tem Maria de Padilha e ela acabou por se tornar a guardiã da tradição!

A diáboa ibérica proveu as características femininas que adornaram as forças masculinas do Èṣú òrìṣà, do vodum Legba e do nkisi Mpambunijila para materializar a deidade brasileira Pombagira.

Mas porque as Pombagiras têm essa forma diabólica? A iconografia diabólica da Quimbanda é muito mais profunda do que se imagina e suas raízes reais estão i. na demonização de Èṣú òrìṣà e ii. na demonização dos nkisi e dos vodum iniciada ainda na África e herdada por nós através da diáspora. Essa demonização conformou a mítica diabólica (comportamental e iconográfica) de Pombagira que, hibridizada com as diáboas, diabretes femininas da feitiçaria ibérica, deu nascimento a forma da diaba que caracteriza a Pombagira na Quimbanda. A influência da feitiçaria cipriânica-faustina na Quimbanda foi fundamental no desenvolvimento de um cosmos diabólico, por conta da valorização da irreverência e liberdade que estes espíritos demonstram ter frente as crendices, dogmas e moral cristã.

É muito mais profunda porque envolve questões comportamentais e sociais que distanciam e alargam o abismo entre a Umbanda cristianizada e a Quimbanda satanizada. Pombagira é mulher livre, mulher que não possui dono ou rédeas. O significado corrente de mulher livre é definido pelo substantivo feminino prostituta, um ofício sacerdotal em um passado distante na história e uma profissão contracultura no presente. Isso distancia tanto o arquétipo quanto a iconografia de Pombagira, por exemplo, da Preta-Velha, que simboliza e valoriza as relações familiares, os bons costumes, o respeito aos dogmas e a moral cristã. A Preta-Velha simboliza a mulher como mãe, como avó; a Pombagira simboliza a mulher puta, a mulher de ninguém, a amante. Os diversos pontos cantados desses espíritos ilustram isso de maneira muito clara.

Mas muito embora esse seja o arquétipo de Pombagira no imaginário popular, estes espíritos não são limitados por essa conformação imaginária, se manifestando muitas vezes para muito além dela. As Pombagiras são diabas, espíritos livres e irreverentes que cultuam o Espírito da Transgressão, o Diabo!


NOTAS:


[1] Sobre a iconografia da Quimbanda veja Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura (Aeroplano, 2012). Veja também Humberto Maggi, Queen of Sevem Crossroads (Hadean Press, 2020). Este volume de Humberto Maggi será publicado esse ano pela Editora Via Sestra sob o título de As Rainhas da Quimbanda.

[2] Essa semana me foi perguntado no Instagram se havia na Quimbanda qualquer noção de kuṇḍalinī. Respondi que não! Diferente da Umbanda, a Quimbanda não buscou preencher a falta de mistérios – proveniente do embranquecimento da magia dos negros – buscando no hinduísmo elementos que pudessem complementar o currículo de estudos e conhecimentos umbandistas. A Quimbanda não traz nenhuma noção do tantrismo ou do vêda. Mas há mistérios na Quimbanda de mesma equivalência. Na tradição oral da Quimbanda recebemos a gnose de que Pombagira é uma força ígnea serpentina, uma ideia muito próxima da noção de kuṇḍalinī nos tantras.

[3] Há quem prefira o termo entidade, se tratando do espírito de um morto. Eu uso o termo deidade como referência a uma criatura espiritual do imaginário brasileiro.

[4] No cosmos da Umbanda não mais, porque os intelectuais umbandistas têm desde a década de 1990 adicionado mais uma camada de brancura em Exu e Pombagira, retirando-lhes a pecha de diabos para fazer deles guardiões. Então vemos as atuais imagens de Exus e Pombagiras na Umbanda sem chifres ou pele vermelha. Mas no cosmos da Quimbanda Exus e Pombagiras permanecem diabos.