domingo, 16 de janeiro de 2022

Quimbanda Nàgô

A Quimbanda é uma tradição de feitiçaria brasileira nascida a partir do sangue derramado em nossas terras de antigos guerreiros e feiticeiros africanos, pajés e caçadores ameríndios, criminosos e bruxas ibéricas julgadas e exiladas pelo Santo Ofício de Portugal. O espírito do kimbanda nasceu desse entroncamento de linhas ancestrais africanas, ameríndias e europeias nas profundezas escuras das matas brasileiras. Os primeiros tátas, antigos espíritos ancestrais fundadores da Quimbanda, os primeiros Exus, foram heróis do Quilombo e dos malês, índios na mata e escravos da senzala que se ergueram em revolta contra os opressores cristãos, colonizadores escravagistas. É dessa luta e resistência, é desse entrecruzamento ancestral de poder, que nasce o Espírito da Quimbanda!

A gênese primitiva do Culto de Exu (que viria se tornar a Quimbanda no Séc. XIX) no seu primeiro momento (período que se estende do Séc. XVI ao Séc. XIX, desde os primeiros Calundus baianos até a Macumba carioca e paulista) ocorreu a partir de um  intricado sincretismo entre as culturas banto (ngangas e tátas) e nàgô-yorùbá (Èṣú òrìṣà) da África, a cultura tupíguaraní (pajés e encantados) e a feitiçaria ibérica (tradição cipriânica-faustina).

A Quimbanda é filha, portanto, de uma herança cultural miscigenada que se manifestou nesse primeiro momento na forma de variados cultos ao longo do tempo, tentativas diversas de resistência e resgate cultural que aglomeravam elementos multiculturais como os Calundus baianos e seus derivados diretos, os terreiros de Candomblé, a Cabula que concentrava muito saber da cultura e religião banto e sua derivada direta, a Macumba do Rio de Janeiro e São Paulo, que agregou sabedoria e fundamentos banto e nàgô-yorùbá.

Esses movimentos espirituais diversos que se manifestaram ao longo desse primeiro momento acompanharam o desenvolvimento cultural brasileiro, suas diversas convulsões sociais, a luta de classes e a transição de um sistema econômico agrícola para um sistema industrial. Foi assim que os Calundus das matas se transformaram nos Candomblés do asfalto; foi assim que a Cabula das matas se transformou na Macumba das favelas e morros do Rio de Janeiro e São Paulo.

Em meados do Séc. XIX inicia-se o segundo momento do Culto de Exu no Brasil quando nasce a Quimbanda, derivada urbana direta da Macumba (e sua irmã embranquecida, a Umbanda). Diferente de sua irmã, a Umbanda, que caiu seduzida pelos encantos eurocentristas e escravocratas do regime cultural vigente e fascinada pela religião e dogma cristãos, a Quimbanda resistiu e a partir de meados do Séc. XIX começou a estruturar-se como legítima tradição de feitiçaria brasileira, preservando as práticas animistas, a cosmovisão fetichista, o comportamento insurgente e tribal dos negros e escravos intocados nas profundezas da mata escura em um culto a ancestrais (espíritos de mortos) divinizados, um sistema necromântico de feitiçaria nascido das entranhas de nossa terra.

Os Exus e as Pombagiras da Quimbanda são ancestrais espirituais, espíritos tutelares de um sistema brasileiro de feitiçaria que converge os ngangas e tátas da religião dos bantos e os fundamentos de Èṣú òrìṣà da cultura nàgô-yorubá. A Gnose do Culto de Exu no Brasil depende inicialmente dessa convergência sincrética entre essas duas culturas mágico-espirituais da África, associando a isso a influência do xamanismo ameríndio e da feitiçaria ibérica cipriânica-faustina. Tratam-se de Mestres Espirituais que nos acompanham e nos auxiliam na jornada da encarnação, nos orientando e zelando pelos caminhos de nossa alma. A feitiçaria tradicional brasileira é uma arte que desperta o homem para seus tutores espirituais, os Exus e Pombagiras. Cultuá-los, render-lhes adoração através de oferendas e sacrifícios, cria alianças e pactos com eles. Em acordo as tradições de Cabalá Crioula (quer dizer, os arcanos e a sabedoria que vêm da África), o melhor meio de comunicação com os ancestrais é o sacrifício propiciatório. Imolar um animal cerimonialmente em honra as deidades da Quimbanda, os Exus e as Pombagiras, trata-se de uma ação teúrgica-sacerdotal que estreita a comunicação com eles. Desde tempos imemoriais, o sacrifício propiciatório tem sido uma ferramenta teúrgica para comunicação com o mundo espiritual.

Na teurgia de inúmeras culturas da Antiguidade clássica e tardia, a ciência do corte era o eixo do culto porque é do sacrifício propiciatório que todos os outros fenômenos teúrgicos rituais ocorrem: divinação através de oráculos, divinação por incorporação mediúnica, purificação, ascensão da alma, consagrações, imantações etc. O corte é o elemento fundamental que dá a ignição no processo teúrgico. Na feitiçaria tradicional brasileira não é diferente: a ciência do corte é o eixo da cerimônia mágica de Quimbanda. Dessa maneira, a prática da feitiçaria tradicional brasileira está em direta harmonia e conexão com a prática da teurgia (e goécia) como compreendida na Antiguidade clássica e tardia. Nas religiões pré-cristãs da Antiguidade o sacrifício de um animal consagrado e santificado para a teurgia tratava-se de um ofício sagrado. O sangue carrega a essência da vida que alimentava as deidades. Por meio do sangue sacrificial se estreitam os laços entre os homens e os deuses, entre as almas encarnadas e seus ancestrais; buscava-se através do sangue por proteção espiritual e cura das mazelas do corpo e da mente; o sangue do sacrifício era uma oferenda que glorificava as deidades, seus poderes, e através dele era esperado receber as virtudes e bênçãos dos deuses e ancestrais. Como o sangue está estreitamente conectado a fertilidade e continuidade da vida, o sacrifício era o ato teúrgico de se doar a vida para receber dos deuses a própria vida na forma de renovação espiritual em nossa jornada encarnados na matéria. Além disso, acreditava-se que o sacrifício libertava a alma do animal de seu cativeiro no reino da geração, o que garantia a continuação de sua existência no pós morte: todo animal sacrificado torna-se um espírito de alma deificada. Isso tem implicações profundas e um grande impacto na carreira magística/teúrgica, pois que estes espíritos podem auxiliar o feiticeiro em sua jornada. Este arcano iniciático do passado está presente, por exemplo, nos Papiros Mágicos Gregos. Na feitiçaria dos papiros um falcão é deificado através de um sacrifício teúrgico, responsável por torná-lo um paredros, um espírito assistente.

A ciência do corte ou sacrifício magístico-sacerdotal de deificação animal é a ferramenta fundamental de trabalho mágico da feitiçaria tradicional brasileira. Trata-se de uma ciência porque por meio dela o kimbanda purifica e deífica sua alma. O corte não apenas alimenta as entidades, mas também produz uma poderosa alquimia na alma do feiticeiro. O primeiro sacrifício realizado pelo feiticeiro é fundamental para iniciar este processo alquímico na alma, assim como aproximá-lo definitivamente de seu Exu Tutelar que o acompanhará em sua jornada espiritual. Isso está em direta sincronia com a teurgia universal de todos os tempos e culturas do passado.

Em meu trabalho procuro construir uma ponte entre a feitiçaria tradicional brasileira, o Culto de Exu (Quimbanda) e a feitiçaria e Cultos de Mistérios da Antiguidade, demonstrando como a teurgia e goécia universais caminham de mãos dadas pelas veredas que Exu trilha.  Minhas conclusões sobre a tradição são fruto de uma imersão espiritual de trinta anos de jornada em culturas magísticas diversas. O que me proponho é uma tarefa difícil: demonstrar que a Quimbanda é uma genuína tradição brasileira de feitiçaria, mistérios e iniciação de mão esquerda. Para isso eu construo uma ponte entre a feitiçaria da Quimbanda e seu sistema de iniciação com a goécia (feitiçaria) e teurgia da Antiguidade. A Quimbanda inclui ou herda a essência pura da goécia e teurgia presentes na Antiguidade clássica e tardia. As técnicas de feitiçaria e teurgia são universais, mudando pouca coisa de cultura para cultura. O corte e a oferenda que um kimbanda faz as deidades da tradição, os Exus e Pombagiras, o teurgo e sacerdote dos deuses também fazia na Antiguidade. Procedimentos semelhantes, objetivos idênticos: celebrar a potencia dos espíritos e clamar por sua intervenção entre nós, purificando e sutilizando a alma, e auxiliando nas demandas da vida secular. O corte ou sacrifício animal era o eixo da teurgia na Antiguidade e permaneceu o mesmo eixo da teurgia que existe dentro da Quimbanda. Essa abordagem pode ser impactante aos tradicionalistas; no entanto, sob um olhar mais profundo, sob uma atenção mais cuidadosa, a Quimbanda encerra todos os arcanos e mistérios da goécia e teurgia universais.