domingo, 16 de janeiro de 2022

Constrição dos Demônios

A palavra constrição vem do latim constringo que significa confinar ou agrilhoar. Quando for claro ao mago no curso da cerimônia magística que o demônio evocado fez-se presente, ele passará ao próximo passo: a constrição do demônio. O propósito da constrição é garantir que o demônio convocado será confinado no triângulo da arte, tábua de evocação, bola de cristal ou arca de bronze fora do círculo mágico. A arca de bronze também é conhecida como vaso de latão[1] na magia moderna. Originalmente na magia tradicional salomônica a arca de bronze ficava dentro do círculo mágico, não fora, sendo usada para demônios domesticados, quer dizer, que se tornaram espíritos familiares do mago operante. A arca de bronze é utilizada no lugar do triângulo da arte fora do círculo somente se o mago não possuir o triângulo no chão, mas é uma interpretação moderna.

Essas tecnologias mágicas não são idênticas como muitos autores de magia moderna têm ensinado, quer dizer, a fórmula mágica que alimenta a arca de bronze não é a mesma que alimenta o triângulo da arte, a bola de cristal ou a mesa de evocação. Por exemplo, a arca de bronze é usada para tornar os demônios cativos e familiares, já o triângulo da arte serve para colocar o demônio em prontidão, uma atitude interna apropriada a servir e trabalhar sob as ordens do mago. Tecnicamente a arca deve ser utilizada antes do triângulo da arte e isso é algo que você não encontrará nos livros modernos que tratam do assunto, mas está em perfeita harmonia com a visão da feitiçaria dos grimórios. O exemplo abaixo ilustrará de forma mais efetiva:

Imagine que a arca de bronze é um grande curral onde o fazendeiro (mago) coloca os cavalos bravos (daimones) do campo (corpo de Deus) que estavam livres na natureza. O fazendeiro vai lá no ambiente dos cavalos bravos, o campo, e os laça, levando-os a força para dentro do curral. Uma vez dentro do curral, os cavalos bravos são açoitados, amansados, adestrados, treinados e alimentados. Depois que o fazendeiro treinou, adestrou, alimentou e tornou submissos os cavalos do curral, então ele irá selecionar um dentre eles e levará para fora do curral, onde colocará nele uma cela e arreio (o triângulo da arte) e o montará, comando-o a seguir um curso adequado e apropriado aos fins do fazendeiro.

A arca de bronze, portanto, serve para tornar os daimones da natureza que não possuem pactos com os homens submissos ao mago que, através do triângulo da arte, os comandará a fazerem a sua vontade. E é por isso que essa goécia ensinada na magia moderna trata-se só de psicurgia e efetivamente não funciona, é a arte dos tolos. Antes de confinar um demônio no triângulo da arte, ele deve ser preparado dentro da arca de bronze. A arca de bronze é o equivalente a lâmpada para aprisionar os djinns dos mulçumanos ou o baú (caixa preta) da feitiçaria crioula.

O Lemegeton (ou Goécia) ao descrever o 13° demônio, Beleth cujo Anjo Aniquilador é Jazalel, explica o processo de constrição:

[O demônio será] poderoso e terrível em um primeiro momento e terá aparência furiosa enquanto o Exorcista segura com Coragem um bastão de avelã em sua mão, golpeando os quadrantes sul e leste, traçando um triângulo [fora do] Circulo, comandando-o e o obrigando [pelas conjurações e] pelo laço e cargo de espíritos que daqui por diante o acompanharão. E se ele não adentrar no triângulo, pelas ameaças, nem pelo recitar das ligações e os encantos, então se deve rendê-lo em obediência e obriga-lo a vir, através do que é dito no Exorcismo. Contudo deve recebê-lo gentilmente [...].[2]

Embora o método da evocação mágica na magia tradicional salomônica seja hostil, o mago é aconselhado a receber o demônio de forma cortês. Este é o momento em que o demônio é testado para que o mago tenha certeza de que a entidade que ali se apresentou se trata do demônio convocado e não qualquer entidade zombeteira como o ocorrido no caso citado na seção anterior. A averiguação é importante para que o mago siga seguro na operação e não frustrado como John Dee (1527-1608) que se viu enganado por demônios (daimones) que se diziam anjos.

Nos Papiros Mágicos Greco-Egípcios essa etapa da operação chama-se fórmula compulsiva e ela compreende uma miríade de procedimentos distintos usados na intenção de trazer o deus ou daimon a aparição. O procedimento que aparece primeiro nos papiros como técnica coerciva para trazer uma entidade a aparição visível é o corte, quer dizer, sacrifício das partes de um animal que possua equivalência com o daimon ou deus que terá sua imagem pintada no chão ou em um papiro.

Se ele não aparecer, sacrifique o cérebro de um cordeiro preto e no terceiro dia a unha da perna direita traseira, a mais próxima do tornozelo; no quarto [dia], o cérebro de uma íbis; no quinto, desenhe a figura [do carneiro] em um papiro com tinta de mirra, envolva ela em uma peça de roupa de alguém que tenha morrido violentamente e a atire no forno de uma casa de banho.

Alguns papiros trazem a instrução para não jogar no forno, pois é uma ação muito extrema, mas ao contrário, suspender sobre uma lamparina acesa. É possível ver aqui o antecedente medieval de se ameaçar o demônio colocando seu selo dentro de uma caixa de metal com enxofre e assafétida suspensa sobre um braseiro com carvão em chamas (ou em brasa), o que torturará o demônio através de sua calcinação. Como o selo do demônio deverá ser inscrito em um papiro – o que demonstra sua ancestralidade a partir dos Papiros Mágicos Greco-Egípcios – este procedimento pode durar horas.

Se o mago colocar o papiro sobre a lamparina acesa e mesmo assim o daimon ou espírito não aparecer, ele segue jogando no forno de uma casa de banho no quinto dia. Esse procedimento é acompanhado de invocações aos deuses para forçar a aparição do Sem Cabeça (traduzido modernamente como Não Nascido). Outra fórmula compulsiva que acompanha a anterior é a ameaça de que um grandioso deus punirá o daimon calcinado:

Se você me desobedecer e não for até ele [i.e. a pessoa que se deseja contatar ou enviar uma mensagem através da experiência onírica] eu direi ao grande deus e após ele lhe espancar, irá lhe cortar em pedaços e alimentará os cães sarnentos que moram entre os montes de esterco com eles. Por isso, ouça-me agora, imediatamente, rápido. Eu não o ameaçarei novamente! [4]

O grande deus referido neste papiro é Set. A ideia de que o mago pode comandar um deus maior a repreender ou torturar uma entidade menor aparece nos grimórios latinos onde os espíritos são punidos pelo demônio rei e regente dos quadrantes do espaço. Em todo caso, seja na Antiguidade ou Idade Média, o sucesso da operação depende do espírito convocado e agrilhoado reconhecer o poder do mago. No texto que enviei a vocês anteriormente, Um Elogio a Magia Tradicional Salomônica, eu disse que o que confere poder real sobre os demônios é a conduta moral do mago, replicando o que Agrippa já havia ensinado. Neste texto eu contei sobre a experiência que presenciei de um exorcismo mal sucedido onde o possuído disse: Você? Logo você que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre mim?

Como a experiência relatada na seção anterior, essa também aconteceu no Céu das Estrelas em maio de 2006. Tratou-se de um Trabalho de Jovens, quer dizer, um trabalho só para os jovens da igreja, sem a presença dos dois comandantes, Fernando e Rodolfo. O jovem escolhido para comandar o trabalho foi o cunhado de Rodolfo, o Evandro. Eu fiquei na fiscalização do salão e do terreno, o Rodrigo ficou como fiscal de porta. O fiscal de porta é como um guardião, ele fica na porta da igreja. O fiscal de salão e de terreno cuida dos pontos acesos, lava os copos de Santo Daime e fica a disposição do comandante do trabalho.

Neste dia em questão, enquanto eu estava lavando os copos do último despacho de Santo Daime, o fiscal da porta teve de correr do lado de fora para socorrer um irmão que estava endiabrado, o Lele. O trabalho foi em uma noite de Lua Nova e Lele corria para todo lado, pulava e rolava no meio do mato, socava e batia a cabeça no chão. Literalmente ele deu trabalho a noite toda e no fim da sessão, ele ainda estava endiabrado.

Após eu lavar os copos, corri para render o fiscal da porta e lá fiquei, sem nada poder fazer. Enquanto eu estava ali na porta, por um momento o fiscal conseguiu trazer o Lele bem próximo da porta da igreja, quando ele caiu sentado no chão dizendo ao fiscal: Você? Logo você que é o mais pecador de todos acha que tem qualquer autoridade sobre mim? Eu não vou para igreja nada. Após dizer isso ao fiscal, Lele saltou do chão e saiu correndo para dentro do mato, pulou a cerca de trás da igreja e subiu lá para o alto da montanha. Quando o outro fiscal disse ao comandante que o Lele tinha saído correndo da igreja, ele me chamou e disse: Fernando, vai atrás do Lele e traz ele de volta. Eu prontamente saí correndo atrás do Lele.

Ao encontrar o Lele em uma plataforma no alto da montanha, consegui conversar tranquilamente com ele que, hora estava consciente, hora não falava coisa com coisa. Bem lentamente fomos conversando e ele optou por retornar. Nós somos muito amigos e devido a isso ele manteve-se controlado.

Eu consegui trazê-lo para igreja. No entanto, ele permaneceu atrapalhando o trabalho, interrompendo os hinos, pedindo outros hinos. Tivemos de lidar com ele até o fim da sessão dando problemas. Ele não foi levado ao cruzeiro e nem tomou Santo Daime de cura. O comandante preferiu deixa-lo na fila entre os irmãos. Será que se o comando da casa estivesse ali ele teria passado por tudo aquilo? Eu refleti que não, conhecendo o Lele, que esperava o tempo certo, quer dizer, quando a casa se encontrasse sem autoridade espiritual do comando para exorcizar, ele mesmo, os demônios que lhe acompanham e lhe açoitam.


NOTAS:


[1] O bronze é uma liga de cobre, estanho, chumbo e zinco. O latão é apenas cobre e zinco. Magicamente, o bronze oferece a constrição saturnina (por causa do chumbo), o que o latão não oferece. É por isso que na Arte da Alquimia o latão é considerado o bronze dos pobres. O efeito mágico do bronze é infinitamente superior ao efeito do latão. Quando avaliamos as tabelas de proporção dessas ligas metálicas, notamos que as razões matemáticas do bronze são mais adequadas que o latão para arte da magia. O latão por sua vez tem razões matemáticas imprecisas e não produz razões áureas, dessa maneira, gera espíritos de segunda grandeza, quer dizer, forças essencialmente cegas.

[2] The Goetia of Dr. Rudd editado por Stephen Skinner & David Rakine, p. 115.

[3] PGM II. 44-52.

[4] PGM XII. 141-43.