quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

A Magia Sexual de Kenneth Grant II


P A R T E  . I I .

Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.


O Círculo Kaula, citado amplamente por Kenneth Grant em suas Trilogias Tifonianas, é famoso entre os entusiastas da cultura tântrica e principalmente entre os praticantes de neotantrismo. Na literatura ocultista vulgar, o Círculo Kaula é descrito como um culto exótico cujas práticas envolvem o conúbio sexual em grupo em crematórios e cemitérios. A palavra kaula deriva de kula, que significa grupo, família ou clã. O Tantra é uma tradição que nasceu no contexto de clãs organizados, famílias praticantes que trabalhavam em cima de escrituras (śāstra) próprias, quer dizer, grimórios de magia recebidos pela Alta-Sacerdotisa, geralmente a esposa do Guru ou as suvasinīs, ajudantes da Alta-Sacerdotisa, muitas vezes as filhas do casal ou mulheres de fora da família, as dūtīs, que desempenhavam o papel de sacerdotisas auxiliares. Nesse sistema, o Tantra cresceu e floresceu, ganhando linhas distintas de sucessão, criando assim uma grande rede de escolas de iniciação, muitas vezes com a psicologia, mitologia e filosofia distinta de outras escolas.

A abordagem Kaula – e de outros grupos vāmācāra como os nātha-siddhas,kāpālikas e aghorīs – em relação ao corpo, sexualidade e secreções corporais de todos os tipos é positiva: para o kaula-tāntrika nada é repugnante, nojento ou obsceno. É a mente, comportando-se de maneira bipolar entre desejo (rāga) e aversão (dveṣa) que categoriza o que é imprório e o que não é, o que é bonito e o que é feio etc. Através da prática de uma filosofia não-dualista (advaita) – característica das escolas que compõem o Śaivismo da Caxemira(trika) – nada pode ser considerado impróprio, sujo, feio ou degradante. São os estados de dualidade (dvaita) que produzem esse tipo de categorização. Nesse caminho, o kaula-margī cultiva uma atitude diferente em relação ao mundo e a vida. Trata-se de um novo entendimento acerca do universo: a visão da insubstancialidade de todas as coisas.

Abhinavagupta (950-1020 d.C.), considerado o homem mais santo que pisou em solo indiano, fez uma reformulação completa no sistema de iniciação da tradição Kaula por volta do Séc. X. Em seu Tantrāloka, considerado a maior escritura tântrica de todos os tempos, ele afirma que o sexo é o fim do caminho. Por essa declaração ele pretendia orientar que, embora a abordagem Kaula em relação ao sexo seja positiva, não significa que a tradição promova o hedonismo. Ao ser iniciado, o chela (aprendiz) tem de passar por um treinamento que pode durar anos antes de ser instruído pelo guru nas técnicas sexuais de manipulação da kuṇḍalinī-śakti. E dependendo do nível de mente e natureza do aprendiz, o guru pode decidir não lhe orientar em técnicas sexuais. Existem três níveis de adeptos tântricos: i. o paśu (boi), aquele que é dominado por sua natureza instintiva; ii. o vīra (herói), aquele que dominou sua natureza instintiva e é senhor de si mesmo e de sua vontade; iii. o divya (puro/divino), aquele que transcendeu a si mesmo e ao plano da existência. Segundo a tradição tântrica, adeptos de natureza paśujamais podem ser instruídos em técnicas sexuais de iluminação, pois devido a sua natureza instintiva, não utilizarão de forma adequada esta ferramenta. Para estes adeptos, a meditação (yoga) e os rituais de magia são mais adequados. O vīra, por outro lado, é o adepto mais adequado a ser orienado nas técnicas de magia sexual, pois ele transcendeu seus vícios e desejos e empunhol a espada da vontade. O divya, por conta de sua natureza sutil, está além da prática sexualmente orientada e não precisa dela para acessar os segredos da Natureza e do Cosmos.

Um dos aspectos mais famosos do Círculo Kaula e de outras tradiçõesvāmācāra trata-se de uma prática espiritual conhecida como pañca-tattva ou o Ritual dos 5Ms. Esse ritual envolve o consumo de carne, quimiognose, e cópula orientada pelo guru. A abordagem equivocada do neotantrismo popularizou esse ritual, que ficou famoso entre os ocultistas e entusiastas do tantrismo. No entanto, a lógica por trás de uma prática como essa transcende seus elementos físicos, além de ser uma afirmação positiva da vida contra as regras estabelecidas pela tradição védica.

A mulher desempenha o papel mais importante no ritual Kaula. Ela é a incorporação da Śakti e é sua função estabelecer seu poder durante a prática, seja como oráculo, cura ou iluminação espiritual. Dependendo da orientação do guru e do nível de consciência/iniciação de cada discípulo, o ritual pode ter mais participantes, quando ganha o nome de kaula-cakra (Círculo Kaula).

A função do ritual é estabelecer a união entre a Deusa Śakti e seu consorte, o Deus Śiva. Isso ocorre quando a kuṇḍalinī desperta de seu sono nomūlādhāra-cakra e sobe fulminante por cada cakra até atingir o sahasrāra, o lótus de mil pétalas. Trata-se da versão tântrica do Casamento Alquímico dos sacerdotes gnósticos egípcios. O conceito qabalístico equivalente é a Shekinah que saindo de Malkuth e buscando a união com o divino em Kether redime toda a criação.

No seu percurso, a kuṇḍalinī penetra nos cakras, os sete portais da alma. E na medida em que penetra cada um dos cakras a Serpente de Fogo os ativa em toda sua plenitude, proporcionando inúmeras experiências espirituais por quem paça pela experiência. Os cakras regem toda gama de complexidade na personalidade humana e a eles são atribuídos determinados siddhis, poderes paranormais que se manifestam na psique do tāntrika na medida em que ele aprende a manipular as volições da kuṇḍalinī.

Toda a doutrina que envolve os cakras é central nos rituais descritos por Grant. Ele dá muita ênfase a necessidade de manipular o prāṇa através dos cakras da sacerdotisa engajada no rito e dependendo da finalidade do ritual, o prāṇa é manipulado somente dentro de um cakra específico, na intenção dela manifestar sua essência ou vibração através dos kālas secretados pela vagina.

No entendimento de Grant, quando os cakras da sacerdotisa são ativados através da manipulação da Serpente de Fogo com mudrās e passes mágicos, todo o seu corpo passa por uma transformação. O estímulo nos cakras irá liberar na corrente sanguínea um conjunto de hormônios. Isso afetará a qualidade das secreções ou kālas precipitados para fora da vagina. Essas secreções serão então coletadas pelo magista e podem ser utilizadas para variados fins.

Grant incorporou o Tantra e seus conceitos ao sistema de magia cerimonial da Tradição Ocidental de Mistérios. Ele nunca alegou ser um adepto tântrico. Através dos ensinamentos que recebeu de David Curwen (1893-1984) e da literatura que teve acesso na época, Grant incorporava a sua maneira as técnicas tântricas que havia estudado. E na medida em que o grupo da Loja Nova Ísis evoluía nos trabalhos mágicos, ele foi incorporando a mitologia do Necronomicon. Esse conjunto de influências formava o pano de fundo de suas operações de magia. Assim, da mesma maneira que Crowley não pode ser considerado uma autoridade em egiptologia, Grant não pode ser considerado uma autoridade em Tantra. No entanto, sua contribuição a Tradição Ocidental é inestimável. Grant continua sendo o autor que mais falou de Tantra em relação à prática da magia cerimonial. Ele nos proporcionou o Tantra no contexto de Thelema com a autoridade de um acadêmico.

A doutrina dos cakras da tradição tântrica tem seu análogo equivalente em outras culturas. Os egípcios, sumerianos e babilônios com seu sistema de mitologia baseados em suas observações astronômicas; os mitos do misticismo judeu como a Escada de Jacó; a viagem aos céus do xamanismo; a gnose do Necronomicon e o mito chinês do caminhante das sete estrelas da Contelação da Ursa Maior. Todas essas ideias, retornando a cultura arcaica, representam uma condição humana primordial onde à evolução espiritual e a busca pela imortalidade se encontram. Então, o que a doutrina dos cakras e da kuṇḍalinī – e o sistema de magia criado por Grant aliado a ela – nos oferece? A habilidade em reinterpretar os sistemas místicos, mágicos, filosóficos e religiosos da Antiguidade nos termos da psicofisiologia humana.

Dessa maneira, as Sete Estrelas da Constelação da Ursa Maior, os sete planetas da Astrologia babilônica e sumeriana, as sete carruagens damerkavah no misticismo judeu etc. são representados pelos sete cakras do tantrismo. A genialidade de Grant – e antes dele Crowley – em indentificar e fazer analogias como essa as percebendo como algo tangível e real o capacitou a descobrir o Grande Arcano desse mistério, o provendo cominsights para codificar um sistema de magia operativo. O que Kenneth Grant fez foi externalizar os processos internos do kuṇḍalinī-yoga em um sistema de magia cerimonial, possibilitando que um grupo de pessoas pudesse trabalhar dentro de um templo equipado ou que adeptos espalhados pelo mundo pudessem operar sozinhos como zonas de poder ou células ocultas, como oscakras no corpo da sacerdotisa.

Em Aleister Crowley and the Hidden God, Grant delineia um plano geral para um ritual de magia sexual em um capítulo intitulado Controle Onírico pela Magia Sexual. Ele começa introduzindo os três estados de consciência: o estado de vigília, o estado de sonho e o estado de sono sem sonhos. Em seguida ele compara a Zona Malva ao estado de sonho: uma zona de poder intermediária entre o estado de vigília e o sono profundo, sem sonhos. Grant alega que toda atividade se orinina no estado de sonho, seja ela consciente, dirigida pela vontade ou reativa, dirigida pelos instintos. O estado de sonho é o plano onte tanto a atividade astral quanto a atividade mental ocorrem. Este é – também é bom lembrar – o estado que, segundo Lovecraft, o Alto-Sacerdote do Culto de Cthulhu se comunica com seus devotos. No sistema de magia sexual de Kenneth Grant isso não se trata de uma história fictícia.

Grant dá crédito ao ocultista alemão Eugen Grosche (1888-1964) por ter descoberto parte da fórmula mágica. Em suas pesquisas, Grosche utilizou técnicas sexuais de magia para produzir estados de gnose e transe que possibilitavam a experiência onírica consciente. O que Grosche fazia era aplicar a terapia do magnetismo animal de Franz Mesmer (1734-1815). Com um ímã na mão direita e uma barra de ferro na mão esquerda (às vezes água), Grosche excitava a sacerdotisa e em seguida aplicava passes mágicos – que Michael Bertiaux (1935) chamou de passes do transe ofidiano – em seu corpo. Sua finalidade era coletar suas secreções vaginais magnetizadas.Grant utilizou essa técnica em um contexto mais amplo, adicionando exercícios tântricos, formando um método base de trabalho para as operações de magia sexual da Loja Nova Ísis.

Grant utiliza enfaticamente a palavra kāla em suas trilogias, associando a ela as secreções vaginais da sacerdotisa. Especificamente, ele se refere ao período de catamênio onde as essências são secretadas diariamente. Cada dia do ciclo menstrual possui seu kāla peculiar e cada kāla é distintos de outros de certa maneira. Existem quatorze ou quinze kālas, dependend de como são definidos ou divididos. Considera-se que o décimo quinto kāla seja secretado no primeiro dia da menstruação ou o dia em que o fluxo é mais intenso. A associação do calendário lunar e o ciclo menstrual deu origem ao conceito de Deusa Quinze, uma referência direta a deusa Kālī, considerada a forma mais auspiciosa da Śakti. Nesse processo, Deusa Quinze também é o nome dado a Mulher Escarlate, por razões óbvias.

Em um contexto mais apropriado, Grant utiliza a palavra kāla para se referir ao décimo sexto kāla, que ele considera ser o Grande Arcano da magia sexual: a soma total dos valores associados aos outros quinze kālas. Como Grant utiliza o termo kala como um sinônimo geral para as secreções, é possível fazer alguma confusão com essas informações. Isso ocorre porque ele não utilizava a grafia sânscrita correta, que define: kāla como negro ou morto; kalā como descarga menstrual e kala como sêmen. Kalā ainda é um dezesseis avos do diâmetro lunar, e kāla está associado ao conceito de tempo e o planeta Saturno, o que dá uma ideia melhor do entendimento que Grant possuía sobre os kālas. Assim, a palavra kāla no contexto das Trilogias Tifonianas pode ser um sinônimo para negro, morte, descarga menstrual, sêmen, unidade de tempo. A ideia de tempo conecta a palavra kāla ao conceito grego de Cronos ou cronologia.

Existe uma ciência muito sutil por trás da doutrina dos kālas ou secreções vaginais. Dependendo do dia e ciclo lunar que a sacerdotisa se apresenta para o trabalho, o magnetismo e qualidade dos kālas serão afetados. Os hormônios secretados na corrente sanguínea durante o ritual influenciará todo o processo de produção dos kālas. O corpo da sacerdotisa é um laboratório e na medida em que ela conquista níveis avançados em sua iniciação, sensibilidade e discernimento, o laboratório se converte em um templo: suas funções biológicas passam a ter um análogo psicoespiritual que está sob o seu controle – consciente ou inconsciente – durante a operação, quer dizer, ela pode estar em estado de gnose, ocasião em que se tornará oracular, no entanto, por seu treinamento e proficiência em manipular a kuṇḍalinī noscakras, estará apta a responder apropriadamente – mesmo que instintivamente – ao sacerdote.

Outro termo que frequentemente encontramos nas trilogias de Grant e que têm confundido muitos leitores é ojas, que no sânscrito quer dizer vigor, força,poder, energia, luz e ideias cognatas. David Gordon White, eminente estudiosa de religiões comparadas, traduz o termo como fluído vital em sua obra The Alchemical Body: Siddha Traditions in Medieval India. Eu escrevi sobre ojas em Gnose Tifoniana (Vol. I) e Cakra Sādhanā, onde um estudo profundo sobre o termo foi empreendido. Grant utiliza o termo como sinônimo para energia mágica, sendo o resultado natural dos kālas apropriadamente magnetizados. Em outras palavras, os kālas da sacerdotisa em si são considerados magicamente inertes até serem magnetizados pelo sacerdote, quando eles tornam-se saturados por ojas ou energia mágica. O ciclo menstrual – quer dizer, os kālas em seu aspecto físico normal – está conectado aos processos fisiológicos de reprodução. No entanto, quando saturados com energia mágica, os kālas tornam-se ideias para a reprodução da criança mágica, ou seja, um veículo de poder sobrenatural.

A grande mudrā do sistema de magia sexual de Kenneth Grant é a Estela da Revelação onde a deusa Nuit é retratada arqueada sobre a terra. Ele via Nuit arqueada como a contraparte thelêmica de uma postura tântrica para o coito sexual chamada viparita-rati, onde a sacerdotisa senta com a vagina sobre o pênis do sacerdote. Ele chamava essa mudrā de Posição 718. Essa é amudrā simbolicamente retratada nas imagens de Kālī sobre Śiva. Além de ser essa a posição mais ideal para o maithunā, também é a mais adequada para a coleta dos kālas.

No que concerne ao Tantra, Grant estava mais interessado em seu aspecto mágico. E embora ele tenha devotado atenção aos aspectos filosóficos de escolas inidianas como o advaita-vedānta, que influenciou profundamente sua obra – e a de Crowley –, ele ainda menteve o foco na aplicação objetiva do aspecto ritualístico do Tantra. Esse apelo e inclinação a execução cerimonial da magia é o aspecto thelemita de Grant. A cultuta tântrica envove textos sagrados (śāstra), sādhanā (pratica espiritual) e um modo distinto de ver o mundo. O culto thelêmico, por outro lado, pretente ser um movimento espiritual de envergadura global. A abordagem do Tantra é individual, mesmo envolvendo um grupo de pessoas. Thelema, de outra maneira, requer uma abordagem mais ampla, social. Como falei acima, Grant nunca se colocou como uma autoridade em Tantra. Ele utilizou elementos do Tantra dentro da estrutura de Thelema, interpretando muitas passagens do cânone thelêmico nos termos da cultura tântrica e por esse motivo ele via Thelema como o Tantra do Ocidente. Em suas trilogias ele explica inúmeros mitos tântricos no contexto de Thelema. Da mesma maneira, ele interpreta Thelema sob o prisma do Tantra. Na sua visão, Thelema e Tantra são aspectos de uma mesma tradição, a qual ele chama de Tifoniana. Grant declara que o Tantra é o relicário Tifoniano para humanidade.

O que Grant propõe na verdade é uma reiterpretação do Tantra nos termos da Tradição Ocidental de Mistérios, o que seria uma heresia a qualquer tāntrikada Índia. Nesse intuito Grant abraçou a tecnologia espiritual dos Tantras, aplicando a ritualística tântrica nos rituais da Loja Nova Ísis. Seu legado, portanto, é um sistema de magia de aplicação universal com uma linguagem thelêmica.

Trabalhando com o sistema de magia sexual de Kenneth Grant, eu fui capaz de estabelecer um ritual do IX° Grau baseado na Missa Gnóstica de Crowley, o qual denominei O Ritual da Serpente de Fogo. O objetivo deste ritual é a coleta bem sucedida dos kālas da sacerdotisa, secreções vaginais magicamente carregadas com ojas ou energia mágica. O requisito primordial para que este ritual seja bem sucedido é que a sacerdotisa deve ser bem treinada nas técnicas de kuṇḍalinī-yoga, as quais me referi acima. Anexo uma passagem de Gnose Tifoniana (Vol. I) onde esse ritual foi descrito.

Um objetivo do ritual, como mencionei acima, era a produção e coleta bem sucedida dos kālas, as secreções vaginais magicamente carregadas com ojas. O ritual era uma operação altamente complexa, pois os kālas da sacerdotisa estão associados às fases lunares «tithis» e a deidades específicas associadas a cada fase, chamadas de nityas. Um processo altamente meticuloso para alinhar a célula qliphótica, cakra, sandhi e marma, a fase lunar e deidade regente se iniciava para que o processo alquímico do ritual pudesse ser estabelecido com sucesso. Antes de cada ritual Frater Asvk preparava a carta astrológica da operação, quando ele definia a deidade associada à fase lunar e específica ao kāla que a Sacerdotisa Oficiante deveria emitir.
O requisito primordial era que a Sacerdotisa Oficiante pudesse ser uma iniciada capaz de elevar a kuṇḍalinī. Mas nem todas as pessoas estão preparadas a este nível. Como medida paliativa, Frater Asvk insistia que, mesmo que a sacerdotisa não pudesse elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras, ela deveria pelo menos ser capaz de liberar o prāṇotthana, a força prânica que desencadeia o despertar real da kuṇḍalinī. Para essa finalidade, a Ordem oferecia um treinamento sistemático em kuṇḍalinī-yoga, sempre direcionado as necessidades e dificuldades pessoais de cada um. Um treinamento tântrico fundamental se iniciava no VII°, o Grau do Mestre do Templo, onde todos recebíamos o Śrī Devī Khaḍgamālā Sādhanā. Esta é uma prática de adoração a Mãe Divina «Śrī Devī» desenvolvida por Frater Asvk para os membros do Círculo Kaula. A palavra khaḍga significa espada e mālā significa guirlanda. A execução deste sādhanā cria uma aura protetora ou guirlanda de espadas sobre o magista. Trata-se de uma jornada através do Śrī Cakra pela recitação dos nomes das 98 yoginīs ou aspectos de devī que «guardam» os pontos de energia do cakra ao longo do caminho.
Qualquer descuido durante a realização da operação poderia resultar em uma prática espiritual predatória, quer dizer, vampirismo. Para evitar isso, todos nós estávamos sempre cientes da proposta e objetivo do ritual, todos em uma mesma corrente de vibração, cientes de todas as implicações mágicas e kármicas.
Às vezes o ritual tinha um contexto todo thelêmico, às vezes era completamente tântrico. Nós executávamos versões diferentes dos rituais thelêmicos tradicionais como o Ritual da Marca da Besta, o Ritual Safira Estrela e o Ritual da Estrela de Sangue. Às vezes o ritual era feito sobre as bases da Bruxaria Therionica e a corrente lunar de Hécate.
Esse ritual sempre era executado por volta da meia noite na primeira noite de Lua Cheia. Em qualquer uma dessas configurações o trono da Sacerdotisa Oficiante ficava no Norte. Isso ocorria porque nesse dia a Lua ficava no quadrante oposto, o Sul, onde ficava o Sacerdote Oficiante. O Sol ficava sobre a sacerdotisa, no Norte. Isso era feito dessa maneira porque o sacerdote assumia a forma divina do deus Candra, transmissor do «néctar da imortalidade», representado astrologicamente pela Lua Cheia. A Sacerdotisa assumia a forma de Sekhmet, a deusa do calor e furor sexual, associada ao Fogo e ao dinamismo da Śakti.
O ápice do ritual ocorria quando o sacerdote precipitava a kuṇḍalinī no corpo da sacerdotisa. O Sacerdote Oficiante executava determinadas mudrās sobre o corpo da sacerdotisa, sem necessariamente tocá-la, fazendo passes magnéticos sobre certas zonas erógenas, às vezes com a Baqueta Mágica e às vezes com as mãos. Nesse momento a sacerdotisa não era sexualmente excitada, evitando o aterramento da energia mágica enquanto mantinha contrações fisiológicas «bandhas» selando e contendo o prāṇa no interior do corpo. Esse estímulo continuava até que a sacerdotisa literalmente tivesse febre. O objetivo desse processo era o despertar da Serpente de Fogo, elevando-a por todos os cakras ao ponto de «queimá-los» a fim de se estimular a produção e secreção de hormônios associados na corrente sanguínea da sacerdotisa. Nesse processo, o sacerdote trazia a sacerdotisa ao ponto do orgasmo, parando momentos antes do clímax. A excitação sexual somente ocorria, através dos procedimentos do VIII° ou IX° Graus, quando a sacerdotisa encontrava-se em dificuldade para atingir o estado de consciência associado ao kāla que deveria produzir. Nesse caso, quando o procedimento era com as técnicas do VIII°, eu e outros acólitos ajudávamos no processo de excitação. Outras vezes, quando o procedimento era através do IX°, então o Sacerdote Oficiante se encarregava de excitar a sacerdotisa. Em qualquer um dos casos, o orgasmo era evitado, pois a energia gerada deve chegar ao ponto de ser carregada magicamente antes de ser liberada na forma de kāla. No momento exato, quando a sacerdotisa chegava ao limite de sua excitação e ao nível de consciência desejado, então o orgasmo era liberado, produzindo o kāla correto associado. O kāla secretado na vulva da sacerdotisa era então coletado pelo sacerdote, às vezes oralmente, na intenção de aumentar seus poderes ocultos ou produzir o contato com forças supramundanas. Às vezes o kāla era coletado sobre talismãs preparados para o objetivo da operação ou em discos de metal alocados sobre os cakras da sacerdotisa durante o ritual. Nas operações, Frater Asvk carregava o ājñā-cakra da sacerdotisa a fim de atrair magneticamente a kuṇḍalinī para sua zona de poder. No último caso, os discos de metal, agora carregados com ojas, eram guardados em um recipiente para serem utilizados depois, em outras operações. Nessas condições os kālas da sacerdotisa eram carregados com a força mágica do ojas, determinando sua eficácia.
Embora a produção dos kālas exigisse uma atenção especial, o objetivo do ritual sempre era a produção da criança mágica. Para isso, a energia masculina é essencial. O fluido seminal do sacerdote é um agente fundamental para o «nascimento mágico». Da mesma maneira que ocorre com os kālas da sacerdotisa, o fluido seminal do sacerdote deve também ser carregado com ojas. O sacerdote deve elevar a kuṇḍalinī por todos os cakras e evitar o orgasmo para não aterrar a energia antes que ela possa ser carregada energeticamente.
Esse é um poderoso ritual de Alquimia Sexual. Na medida em que o executamos, nosso corpo passa por profundas mudanças fisiológicas que se inicia com a secreção de hormônios na corrente sanguínea. Isso altera a respiração, o metabolismo, a qualidade da saliva, do suor, do sêmen e das secreções vaginais. Nessas condições, visões podem ser obtidas. A concentração mantida durante a excitação sexual, seja através do VIII° ou IX° Graus, cria um poderoso estresse psíquico. Em outras palavras, a concentração e o foco mantidos para evitar o orgasmo cria uma reação em cadeia no corpo, fazendo com que suas funções se alterem, abrindo Portais que normalmente estão fechados. Como consequência, o transe é induzido. O resultado do ritual, quer dizer, a Criança Mágica, é visualizado na câmara do ājñā-cakra para que possa ser concebido com estrita economia de meios.


Notas 

[1] Para uma descrição da Tradição Kaula, veja o ensaio Kaula Sādhanā: Uma Doutrina de Mão Esquerda & Sublimação Sexual.
[2] Veja o ensaio Thelema: A Redescoberta da Tradição Sumeriana.
[3] Eu fiz uma tradução desse livro e disponibilizei gratuitamente na internet sob o nome de Aleister Crowley & o Deus Oculto.
[4] Grosche se distanciou da O.T.O. para formar seu próprio grupo também basead nos mesmos mistérios sexuais da O.T.O., a Fraternitas Saturni. Ele e Karl Germer (1885-1962), sucessor direto de Crowley na O.T.O., tiveram alguns problemnas pessoais. O apoio de Grant a Grosche em seuManifesto da Loja Nova Ísis, levou Germer a expulsá-lo da Ordem. Essa expulsão eliminava qualquer possibilidade de Grant reivindicar a liderança da Ordem, por conta de uma carta emergencial lhe conferida por Crowley. Isso levou Grant a fundar sua própria versão da O.T.O. Sobre a história da O.T.O. veja Rituais, Documentos & a Magia Sexual da O.T.O. (Vol. I). Sobre Grant e a Loja Nova Ísis, veja o ensaio A Conexão Curwen.
[5] Veja o livro Cakra Sādhanā: O Despertar da Serpente de Fogo.