sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O Mistério de Seth-Aiwass



Thelema é uma nova religião e no âmago dessa religião reside uma escuridão profunda. Para alguns, Thelema representa uma religião solar conectada a antigas deidades egípcias como Osíris, Ísis, Hórus, Thoth e Sekhmet. Mas não é! Como toda religião, Thelema possui um ritual público, designado a transmitir ao mundo sua mensagem. Esse ritual é a Missa Gnóstica, cujo credo exalta um deus chamado Caos, e Caos é um epíteto para o deus Seth.

O Livro da Lei, a pedra angular do Culto de Thelema, foi recebido em Abril de 1904, ditado por uma inteligência conhecida pelo nome de Aiwass, através da mediunidade de sua esposa, Ourada (Rose Edith Kelly, 1874-1932), que trabalhou como vidente durante a recepção.

Aiwass, a entidade praeter-humana por trás da comunicação, proveu pistas sobre sua identidade logo no início da transmissão: Vê! isto é revelado por Aiwass, o ministro de Hoor-paar-kraat. Portanto, trata-se de Harpócrates, o Deus do Silêncio, que Crowley associa ao Atu 0 do Tarot, O Louco. Existe, portanto, uma associação sutil entre a recepção de O Livro da Lei e a corrente mágica do Divino Louco. Por outro lado, Crowley também considera que o Atu XV, O Diabo, era o desenvolvimento completo da corrente que se iniciou no Atu 0, manifesta na forma da Besta, Pã. Foi à combinação dos esforços de Crowley como a Besta e sua Mulher Escarlate na função de Babalon que deu nascimento à corrente iniciada na recepção de O Livro da Lei, como indicado pela voz de Aiwass: Agora vós deveis saber que o sacerdote escolhido & apóstolo do infinito espaço é o príncipe-sacerdote a Besta; e para sua mulher chamada a Mulher Escarlate é dado todo o poder. Essa combinação ou conexão acabou por se refletir nas personas de Nuit e Hadit: Eu, Hadit, sou o complemento de Nu, minha noiva. E Aiwass continua a instruir Crowley a se alinhar a Hadit: Sê tu Hadit, meu centro secreto, meu coração & minha língua! Eu sou o ardor que queima em cada coração de homem, e dentro do núcleo de cada estrela. Este centro secreto, entende-se, tem uma natureza serpentina, uma potência ofidiana transmitida na imagem da Besta – O Louco – conjugada a Babalon: Eu sou a secreta Serpente enrolada pronta para saltar: em meu enrolar está o prazer. Uma clara referência aos mistérios ofidianos preservados na cultura tântrica na forma da kuṇḍalinī, tão importante no sistema de iniciação proposto por Crowley.

A identidade de Aiwass fascinou Crowley por toda sua vida, que acreditava ser ele um Deus, Daemon ou Demônio cujas origens remontam a Suméria, assim como uma manifestação de seu Sagrado Anjo Guardião. Essa alegação é baseada no fato de que Crowley executou a invocação do Não-Nascido antes da recepção de O Livro da Lei na Operação do Cairo, como ficou conhecida a ocasião. É o objetivo dessa invocação etabelecer uma conexão consciente com o aspecto superior de cada um de nós e ela foi posteriormente incluída em seu Liber Samekh, um ritual construído para Consecução & Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.

Charles Wyciffe Godwin (1817-1878), quem primeiro fez a tradução do papiro de magia greco-egípcia que Crowley restaurou completamente em Liber Samekh traduz o termo grego akephatos como o sem cabeça. Crowley não gostou dessa tradução do termo e preferiu traduzir como o não-nascido, referência ao fato de que a entidade invocada por esse ritual não tem início ou fim. No entanto, a palavra akephatos é identificada por muitos egiptólogos como uma referência ao deus Seth. Dessa maneira, a deidade convocada na execução de Liber Samekh é Seth. O Sagrado Anjo Guardião de Crowley, segundo a hipótese de Grant, é similar ao deus Seth. Godwin ainda especula em sua obra que a invocação é dirigida ao princípio maligno dos egípcios, quer dizer, Seth.

Na concepção de Kenneth Grant, Aiwass como Seth ou Seth-Aiwass como ele postula é uma incorporação da Tradição Draconiana do antigo Egito. Entre os egípcios, a constelação de Draco – e outras ao Norte como as constelações de Hércules, Ursa Menor, Cepheus, Lyra e Cygnus – era atribuída ao deus Seth. De acordo com Gerald Massey, Seth foi a primeira energia emanada da criação ou a primeira criança nascida da Grande Mãe, dessa forma, sendo associado a criação primordial, o Caos de onde a Ordem emergiu. No simbolismo do Tarot de Thoth, Draco é associada ao Atu XIII, Morte. Crowley vê este Atu como a culminação do simbolismo do deus moribundo, iniciada nos dois Atus anteriores e a subsequente demonisação de Seth. Isso simboliza a morte do velho e o início do novo.

Em O renascer da Magia, Grant estabelece uma conexão entre Seth e Bes. Em sua obra, The Dawn of Astronimy, N. Lockyer estabelece a mesma conexão, enfatizando que Seth e Bes incorporavam os poderes das trevas, quer dizer, a tradição de deuses estelares como oposta ou inimiga a tradição de deuses solares. Nessa obra, Lockyer se refere a Bes como um tolo. Essa afirmação nos remete a um artigo escrito por H. Goedicke, Seth as a Fool [Seth como um Tolo]. Em muitos extratos mitológicos Seth é tido como um tolo, devido a sua eterna contenda com Hórus. Mas esse é o aspecto exotérico da interpretação. A interpretação esotérica reside na conexão entre Seth e o Atu 0 do Tarot, O Louco. O Caminho de O Louco na Árvore da Vida é compreendido pelas vibrações do Caos, quer dizer, da Ordem no Caos. Em sua obra, Seth: God of Confusion [Seth: Deus da Confusão] H. Veld vai mais além ao identificar Seth como o divino tolo originou a confusão que levou a ordem. Veld cita P. Van Baaren, um egiptologista que estabeleceu uma conexão entre Seth e um loa do Vodu, Ghede, ressaltando a característica viril e o poder sexual atribuído a ambos, uma característica arquetípica incorporada pelo Atu 0, O Louco.

Os nomes bárbaros de evocação restaurados por Crowley em Liber Samekh também expõem o fato de que entidade invocada por este rito é Seth. Os nomes Iaō-Sabaōth, Iēōu e outras deidades invocadas no ritual através dos nomes bárbaros têm raízes gnósticas e são referências a entidades mais antigas, acadeanas e babilônicas. A iconografia dessas deidades é rastreada a origem dos gnósticos. Por exemplo, o Sabaōth dos gnósticos é referido como uma deidade com cabeça de asno, o mesmo Iaō-Sabaōth dos judeus, também com cabeça de asno. Gerald Massey ainda chama a atenção para o fato de que as palavras Iaō e Iēōu são alternativas fonéticas para Jeu. Isso está claro pelo fato de que os Papiros Mágicos Grego-Egípcios e os Papiros Mágicos Demóticos agrupavam um número distinto de tradições, alguns deles contendo material de idiomas distintos, dentro de um mesmo documento. A palavra egípcia para asno é hĭw, um termo associado a Seth como asno ou serpente.

Entre os gnósticos Seth era um deus tido em alta consideração. Em O Livro de Jeu, Seth é associado a Jeou, o Deus Invisível. Em outro manuscrito gnóstico, o Código Bruce, Seth é referido como o Deus Supremo, o nascido sozinho e Sethius, o Logos Criador.

O terceiro ensaio desta obra, Thelema: A Redescoberta da Tradição Sumeriana é meu primeiro texto sobre a identidade e conexão entre Aiwass e Seth, que espero continuar em minhas próximas obras. Aqui, minha intenção é explorar em uma primeira análise a corrente mágica que alimentou a recepção de O Livro da Lei, sua teogonia associada e o papel do deus Seth na Filosofia de Thelema.

[1] Fernando Liguori em Thelema: A Redescoberta da Tradição Sumeriana, em Gnose Tifoniana (Vol. II).
[2] Liber AL, I:7.
[3] Veja O Livro de Thoth, por Aleister Crowley. Madras, 1998.
[4] É possível rastrear aspectos desta corrente mágica em inúmeros escritos de Crowley. Um exemplo clássico é o Liber CXI ou Liber Aleph: O Livro da Sabedoria ou Tolice, descrito por Crowley como um extenso comentário de O Livro da Lei. Pode ser inferido dessa maneira que O Livro da Lei é a primeira manifestação ou transmissão da corrente mágica do Divino Louco, continuada nas operações de Abuldiz (1911) e Amalantrah (1918). Liber Aleph foi concluído durante a Operação Amalantrah e transmite fielmente a corrente mágica que infunde o Atu 0, O Louco.
[5] Liber AL, I:15.
[6] Liber AL, II:2.
[7] Liber AL, I:6.
[8] Liber AL, II:6.
[9] Liber AL, II:26.
[10] Veja The Equinox of Gods, por Aleister Crowley.
[11] Este ritual foi escrito na Abadia de Thelema, Cefalu, Cicília, na ocasião da admissão de Frater Progradior (Frank Bennett, 1868-1930) na Segunda Ordem da A∴A∴. O ritual foi adaptado de um fragmento de um ritual greco-egípcio traduzido de um papiro por Charles Wyciffe Godwin do museu britânico em 1852. Mathers o utilizou como invocação preliminar para sua tradução da Goécia. Crowley usou a interpretação começada dos nomes bárbaros e as fórmulas mágicas em todo seu conteúdo. A invocação original se chamava O Sem Cabeça. Agora, em todo seu formato se chama O Não-Nascido.
[12] Veja por exemplo The Secret Books of the Egyptian Gnostics, por Jean Dorresee.
[13] Veja Charles Wyciffe Godwin, A Fragment of Graeco-Egyptian Magic, p. 40.
[14] Veja O Renascer da Magia, Kenneth Grant. Madras, 1999 e Penumbra, 2015.
[15] Veja The Dawn of Astronomy, por N. Lockyer e The Natural Genesis, por Geral Massey.
[16] The Natural Genesis, p. 149.
[17] Veja O Livro de Thoth, por Aleister Crowley. Madras, 1998.
[18] Para uma compreensão clara dessa animosidade entre os deuses estelares e solares no antigo Egito veja as obras de Kenneth Grant, Cults of Shadow e Outer Gatways. Starfire, 2013 e 1016.
[19] Veja Journal of Egyptian Archaelogy, 1961.