quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A Gênese Satânica


Anton Szandor LaVey foi o Pai do Satanismo Moderno, alguns diriam até do Satanismo como um todo. Embora esta filosofia e estética sejam tão antigas quanto a humanidade, foi ele que deu pela primeira vez na história uma estrutura organizada para que fossem celebradas como uma religião completa.

Entendendo que, de uma forma ou outra, sempre nos agarramos a dogmas e rituais, ele os utilizou para criar a mais laica e humana, demasiadamente humana, de todas as religiões. LaVey não foi um profeta, não foi um enviado de outro mundo, não foi à reencarnação de qualquer outra grande figura e sequer acreditava em tais bobagens. Este é um ponto importante, por isso vou ressaltá-lo: o Satanismo é uma religião que foi inventada.

É claro, todas as religiões foram inventadas. Mas os satanistas simplesmente admitem isso e não fingem ser donos de uma revelação mística. O seu fundador foi simplesmente um homem à frente de seu tempo. Libertário, de intelecto afiado e dono de um senso raro de oportunidade. Ele nasceu em 11 de Abril de 1930 e seu nome era Howard Stanton Levey. É certo que LeVey soube forjar sua imagem como ninguém, não é a toa que ele mais tarde reescreveria o próprio nome e passasse a se chamar Anton Szandor LaVey.

Pouco depois do seu nascimento sua família decide deixar Chicago e muda-se para a baía de São Francisco. Desde cedo LaVey aprendeu a importância de cultuar uma imagem poderosa e, propositalmente, encheu a história de sua vida com mitos e boatos que não podem ser confirmados, dentre os quais talvez o mais gritante seja o de foi iniciado no ocultismo graças a sua avó Cigana, Luba Koltan, que supostamente lhe contava histórias de superstições sobre vampiros e magia negra de sua terra natal, a Transilvânia. Existem sérias dúvidas se Luba sequer existiu, mas seja como for, o certo é que Anton desde jovem tinha um gosto pelas trevas e adorava ler qualquer coisa que se relacionasse a elas. Sabe-se que, em sua juventude, seus livros de estimação foram "Frankenstein" de Mary Shelly, "Drácula" de Bram Stocker e "O Médico e o Monstro" de Robert Louis Stevenson. Também era leitor assíduo da popular revista “Weird Tales” e devorava qualquer produção Hollywoodiana que flertasse como terror.

A pré-adolescência de LaVey foi durante a Segunda Guerra Mundial e neste período fascinou-se por manuais militares e catálogos de armas. Rapidamente descobriu que, se alguém assim quisesse, poderia comprar armas e munições suficientes para criar o seu próprio exército privado. Nos idos de 1945, um dos tios de LaVey foi contratado para ser Engenheiro Civil no Exército de Ocupação da Alemanha vencida e Anton teve a chance de viajar com ele. Lá, pode ver filmes da realidade nazista confiscados, os quais tinha recebido a informação de conterem partes de rituais da Black Order of Satan, que supostamente fazia parte do Terceiro Reich. Novamente temos aqui um fato sem muita credibilidade, pois nessa época ele teria apenas 15 anos.

Algo que não pode ser questionado entretanto é sua verve artística e estética. Na prematura idade de cinco anos seus pais já haviam descoberto seu talento musical, quando entrou em uma loja de música e tocou um harpa sem qualquer instrução prévia. Mais tarde, aprendeu a tocar muitos instrumentos, incluindo o violino. Aos 10 anos aprendeu sozinho como tocar piano e aos 15 já era o segundo oboísta na Orquestra Sinfônica do Ballet de San Francisco. Foi este talento que levou LaVey a decidir deixar a escola e juntar-se ao Circo Clyde Beatty em 1947, com apenas 17 anos.

No circo foi contratado, primeiro, como estivador, depois tornou-se responsável pelas jaulas dos animais e, por fim, se tornou responsável por alimentar os grandes felinos. Anton desenvolveu então uma relação íntima com os animais e, provavelmente, começou a perceber que nossos irmãos de quatro patas não eram tão diferentes assim de nós. Ele passava boa parte de seus dias ao lado de predadores em cativeiro. Predadores em cativeiro... não é esta também uma ótima descrição do homo sapiens de hoje? A diferença é que ao contrário dos animais, nós carregamos nas mãos a chave de nossas jaulas.

Não demorou para que ele dominasse a psicologia animal e se transformasse em um ótimo domador, capaz de lidar com oito Leões Nubianos e quatro Tigres de Bengala numa única jaula. Uma noite, enquanto trabalhava no circo, o tocador de calíope habitual embebedou-se e não podia atuar. LaVey prontamente voluntariou-se para o seu lugar e foi um sucesso tão grande que se tornou no tocador de calíope oficial do Circo Beatty.

Quando a temporada do circo acabou, LaVey viu-se desempregado. Seguindo o conselho de alguns dos seus colegas decidiu procurar trabalho em feiras e parques de diversões. Devido a seus talentos musicais, rapidamente conseguiu emprego nas bares locais tocando calíope, órgão Wurlitzer e até mesmo um Hammond. Depois passou a tocar em shows de strip clubs femininos nas noites de sábado e aos domingos de manhã na tendas de espetáculos religiosos. Putas de noite e pastores de manhã. Foi ali que ele descobriu em primeira mão a hipocrisia presente na Igreja Cristã:

”Nas noites de sábado eu podia ver homens assistirem lascivamente as garotas seminuas dançando no show e, no domingo de manhã, quando eu tocava órgão na tenda do culto, eu via os mesmos homens sentando com suas esposas pedindo a Deus que os perdoasse e os purgasse de seus desejos carnais. E no próximo sábado eles visitariam o show novamente ou podiam ser vistos à noite em outros locais de indulgência. Eu soube então que as Igrejas Cristãs estão repletas de hipocrisia e que a natureza carnal do homem se manifestará não importa o quão purgada e combatida seja pelas religiões da luz branca.”

Se não somos santos, por que mentir para nós mesmos dizendo que o somos? Não podemos lutar contra nossa própria natureza. LaVey, trabalhando na indústria do entretenimento, entendeu isso com perfeição. Comédia, espetáculo, diversão, nudez, brincadeiras, delícias para todos os gostos e sentidos. Crianças querem se divertir como crianças e adultos querem se divertir como adultos. Podemos temporariamente nos enganar mas, dado tempo o suficiente, todo joelho se dobrará para a carne. Todo faquir vai acabar dormindo até mais tarde e todo padre tem uma revista pornográfica escondida debaixo da cama. Por mais que esta ou aquela religião nos proíba, inadvertidamente retornaremos para o momento em que deixaremos seus livros sagrados de lado por um tempo e nos entregaremos aos prazeres do mundo.

LaVey não percebeu na época mas começava ai a gênese do Satanismo Moderno.

Com vimos no capítulo anterior, Lavey passou uma temporada de sua vida trabalhando em casas burlescas e clubes noturnos nos arredores de Los Angeles, como tocador de órgão. Uma noite, enquanto trabalhava no Mayan Club, conheceu uma atriz chamada Norma Jeane que tinha conseguido trabalho como bailarina. Essa atriz logo mudaria seu nome para Marilyn Monroe e, conta a lenda, ela e Anton tiveram um rápido caso. Apesar da relação apenas ter durado algumas semanas deixou no jovem LaVey, que contava com 18 anos uma marca muito forte. Anos mais tarde, uma das posses mais preciosas de LaVey seria um calendário de Marilyn nua, com a dedicatória: "Caro Tony, Quantas vezes você já não viu isto! Com amor, Marilyn". Após o fim da sua suposta relação com Marilyn, Anton decidiu mudar-se para São Francisco. Lá, continuou a trabalhar como músico para vários shows de strip-tease e outras reuniões de entretenimento adulto. Também conseguiu trabalho como fotógrafo na Paramount Photo Sales, onde tirou fotografias a mulheres em várias fases de stripping, conhecimento que mais tarde seria útil no emprego de fotógrafo policial.

Quando a Guerra da Coreia começou Anton ponderou sobre a possibilidade de ser arrastado para dentro do exército. Lutar pela pátria estava longe de suas prioridades. Por isso de modo a poder evitar este possível destino em 1949 inscreveu-se na Faculdade de São Francisco, no curso de Criminologia, mesmo sem nunca sequer ter acabado o secundário. Como deve se lembrar, ele havia fugido de casa para ir trabalhar no Circo, assim, mesmo sem a educação fundamental completa, ele conseguiu entrar diretamente na faculdade. Foi mais ou menos nesta época que conheceu sua primeira esposa, Carole Lansing, num parque de diversões nas praias de San Francisco. Os pais de Carole de início estavam desconfiados das intensões de Anton, mas rapidamente se habituaram a ele e deram permissão para os dois se casarem. Anton e Carole casaram-se em 1951 e um ano depois nascia a primeira filha de LaVey, Karla Maritza LaVey.

De modo a poder sustentar sua família, LaVey decidiu usar os seus talentos de fotografia e a sua educação em Criminologia para conseguir trabalho como fotógrafo na Polícia de São Francisco. Um emprego que abalou profundamente e causou fortes impressões nele, aprimorando ainda mais seu senso estético e sua visão da realidade humana. Suas fotos registraram as mais sangrentas e grotescas cenas, fruto de um universo essencialmente indiferente para as súplicas humanas: crianças fuziladas na calçada, motoristas que atropelam e fogem, maridos brutalmente ciumentos, esposas vingativas, corpos boiando na baía de São Francisco, homens mortos por seus irmãos, garotinhas estupradas e estripadas, mães dando surras em seus bebês e filhos espancando seus pais idosos. Como poderia haver um “plano maior” para tão insensata carnificina? Como pode haver um Deus cuidando de toda esta gente? Por que tanta dor e sofrimento? LaVey registrou em seus filmes a maior prova de que o Deus judaico/cristão não existe: o sofrimento humano.

Ele diz: “Não há Deus. Não há nenhuma deidade suprema todo poderosa nos céus, que se preocupe com a vida dos seres humanos. Não há ninguém lá em cima que se importe. O ser humano é o único Deus. O ser humano deveria ser ensinado a responder a si mesmo e aos outros homens quanto à suas próprias ações.”

A espetáculo do burlesco humano testemunhado no circo e o grotesco do mundo fotografada nas ruas formaram a síntese do Satanismo que logo começaria a ganhar forma. Depois de dois anos, graças à sua própria personalidade e interesses pessoais, foi dada a LaVey a responsabilidade adicional de tomar conta das "Chamadas 800", que era o código para as chamadas estranhas. Antevendo os chamados Arquivos–X em algumas décadas, ele investigava de tudo, desde visões de OVNIs a relatos de fantasmas, casas assombradas e todo o resto que pertencesse ao sobrenatural. Nos anos seguintes Anton ganhou uma grande reputação como um dos primeiros "caça-fantasmas" da nação.

LaVey percebeu desde cedo que vivia em uma época de mudanças e que faltava muito pouco para o espírito de liberdade explodir sem nenhum controle como jamais visto na história. Em breve uma América branca, machista, protestante e conservadora assistiria ao movimento feminista queimando soutiens, aos panteras negras ganhado as olimpíadas, à valorização da liberdade e do hedonismo entre os jovens, uma revolução “espiritual” movida a drogas capitalizada em Woodstock e uma subseqüente fragmentação religiosa para algo cada vez mais mutante e individual.

Com olfato apurado, LaVey sabia que havia a necessidade de dar forma e voz a todas estas mudanças, era necessária uma oposição pública à estagnação que, em especial, o Cristianismo havia nos trazido. LaVey não estava simplesmente no lugar certo e na hora certa, ele era também a pessoa certa. Acima de tudo ele sabia que novos tempos estavam chegando e que se não fizesse alguma coisa neste sentido, outra pessoa o faria, e provavelmente com muito menos talento do que ele.

Viu que deveria haver um novo arauto para a senso de justiça e liberdade que estava se formando, alguém que entendesse as dores e prazeres do ser humano, que dividisse conosco nossas próprias paixões e fraquezas mas que ainda assim fosse um modelo de vida, força e sabedoria. Ele começou a perceber que a maior parte de nosso progresso, seja na ciência, na política ou na filosofia, foi feito por aqueles que se rebelaram contra “Deus”, a "Igreja", as "Autoridades" ou quem quer que ditasse o status quo de uma dada sociedade.

Era necessário um representante para este espírito revolucionário, criativo e irrepreensível, que sempre habitou nos homens e mulheres superiores e que fervilhava como nunca nos tempos de então. Só havia única figura que preenchia com perfeição este espaço, e isso estava bem claro para LaVey desde o começo de sua vida, uma deidade cuja rebeldia e natureza apaixonada havia sido descrita tanto com admiração como com medo desde o obscuro principio de nossa história: Satã, Lúcifer, ou popularmente, o Diabo.

Por qualquer nome que tenha sido chamada, esta figura sempre assombrou a humanidade tentando-a com as doces delicias da vida e iluminado-a com mistérios ocultos antes destinado apenas aos deuses. O diabo sempre defendeu que o homem deveria experimentar, e não simplesmente acreditar. Ele foi sempre aquele para quem, com segurança, podíamos pedir poderes e que sabia vingar-se e retribuir justamente as pessoas segundo seu merecimento. Satã nunca foi um deus etéreo do além, mas sempre uma deidade carnal e terrena - e mais importante: presente! Ao invés de criar pecados para aumentar a culpa, Satã sempre encorajou a indulgência. De todas as figuras mitológicas criadas pelo homem, Lavey nos mostrou que o diabo foi à única deidade que realmente soube nos entender.

The Black House

Em 1955, LaVey cansou-se da carreira como fotógrafo policial e decidiu deixá-la de modo a ter mais tempo para se concentrar nas arte negras e em si mesmo. Tornou-se exorcista e hipnotizador, fortalecendo os seus ganhos tocando órgão. Mudou-se também com a sua família para um apartamento perto da praia. Foi nessa altura que Anton comprou de um ex-colega do circo o seu primeiro animal de estimação - um leopardo negro de dez semanas, chamado Zoltan. LaVey costumava levar Zoltan a passear na praia, onde era com certeza o par mais excêntrico que passeava pela área, para o horror dos pedestres.

Conforme a fama local aumentava, LaVey começou a receber a imprensa para falar sobre suas práticas singulares e estranho animal de estimação. Ele atraiu muitas personalidades invulgares que se juntaram ao grupo de amigos que fez durante os seus anos de circo e puteiros. Ele organizava reuniões dentro de sua casa que logo ficaram mal faladas. Quando os rumores sobre o que estava exatamente acontecendo dentro das paredes da sua casa  começaram a espalhar, Anton decidiu mais uma vez que precisava se mudar-se. Ele procurou então uma casa grande o bastante para receber seus amigos e longe dos seus vizinhos curiosos, um lar que que pudesse decorar à sua imagem. Anton conseguiu tal lugar na R a California 6114. Nascia a infame "Black House", onde LaVey morou até à sua morte em 1997.

A Black House é um personagem à parte na história do Satanismo Moderno, visto que nela ocorreram as primeiras reuniões, os primeiros rituais, e onde LaVey escreveu a maior parte de seu material publicado. Construída em um estilo virtóriano, ela era seria com o tempo conhecida como a residência de LaVey e como a futura sede física da Church of Satan. A casa em questão já era coberta de lendas, antes mesmo de LaVey a comprar, e provavelmente este foi um dos fatores decisivos que o fez optar por sua aquisição.

O primeiro proprietário da casa foi um capitão da marinha que aportou pela última vez na Califórnia em 1887. Nascido na Escócia passou seus seis anos de casamento vivendo feliz no novo mundo. Até que sua mulher desapareceu em circunstancias misteriosas. Após uma série de buscas infrutíferas o capitão foi embora da América, supostamente amaldiçoou o lugar e nunca mais foi visto.

Quando foi conhecer a casa pela primeira vez a mulher que a apresentava já estava desanimada, pois sabia que tinha um verdadeiro elefante branco na mão, mal sabia ela que o comprador ela tão excêntrico quanto aquilo que estava para ser comprado. Ela mostrou a ele cada um dos 13 quartos e revelou que o local já tinha sido usado diversas vezes para realizar seções espíritas e portanto a casa estava coberta de passagens secretas, painéis escondidos e mecanismos maliciosos capazes de fazer o bolso dos charlatões continuarem cheios de grana no final de cada mês.

No inicio do século a casa havia sido usada para abrigar um hotel de má reputação que levou o nome da rua em que estava. O 'Hotel Califórnia' seria mais tarde relembrado pelo grupo Eagles em sua música de mesmo nome em uma referência explícita a Anton LaVey e sua Igreja com a qual tiveram estrito contato durante a década de 70. Depois do grande terremoto de São Francisco em 1906, uma enorme lareira foi construída no salão principal com as pedras supostamente trazidas de ruínas na Inglaterra. Incrivelmente negras e incrivelmente duras elas poderiam de fato ser associadas aos antigos altares druidas. A lareira foi construída de modo relativamente desproporcional e seria vista como grotesca e pouco prática para qualquer um, exceto LaVey. Eventualmente este salão principal se tornaria a câmara ritual onde seriam executados os primeiros ritos do Satanismo Moderno e a lareira, a base de seu altar.

A primeira coisa que Anton fez ao mudar para a casa foi pintá-la inteiramente de preto. Após uma infrutífera procura ele concluiu que não havia qualquer nenhuma tinta preta no mercado que fosse tão negra quando ele gostaria, então usou tinta náutica para submarinos para conseguir o resultado desejado. As mudanças internas foram menores, mas não foram poucas; papeis de parede, assoalho para trocar, bonecos de cera, e algumas outras reformas. De qualquer forma o Halloween se aproximava e LaVey estava pronto para mostrar sua casa para os amigos em grande estilo.

Ele organizou a primeira das festas noturnas que a Black House passou a oferecer. Foi um sucesso estrondoso, não somente pela “festa temática” ser muito bem preparada, mas pela curiosa lista de convidados que faziam da festa um lugar muito interessante de se estar. Ao se notar rodeado de pessoas notáveis que ouviam suas ideias e curtiam bons momentos juntos ficou óbvio para LaVey que novos eventos, ainda mais ousados e grandiosos, deveriam ser organizados.

Morbitvs Vividvs