quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O Pânico Satânico



Chegaram os anos 80 e o satanismo era um fato. Não era mais uma lenda como nos anos 50, uma excentricidade como nos anos 60, nem moda da vez como na década de 70. Era algo real que crescia, já havia mais de uma igreja satânica e era algo levado a sério por uma porção de pessoas. Na visão dos conservadores da época, era algo a ser combatido. Além disso as organizões satânicas começaram a se multiplicar e sem uma responsabilidade central era inevitável que logo aparecessem os estúpidos. Da indignação reacionária e da estupidez coletiva nasceu a década do Pânico Satânico.

A onda de medo foi iniciada com o livro “Michelle Remembers” de Lawrence Pazder, no qual por meio de seções de hipnose Michelle relatou ao autor os mais sórdidos detalhes de suas experiências com os satanistas. No livro ela contou como tinha sido torturada aos cinco anos por um culto satânico que quase a matou de fome, vomitaram nela, a estupraram e a eletrocutaram. No final, a largaram dentro de um túmulo onde jogaram animais mortos. Após um ano, eles a deixaram ir, e ela "esqueceu" tudo até que começaram suas sessões de hipnose vinte e dois anos depois.

O chamado Ritual de Abuso Satânico, ganhou as manchetes e se tornou uma idéia popular. Descrevia atos como banhar-se com sangue dos mortos, comer fezes com a familia, sacrificar crianças e animais pequenos e toda espécie de atos repulsivos. As Memórias de Michelle diziam que os adoradores do diabo haviam construído uma rede internacional dedicada ao mal, ao abuso infantil, crime e imoralidade. O problema é que em paralelo a isso realmente existia uma rede internacional de satanistas.

O Pânico Satânico tomou conta da opinião pública e uma nova e outra hipócrita caça as bruxas tomou o ocidente. Basicamente os satanista passaram a ser acusados das mesmas coisas os cristãos dos primeiros séculos eram acusados de fazer pela Roma Pagã e que os Judeus foram acusados por pelos cristãos medievais. De fato, muitos outros grupos já foram vítimas da histeria popular infundada inclusive maçons, protestantes, pagãos e  comunistas. Nos anos 80, mais uma vez “pessoas más queriam dominar o mundo” e as mesmas mentiras frutos do medo do desconhecido voltavam a tona em uma nova forma que encontrava no satanista modernos seu mais perfeito bode expiatório.

As acusações começaram a se multiplicar sempre sem provas, frutos de suspeitas seções de regressão. Não é nem preciso dizer que o pânico satânico foi alimentado principalmente pelos cristãos evangélicos conservadores, mas o fato é que toda a sociedade se mobilizou no assunto, mostrando o quanto a humanidade ainda é refém do status quo religioso. Médicos e figuras políticas entraram no jogo e alguns casos tornaram-se assunto de investigações policiais e casos de júri.

Não demorou para que estas acusações doentias encontrassem mentes não mais saudáveis criando uma espécie de circulo vicioso.

Richard Ramirez membro da Church of Satan de mente fraca e estimulado por este cenário em que vivia tornou-se um serial killer que matava, estuprava e roubava em nome do diabo. Frequentemente mutilava os corpos, e deixava pentagramas desenhados no local do crime. Pensava que o poder de Satã iria protegê-lo.

Como qualquer outra lenda urbana as acusações do Pânico Satanico contra o satanismo aos poucos cansaram o publico e sairam de moda, mas não antes de causar diversos danos a reputação e vida de diversos indivíduos e deixar novamente a lição histórica do que a estupidez pode fazer quando se torna um conceito popular. Foi nesta época complicada que algumas poucas pessoas aproveitaram a má fama do satanismo para ganharem um pouco de destaque. E isso aconteceu não só nos diversos pastores cristãos “especialistas” em satanismo como dentro do próprio satanismo moderno. Alguns autores desenvolveram formas de satanismo que se distinguem ela afirmação da sua necessidade de ser sinistra e "má". Foi mais ou menos neste momento que nasceram algumas organizações satânicas como a Church of Lucifer, de quem falaremos mais na segunda parte do livro, a Order of Nine Angles, que abordaremos no capítulo seguinte e a marginalmente satânica Temple of the Vampire, que veremos mais para frente.

1996

O milénio virou rev Mansonconhecendo uma geração que nasceu quando a Church of Satan já era história e que passaou a infância vendo o diabo como personagens de desenho animado. Depois da grande deflagração satânica de LaVey, a formalidade iniciática trazida pelo Templo de Set e o Zeitgeist da Order of Nine Angles os satanistas, e o mundo, se encontraram em uma situação completamente nova. Estas organizações continuaram a fazendo um trabalho interessante, surgiram algumas outras e existem boatos de uma eminente reorganização da Church of Satan. Mas esta época apresentou um contexto novo e o desenvolvimento do satanismo prosseguiu de uma maneira diferente desde então.

Em especial houve a necessidade de se aprender a lidar com a nova realidade apresentada pela ascensão da Internet e isso trouxe ameaças e oportunidades para o satanismo. A parte boa é que desde então é possível para qualquer pessoa interessada ter acesso a textos, livros e rituais que antigamente lhe custariam muito mais esforço, tempo e dinheiro. Quem nasceu depois desta época não faz idéia de como era difícil encontrar informações antes dos anos noventa. Graças a isso vivemos uma liberdade criativa muito maior e a evolução acontece de forma múltipla e dinâmica.

Os sites de satanismos se multiplicaram, muitos sem qualquer ligação com os grupos já mencionados.  A consequência imediata é que houve uma mescla maior entre o satanismo e outras escolas de pensamento, com destaque para a magia do caos. Com isso a postura com relação aos rituais e prática mágica dos satanistas de então se tornaram muito mais diversificadas. Os indivíduos que se destacaram nesta fase nova eram tão diferentes de seus antecessores como diferentes entre si, podemos citar entre eles Michael W. Ford, E.A Koetting, Matt Paradise e mesmo Donalt Tyson entre outros. Alguns destes se dizem defensores do único satanismo verdadeiro, outros fogem do título de satanistas mas todos são indiscutivelmente herdeiros de LaVey ou no mínimo crias diversas da Era Satânica.

A parte ruim desta facilidade de acesso ao conhecimento é que a internet e mais recentemente as redes sociais criaram um ambiente onde é muito fácil existir algo que chamo de 'satanistas não-praticantes'. Pessoas que cultivam uma imagem satânica mas que são na verdade fracassados. Desde esta década tornou-se cada vez mais fácil encontrar alguém que se diga satanista mas muito mais difícil encontrar um de verdade. Acredito que isso aconteça porque sem um grupo real presencial, sem convívio, reuniões, contato social, etc.. é muito mais fácil falar sobre satanismo do que vivê-lo.

Não está claro como essa geração vai resolver este problema. Talvez a própria tecnologia forneça alguma solução. Talvez isso nem mesmo seja realmente um problema pois pode servir como uma espécie de peneira para separar os indivíduos realmente notáveis da massa que pensa que é elite. O modelo dos pequenos grupos satânicos que usem, mas não se limitem a, o mundo digital ou o modelo da criptocracia satânica me parecem ser promissores. Outra questão pendente e que uma hora ou outra terá que ser encarada por alguém é a consequência da enxurrada de influências esotéricas no satanismo atual, que sem dúvida fariam LaVey e mesmo Aquino levantar uma sobrancelha. A diversidade é realmente interessante, mas metafísica demais e resultados de menos é um convite ao devaneio. A falta de foco e o desejo de parecer místico demais pode levar os satanistas do amanhã por terrenos pantanosos.Ou

Outro aspecto do satanismo anos noventa foi o que LaVey chamava de "Cultura do Apocalipse." Se a geração que nasceu nos anos 50 cresceu sob a sombra de uma guerra atômica e assimilou a possibilidade de uma iminente destruição do planeta. A geração dos anos 60 uniu esta inevitabilidade com nossa destruição pelo descontrolado crescimento populacional. Os anos 70 compreendeu o desastre ecológico para o qual caminhamos. Os anos 80 conheceu uma nova ameaça global desta vez sob a forma de crises políticas globais. Os anos 90 trouxeram a profileração da AIDS e a ameaça de outras pandemias. Os anos 2000 apresentaram ao mundo a ameaça terrorista e o fantasma do colapso financeiro mundial. Ou seja, se hoje na década de 10's existe algo com que estamos acostumaos, este algo é o Fim do Mundo.

Mas muitas pessoas ainda não conseguem aceitar isso: o mundo pode acabar a qualquer instante, ou muito mais provável, você pode morrer hoje. Após serem decepcionadas pelas fúteis promessas da cristandade algumas pessoas buscaram conforto no misticismo pagão ou em livros de auto-ajuda. Mas os satanistas, especialmente desde os anos 90, queriam simplesmente a liberdade de ser deixados em paz para criarem suas próprias realidades.

Disse LaVey já em idade avançada: “Esta é uma característica que eu divido com a nova geração de satanistas que poderia ser melhor rotulada como a Cultura do Apocalipse. Não que eles acreditem no apocalipse Bíblico, a última batalha entre o bem e o mal, mas justamente o contrário. Uma urgência, uma necessidade de pararmos de nos lamentar para que se o mundo terminar a amanhã nó saberemos que vivemos o dia de hoje. Basicamente, tocamos harpa enquanto Roma pega fogo."

Ao contrário do que pensavam os histéricos do Pânico Satânico da década de 80, os satanistas não estavam preocupados em dominar o mundo. Eles queriam sim ser senhores de seus próprios destinos. Não havia uma conspiração secreta, mas uma revolução invisível. Especialmente LaVey jamais pensou que o satanismo se tornaria uma religião dominante, mas tinha certeza de que ela infectaria e transformaria o mundo todo. E temos de concordar com ele quando notamos que os grandes avanços na história da humanidade não foram feitos no marchar dos milhares mas nos avanços dos poucos. O progresso é sempre feito por uma elite. E se deve haver um esforço por parte de alguém da massa, o esforço deve ser o de se elitizar para se encontrar com os seus e assim florescer.

É por isso que em seus últimos anos LaVey retomou o sistema de grottos, desta vez sem qualquer interferência pesada e estimulando o contato próximo entre os membros locais, a criação de círculos internos e uma independência maior quanto a sede na Califórnia. Um exemplo muito bem sucedido deste novo modelo de grottos resultou na Associação Portuguesa de Satanismo, que produziu um material de extrema qualidade nos anos seguintes. LaVey entendeu que assim como foi com ele nos anos 60, a mais satânica de todas as organizações é simplesmente o grupo de amigos. Observando o crescimento acelerado de igrejas dissidentes e do crescente ecletismo LaVey notou que era preciso mesmo impulsionar a criação de pequenos grupos de elites satânicas pensantes e independentes por toda parte. Mais era tarde demais, ele já estava velho e cansado e os satanistas já estavam fazendo isso por conta própria.

É significativo e simbólico que que LaVey tenha morrido nos anos 90. Pouco após sua morte foi lançado o último livro “Satan Speaks” que completaria o cânon laveyano do satanismo moderno. Este livro é essencialmente diferente dos demais, aqui LaVey já estava consagrado como satanista e podia se dar ao luxo de tratar de outros assuntos de seu interesse como questão judaica, o poder da mídia, o porte de armas, a morte da moda e outras particularidades. Anton vivia na pela a necessidade de individualização que cada satanista deveria viver. Afinal de contas não faria muito sentido se uma religião baseada no individuo acabasse criando um exército de pessoas esteticamente, e ideologicamente iguais. O livro é aberto com um prefácio escrito por Marylin Manson.

Marylin Manson foi em seu tempo um exemplo perfeito deste novo momento do satanismo onde o Indivíduo Destacado e a Cultura do Apocalipse se encontram. Quando LaVey morreu em 1997 e sua igreja demorou para revelar alguém com uma liderança e criatividade a altura e Manson preencheu este vácuo tornando-se o porta voz desta nova geração de satanistas, muito mais do que qualquer Magister de qualquer outra ordem. Marylin era ele mesmo um membro e reverendo da Church of Satan mas nunca se prendeu a isso refletindo a sua própria maneira este novo momento da historia do satanismo que oscilava entre o sensacionalismo e o elitismo. Quanto a isso basta ver sua produção artística como "1996" e demais músicas da época. O satanismo teve a sorte de transformar o pânico satânico em entretenimento para as massas e assim poderia viver satanicamente com tranquilidade para trabalhar pelo advento da Era de Satã ou para a próxima sessão de massagem.

As músicas de Mason foram apreciadas por milhares de pessoas acéfalas que não se davam o trabalho de prestar atenção em suas letras e por algumas pessoas de maior sensatez que justamente por entender suas letras aprenderam a não levar o espetáculo tão a sério. Manson foi um homem do shown bussiness e claramente tratou seus entrevistadores de acordo com a inteligência que demonstram ter. Exatamente como LaVey vendeu para as massas a chance de se elevarem, ou de pelo menos terem um pouco de diversão. E convenhamos se não teve a mesma profundidade literária de LaVey ao menos tem um melhor talento musical. Novos tempos exigiam novas estratégias.

O tempo de Manson já passou e hoje em dia embora o Diabo não esteja mais tão na moda, os satanistas conseguem viver suas vidas em paz. É verdade que ainda existem mesmo nas Américas grupos fundamentalistas de diversas religiões que preferem viver suas vidas segundo tradições orais de dois milênios atrás ou de mitos da era do bronze. Mas o satanista não é contra a existência de grupos fundamentalistas, ele só não quer ser obrigado a fazer parte deles. Cada um deve ser livre para viver da maneira que quiser, e isso está bem claro na política de “Total Environment” proposta por LaVey nos seus últimos anos.

De certa forma o ocidente já foi conquistado por Satã. Mas no cenário global observamos a polarização do antigo monoteísmo com os valores ocidentais. Em termos de mundo, embora hoje os países do ocidente sejam um ótimo lugar para o satanismo existe a sombra do crescimento do neo-pentecostalismo que trás novamente a tona as implicações políticas de uma maioria religiosa. Mas a maior ameaça nesse sentido vem do oriente. Internacionalmente o choque das civilizações é algo que não pode ser ignorado. O Islamismo é aceito liberalmente no ocidente enquanto engessa suas teocracias no oriente. Pouco depois do final dos noventa, em 2001 essa tensão estourou de vez e até hoje não sabemos como e quando isso vai acabar.

Em poucas palavras hoje temos duas alternativas: ou levamos sutilmente o inferno para o resto do mundo ou teremos impostas novamente as antigas restrições das quais já tínhamos nos livrado. Maomé nos aguarde, pois Moisés e Cristo já foram contaminados.

Toda essa situação nova foi bem própria da virada do milênio. As quatro características principais deste cenário para resumir são: Um enfoque do satanismo na pratica individual, O impacto da Internet, a Cultura do Apocalipse e a polarização global do liberalismo ocidental contra o modelo monoteísta encabeçado pelo islamismo. Como estes fatores vão se desenvolver e influenciar o satanismo do futuro é algo difícil de prever, mas eles já tiveram seu primeiro grande filhote, a Corrente 218, que será tratada no próximo capítulo.

A Corrente 218

Em um dos primeiros capítulos deste livro, afirmei que LaVey não se encontrava apenas no lugar certo, na hora certa, quando abriu os portões para que a chama infernal purgasse a hipocrisia da Terra. Ele também era a pessoa certa.

Acredito não exagerar quando afirmo que LaVey não apenas aproveitou uma onda, mas soube surfar nela. Cada passo que dava lhe mostrava adiante novos passos que podia dar, em relação ao Satanismo. Com o tempo sua criatividade parece ter se acalmado e hoje não é exagero afirmar que a Church of Satan se tornou uma organização pública de eventos satânicos. Seus novos membros criaram novos materiais, notáveis, mas de maneira mais reclusa. Se antes era obrigatório se ter uma versão, nem que fosse marginal, da Bíblia de LaVey, hoje poucos sabem quem são os líderes da Igreja de Satã, ou qual material ela anda publicando.

Mas isto não é dizer que a Church se desviou de seu caminho ou que perdeu a força. LaVey sempre deixou claro que sua visão de Satanismo era uma visão materialista, terrena e hedonista. Não é de se admirar que muitos Satanistas mais espiritualizados acabassem buscando, então, novas fontes de conhecimento. O Templo de Set foi uma delas, mas nem de longe a última ou a mais extrema.

A chamada corrente 218 ou corrente anticósmica é uma das mais recentes expressões do Satanismo contemporâneo. Não sabemos ainda qual será seu impacto no futuro mas achei por bem registrar este novo impulso no final do livro. Parte de sua ascensão se deu graças a banda Dissection de quem falaremos em seguida. É verdade que a relação do Satanismo com o metal não é algo recente. Desde os anos 60 esta temática é usada, mas diga-se de passagem nunca foi realmente abraçada pela Church of Satan - dado que LaVey era mais adepto do jazz e Peter Gilmore sempre tendeu para a música clássica. Hoje contudo parece que o Black Metal finalmente encontrou sua própria filosofia e foi muito além da estética.

Apesar de falar de deuses antiquíssimos e realidades ancestrais - talvez heranças diretas da ancestralidade clamada por ordens como a ONA ou o Temple of the Vampire - as primeiras menções da corrente 218 são bem recentes e ocorrem pouco antes da virada do último milênio. Ela provavelmente foi fruto da era da internet, pois é formada pelo conhecimento e influencia de várias escolas sobre o Satanismo, sendo um verdadeiro sincretismo do caminho da mão esquerda. Meu irmão em Satã, Pharzhup resumiu muito bem este ponto em um artigo dedicado ao assunto em seu zine Lucifer Luciferax:

"A fundamentação da corrente se dá a partir de um vasto sincretismo de ramos e vertentes do Caminho da Mão Esquerda. Tal sincretismo busca sintetizar a essência de cada aspecto que compõe a heterogeneidade e aplicá-la na consecução das proposições fundamentais. Dentre as diversas tradições que coadunam forças que se combinam na Corrente 218 citamos: a magia do Caos, o Satanismo (Tradicional e Moderno), o Luciferianismo (Tradicional e Moderno), a tradição Draconiana, a tradição Tifoniana, a Bruxaria Sabática, a Qabalah Qliphótica, Thelema, o Tantra, a Quimbanda, o Vodu e cultos ligados à Morte."

Embora essa definição seja minunciosa não será difícil encontrar quem discorde dela, especialmente quanto à influência da Thelema e do Satanismo Moderno. Creio que esta influência seja apenas histórica, para não dizer meramente cronológica. Quanto à Thelema, é bem clara a influência de Kenneth Grant mas não do que veio antes dele. Quanto ao Satanismo Moderno, a maioria dos adeptos afirmará claramente um completo repúdio à Church of Satan. A razão é simples; o Satanismo do LaVey envolve uma exaltação dos prazeres da carne enquanto que a Corrente 218 advoga sua aniquilação em prol de realidades superiores. Para os satanistas anti-cósmicos o mundo não é uma festa mas uma prisão; e eles estão em rebelião.

A origem deste tipo de Satanismo pode ser traçada a partir da criação, na Suécia, da Ordem Misantrópica Luciferiana (MLO) em 1995. A base dos ensinamentos da MLO é a Caosofia, a crença de que o Caos é uma realidade pan-dimensional, com uma quantidade infinita de realidades em contraposição ao Cosmos, que tem apenas uma realidade, três dimensões espaciais e um tempo linear. É entendimento do grupo que o verdadeiro Satanismo não pode pertencer à sociedade moderna, que tem como base modelos únicos e fixos do que é ou não real. Podemos dizer que a MLO trouxe uma espécie de cabala satânica. Essa idéia não é nova e já tinha sido levantada pelo pessoal do Templo de Set, mas não com a mesma profundidade.

Contudo foi apenas em 2002 que foi publicado o Liber Azerate, contendo as bases destes ensinamentos. Escrito por Frater Nemidial, o grande objetivo do sistema proposto neste livro, e nas obras que o seguiram, é a liberação da 'Chama Negra' através da transcendência das limitações do espaço e tempo que formam o Cosmos. Dai o nome anti-cósmico. Esta Chama Negra é o "Eu Superior", que vai muito além do ego vulgar do Satanismo primevo.

O processo de transcedência anti-cósmica passa pelo despertar, fortalecimento e ascensão da Chama Negra, ou Dragão Negro, como as vezes é chamado, que jaz dormente nas almas dos fortes. Essa ascensão por sua vez só pode ser alcançada por meio da obtenção da sabedoria tal como retratada pela tocha de Lúcifer, o fogo de Prometeus, o presente de Samyaza, o Chama Negra de Ahriman, no Veneno de Taninsam, no Fogo sem fumaça de Tifon, etc.. Todos estes deuses anti-cósmicos são reconhecidos como aspectos de uma realidade muito mais profunda. Azerate é, por fim o nome oculto dos 11 deuses anti-cósmicos citados neste livro (Moloch, Beelzebuth, Lucifuge Rofocale, Astaroth, Asmodeus, Belfegor, Baal, Adramelech, Lilith, Naamah and Satan.) O valor numérico de Azerate" (Azrat) é 218 que dá título a corrente. 2+1+8=11, deve-se dizer representa todos os poderes anti-cósmicos presentes em todas as culturas antigas que combatem a tirania da ordem cósmica representada pelo número 10

E aqui apresenta-se, então, um ponto interessante. Obviamente desde que se criou a idéia de um "deus" das trevas - seja lá qual o nome que lhe deram - ele angariou seus seguidores. Agora a realidade de tal criatura, como a de qualquer outro Deus, só pode ser comprovada por seus seguidores. LaVey, na década de 1960, criou uma religião satânica associando Satã à mente e à natureza  humana. A primeira religião satânica afirmava que Satã era um reflexo de nosso sistema nervoso, que se não fosse aceito nos destruiria. Um dos cuidados de LaVey foi o de sempre deixar a metafísica de fora de suas crenças públicas - há os que afirmam que apesar de não crer na existência objetiva de uma entidade Satã, LaVey mantinha em uma caixa forte, dentro da Black House, um contrato firmado onde oferecia a alma a Satã. Foi uma religião cética, materialista e cínicia.

Agora suponha que Satã realmente exista. Qual seria a maneira que ele escolheria para criar um culto em sua própria homenagem, caso nos deixemos levar pelo pressuposto de que ele era, e é, uma das criaturas mais astutas da criação? A religião de LaVey abriu a porta para a criação de vertentes do Satanismo jamais imaginadas antes, nem mesmo pelos histéricos cristãos medievais. O esoterismo satânico que se desenvolveu daquele primeiro Satanismo californiano, se tornou uma das correntes mais brutais, místicas e extremas - como o próprio Satã.

O quão diferente esse caminho é do Satanismo de LaVey. Ambos reconhecem que o mundo material possui delícias e tragédias mas para a Church Of Satan o mundo é algo a ser gerenciado enquanto que para a corrente anti-cósmica o mundo é uma espécie de prisão da qual apenas os mais fortes conseguem se libertar. A corrente entretanto permaneceu em uma gestação sinistra, restrita ao MLO até meados de 2006, quando finalmente veio a público. O Dissection lançou o album Reinkaos, com letras de co-autoria do próprio Frater Nemidial. Este álbum tinha, de fato, o objetivo de trazer os ensinamentos da MLO para quem quisesse ter acesso a eles, e foi justamente o que aconteceu.

O álbum fala da sabedoria que não é meramente um conhecimento intelectual, mas fruto da experiência e do contato direto com os poderes obscuros. A Corrente 218 entende que para abrir os olhos do Dragão Cego, deve aniquilar a prisão ilusória que impede a ilimitada e eterna expressão de si mesmo. A meta dos seus adeptos é portanto fazer contato com estes poderes representados pelo Deuses Obscuros por meio de um ardoroso trabalho.

De fato não há nada de inédito nisto. Esta crença e esses métodos são bem próximos dos propostos pela Order of Nine Angles. Estes trabalho de superação cósmica podem envolver graves riscos físicos e mentais e colocar a própria vida em perigo, mas servem para fortalecer o satanista e tornar sua própria Chama Negra mais forte e acelerar a sua evolução anti-cósmica na conquista da gnosis negra.

Ai a filosofia anti-cósmica chega em uma aparente contradição. Como podemos nos libertar de uma prisão se nós somos parte dela? Se esta realidade, esta vida é uma ilusão, como podemos abrir os olhos?

O quão extremo esta resposta pode ser ficou claro quando, no mesmo ano do lançamento de Reinkaos, o vocalista e fundador do Dissection, Jon Nödtveidt, mostrou a porta de saída da prisão, se suicidando dentro de um círculo de velas com uma arma na mão e o Liber Azerate na outra.

Abaixo, a nota oficial divulgada pelos outros membros da banda:

"Jon Nödtveidt era um homem que vivia sua vida de acordo com suas convicções e vontade verdadeira. Poucos dias atrás, ele decidiu terminar com a sua vida por suas próprias mãos. Como um verdadeiro Satanista ele conduziu a sua vida de sua própria maneira e terminou quando sentiu que tinha cumprido o seu próprio destino. Nem todos terão a compreensão ou aceitação do seu trajeto pessoal nesta vida e além, mas todos devem respeitar a sua escolha.

“Todos nós, que se encontraram com ele nos últimos dias, podem assegurar que ele estava mais focado, mais feliz e mais forte do que nunca. É de nossa convicção, que ele deixou este mundo de mentiras com um risada de desprezo, sabendo que tinha cumprido tudo que se tinha proposto para que ele mesmo realizasse. O espaço vazio que deixa para atrás será preenchido com a essência obscura que manifestou através da sua vida e o trabalho com magia negra. Seu legado e o Fogo Luciferiano vão permanecer vivos através daqueles poucos que o conheceram de verdade e apreciaram seu trabalho pelo que realmente foi e ainda é. Como o objetivo de nosso irmão na vida e morte nunca foi o de "Descansar em Paz", desejamos a ele, em vez disso, vitórias em todas as batalhas que virão, até que o Destino Acósmico esteja completo.

" Pela glória dos Deuses Obscuros e o Caos Furioso!”
"218"

Se ele está no Inferno, como acreditam os cristãos, se apenas virou pó como acreditam os layeanos, ou se está livre para viver sem as amarras deste mundo como acreditam os anti-cósmicos é, de fato, uma questão de crença que não pode ser respondida. Mas independente de qualquer coisa isso levanta a questão: Até onde você quer chegar com o Satanismo? Até onde está dispostos a ir para atingir o ápice da sua evolução física, mental e espiritual? Até onde sabemos para onde estamos indo? Que preço estamos dispostos a pagar pela vida ou pela ilusão, como os anti cósmicos colocam, que levamos? Estas são algumas questões desafiadoras feitas pela corrente 218, e eles oferecem a versão deles de respostas para elas.

Crenças à parte, é inegável que se este foi um sacrifício, ele teve resultados. Com o lançamento do Reinkaose e o suicídio ritual do líder da banda, a Corrente 218 explodiu como contra-cultura e desde então podemos falar realmente sobre a existência de uma corrente cao-gnostica-satânica.

Conforme a filosofia e prática evoluiu (novamente temos aqui o Satanismo como algo eternamente em construção, um organismo que está se desenvolvendo e crescendo) a Ordem Misantrópica Luciferiana passou a se chamar Temple of the Black Light e de certa forma abriu a corrente 218 para o resto do mundo.

Com a mudança de nome o grupo deixou de ser tão fechado e, embora ainda bastante seletivo na entrada de membros, passou a abrir suas práticas e  encorajar as pessoas e outros grupos a conhecerem a praticarem seu sistema. Graças a esta abertura, a corrente 218 tornou-se, de certa forma, maior que o próprio grupo e ainda mais mutante e difícil de ser definida. Recentemente observa-se uma tendência a abraçar influências latino-americanas como a Quimbanda e o culto de San La Muerte.

Na declaração da ordem, podiamos ler que as principais influências da OML eram o Setianismo Draconiano, O Caos-Gnosticismo Sumeriano e a (Anti) Kabbala Kliffotica. Em termos práticos percebe-se que as influências mais fortes nesta corrente são as de Kenneth Grant e Andrew Chumbley e entre os adeptos nota-se até mesmo uma rejeição ao Satanismo LaVeyano tido como superficial. A Corrente Anti-Cósmica entende que o Satanismo ateísta, que defende apenas uma inofensiva adoração do ego, é algo que deve ser superado por ser fraco, pacifista e acomodado demais. Sinceramente creio que LaVey, se vivo, certamente também teria suas críticas contra eles, em especial pelo excesso de mistificações e pelo desprezo aos confortos e prazeres do mundo material. Seja como for é muito bom para o movimento que sua própria base seja alvo de críticas, pois isso o refinará ainda mais.

Freud já ensinava que "matar os pais" é algo próprio, se não necessário, do amadurecimento. Isso não quer dizer que você deve metralhar sua mãe ou esfaquear seu pai mas sim que deve tornar-se independente, deve aprender a se virar sozinho, pensar por si próprio e tomar responsabilidade por seus próprios atos. Assim é saudável ir intelectualmente além de LaVey e todo bom satanista faz isso. Mas com isso voltamos a velha questão da "Negligência dos ortodoxos passados." presente nos Nove Pecados Satânicos:

"Esteja alerta que esta é uma das chaves de lavagem cerebral,  aceitar algo como "novo" e "diferente" quando, na realidade, é algo que era outrora amplamente aceito mas agora é apresentado numa nova roupagem. Esperamos delirar com a genialidade do "criador" e nos esquecemos do original. Isto é feito para uma sociedade alienada."

Por um lado isso nos lembra que a própria filosofia da Church of Satan tinha bases muito mais antigas e profundas do que se imagina num primeiro momento, como aquelas citadas no prólogo, e que o Satanismo não surgiu do nada de uma hora para outra. Como mencionei no início deste livro ele evoluiu. Mas uma outra leitura poderia ser feita hoje sobre esse pecado satânico pois dificilmente existiria uma Corrente 218 atualmente se Anton LaVey não tivesse raspado a careca e aberto o caminho algumas décadas atrás. Ou talvez se existisse fossem muito diferente, e acredito, bem menos satânica.

Morbitvs Vividvs