segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Ānuttara Āmnaya & a Escola Kaula



Uma Introdução sobre a Tradição Tifoniana e suas Manifestações. Texto retirado da Revista Sothis, Vol. I, No. 5. Equinócio de Primavera de 2005 e.v.

Desde que iniciamos os trabalhos do Nu-Isis Templum O.T.O.,[1] venho insistindo na similaridade entre o Culto de Thelema e o Culto de Kālī amplamente abordado sob o prisma da interpretação Kula. Enfatizei a similaridade entre as técnicas sexuais da O.T.O. e a ampla rede de procedimentos kula que compõem a Iniciação Tântrica deste ramo desprestigiado do Tantra.

A renovação espiritual da O.T.O. «Ordo Templi Orientis» possui sua ênfase e bases Tântricas na A∴A∴ ou Ānuttara Āmnaya. Literalmente, o nome significa uma sutil «ānuttara» tradição «āmnaya», sendo, assim, a Suprema Tradição Tântrica. Seu gigantesco escopo é composto pela divisão de inúmeras seitas, cultos e sub-cultos do extremo Oriente. Āmnaya também significa linhagem espiritual, o que denota que o ensinamento desta Tradição somente é manifestado através de uma linhagem de Adeptos treinados nas técnicas que compõem o corpo do ensinamento Kula.

O Culto Tifoniano da O.T.O. é representado na Escola Kaula de Iniciação. Como o Tantra é uma tradição tão complexa, seus mestres desde o início procuraram meios para classificá-la, a fim de torná-la mais facilmente compreensível. Assim, criaram a ideia de tradições de linhagem «āmnaya», assentos «piṭha» e correntes. A abordagem Kaula, que é apresentada como a mais elevada forma de prática espiritual e como uma síntese das Escolas Tântricas da Mão Esquerda, promove uma ampla revolução no sistema ortodoxo religioso Hindu como uma reviravolta draconiana nas interpretações Tântricas do Sul da Índia.

A Tradição Kaula fora o ramo Tântrico mais revolucionário da Índia. Criado para conter o desenvolvimento da Tradição Bramânica, seus Adeptos eram os Tântricos mais radicais. Fora uma Tradição que chocara a sociedade indiana, pois o Círculo Kaula, fiel depositário do vāma-mārga, não media esforços para demonstrar publicamente como os verdadeiros Mistérios espirituais estavam sendo deturpados e corrompidos pela Tradição Bramânica. Tais Adeptos, vistos como Bruxos da Feitiçaria Tântrica Hindu, se valiam dos mais variados artifícios para adquirir elevados estados de consciência, tendo como principal ferramenta de trabalho o sexo sabiamente conjugado com a utilização de enteógenos. Por tais motivos, o Círculo Kaula é a mais temida Tradição Tântrica que já existiu na Índia e seus Adeptos, poucos nos dias atuais, são tidos como os mais decadentes tāntrikas pelos outros ramos da filosofia hindu.

Existe um adágio Kaula que diz: não existe nada superior ao Kaula. Esta frase é encontrada no Kulārṇava-tantra, onde o texto prossegue: Ó Deusa! O kula é o mais secreto dos segredos, a essência da essência, o mais elevado do elevado, dado diretamente por Śiva e transmitido de um ouvido a outro.[2]

O ramo Kaula do Tantra teve origem no século V d.C. e ganhou grande proeminência três ou quatro séculos mais tarde. Ele representa uma síntese do vāma-mārga e produziu um número significativo de iniciados e numerosas escrituras, muitas das quais, porém, se perderam. Esta linhagem de transmissão «santati» é formada de muitas escolas e sub-escolas que ainda são compreendidas de modo inadequado.

Kaula ou kaulismo, como esta corrente Tântrica é às vezes chamada, tornou-se rapidamente quase um sinônimo do Tantra ao norte da Índia. Por volta do século XIII, a Tradição Kaula já havia também penetrado em muitas escolas no sul da Índia e que eram de tradição Siddhānta.

O que marca o ramo Kaula do Tantra é uma forte presença do elemento śakti tanto na teoria quanto na prática. Uma manifestação disto são os ensinamentos sobre o poder da Serpente de Fogo «kuṇḍalinī-śakti»; outra é o fato de que as mulheres sempre representaram um papel significativo no Círculo Kaula tanto quanto consortes tântricas e, mais significativamente, como iniciadoras. Este é um ponto de intersseção entre a interpretação de Crowley e as filosofias tântricas do Oriente. Crowley insistia em observar que a tradição arcana sanciona a iniciação da Sacerdotisa pelo Sacerdote, mas proíbe o procedimento oposto.[3] Talvez isso explique o porquê de tantas das operações mágicas dele falharem tanto para ele quanto para suas Mulheres Escarlates que, na maioria das vezes, terminavam por apresentar sérios problemas psicológicos ou sucumbiam à insanidade.

Alguns aspectos da Tradição Kaula também podem ser encontrados em muitas outras tradições tântricas, principalmente a tradição Śrī-Vidyā do sul da Índia e a tradição Krama da Caxemira.

O termo Kula possui muitos significados diferentes, dentre eles grupo, família ou multidão. Tecnicamente, o termo denota Realidade definitiva, além dos princípios transcendentais de Śiva e Śakti. Mas o termo necessariamente converte-se em família cósmica, o que está mais adequado aos princípios da O.T.O.,[4] pois seus membros, os Adeptos da Ānuttara Āmnaya, operam de maneira sutil e sigilosa perpetuando o escopo energético da A∴A∴.

Como observei em minhas artigos anteriores, essa Tradição teve seu berço nos cultos afro-tântricos da África primordial. Após se manifestar no Xamanismo Africano, os Cultos Tifonianos atingiram, de maneira organizada, sua apoteose nas Dinastias pré-monumentais do antigo Egito. Com esta organização sistematizada, a Tradição Draconiana foi chamada de Tradição Tifoniana. Este termo já fora usado extensivamente no Século XIX pelo brilhante Gerald Massey ao longo de suas obras de religião antiga, como uma descrição para aquelas pessoas que adoraram a deusa primordial, identificada nos céus como a grande constelação da Ursa Maior. A adoração desta deusa precedeu todas as formas de adorações masculinas e sua essência ainda hoje é refletida como a Mãe Natureza.

Nesta fase primordial da civilização, o papel do macho na procriação não era compreendido. Naquela época, gravidez e nascimento eram processos misteriosos que envolviam a fêmea que parecia se dividir enquanto dava a luz. Nesta fase, a deusa Tifon e seu filho eram tidos como uma entidade comum na concepção teogônica desta Tradição.

A civilização evoluiu. Ocorreu, assim, uma mudança gradual de percepção e a adoração moveu-se de uma fase matriarcal lunar (a deusa) para uma fase patriarcal solar (macho-deus). A compreensão do papel do macho na procriação resultou em um balanço dramático no pêndulo universal: o princípio masculino recebeu maior ênfase que o princípio feminino. As deidades não escaparam deste mar de revisionismo e a guerra outorgou ao Deus masculino a supremacia, instaurando assim uma nova ortodoxia. Aqueles que não se renderam ao novo culto e continuaram sua adoração à deusa primordial, foram taxados como antiquados, estranhos e perversos e, finalmente, como uma ameaça. A visão solar foi consolidada em uma política de estrutura patriarcal de sociedade e isso conduziu na instauração generalizada de uma adoração solarita que, mais tarde, seria a concretização de um conflito político gerando perseguições aos adoradores da deusa. Os Adeptos da «Velha Tradição Draconiana» não ficarem ilesos a este processo.

Os Tifonianos passaram a ser vistos como opositores, como aqueles que iam contra as tradições instituídas. Ao longo das dinastias egípcias, Seth, Seth-Tifon ou só Tifon recebia uma descrição mitológica como «opositor», sendo continuamente representado como em uma batalha perpétua contra Horus. O leitor deve levar em consideração que a mitologia sempre acompanha a mudança de paradigma que envolve os povos. Nesse particular, pode haver contradições entre uma versão mais recente de um mito com outras mais antigas do mesmo. A título de exemplo, nas dinastias solaritas, Tifon é descrita junto com Seth como o tormento perpétuo de Hórus, ao contrário da Deusa Primordial de tempos mais remotos. No mundo Juidaico-Cristão, cuja tradição fora influenciada pela civilização egípcia, o opositor foi identificado como Satanás (Satã), Lúcifer, o Diabo. O termo Satã é derivado de uma conjunção entre o Deus Seth e a Deusa Lunar Egípcia An. Nestas tradições, a mulher é retratada como a sedutora que, com o uso do sexo, sensualidade e desejos corporais é considerada imoral e suja.

A perspectiva Tifoniana, entretanto, é muito mais ampla do que a consciência humana é capaz de conceber; ela é uma consciência cósmica. O que nós fazemos em nosso trabalho mágico é ampliar nossa consciência para além dos Círculos do Tempo e do Espaço para conseguirmos captar as emanações estelares desta Corrente Mágica. Para isso, a O.T.O. se vale de técnicas psico-sexuais e da utilização de enteógenos sabiamente manipulados para abertura de portais transplutonianos, o que possibilita a canalização desta Corrente.

Existem inúmeras interpretações para o termo «tifoniano». Porém, sua maior implicação é sempre a expansão da consciência para além dos níveis normais de percepção. Assim, somos interpretados como opositores por sermos tifonianos. Hoje em dia, essa oposição está relacionada com a aceitação de uma visão limitada de nós mesmos. O poder do tufão destrói essa falsa percepção de si mesmo de maneira a podermos perceber um Universo além dos Círculos do Tempo e Espaço.

Os Xamãs Africanos, os Sacerdotes Egípcios, os Adeptos Tântricos do Extremo Oriente e outros Iniciados dessa época e desse calibre surgiram nos primórdios da estrutura mental da consciência e ajudaram a faze-la predominante. Portanto, a tecnologia psicoespiritual da Tradição Draconiana é o produto da estrutura mental da consciência em seu alvorecer. Ela foi a tecnologia extática do Xamanismo, que remonta à Idade da Pedra. Embora o Xamanismo tenha sido datado de cerca de 25000 a.C., provavelmente é muito mais antigo. Como sabemos por outros contextos, a ausência de artefatos não implica necessariamente a inexistência do sistema de crenças com o qual eles estão associados.

O Xamanismo, completamente embasado na Tradição Tifoniana, é a arte sagrada de mudar o próprio estado de consciência a fim de penetrar em outros domínios da realidade, nos quais habitam os espíritos. A palavra xamã é de origem siberiana (Tungúsia) e denota aquele que tem experiência em viajar pelos mundos dos espíritos. Ao concentrar-se no som de um tambor, de um maracá ou de outro instrumento de percussão, ou então pela ingestão de substâncias psicotrópicas (como o cogumelo agárico amanita muscaria ou a planta mágica ayahuasca), os xamãs mudam radicalmente o seu campo de percepção para que possam se comunicar com o mundo dos espíritos. Nisso, não são movidos pela curiosidade vã; antes, buscam obter poderes e conhecimentos essenciais para o bem-estar psíquico e corpóreo da comunidade a qual pertencem.

De acordo com algumas autoridades, entre as quais destaca-se Kenneth Grant, o Xamanismo é de origem africana. Outros vêem o Xamanismo como uma tradição de âmbito mundial que surgiu independentemente em diversas culturas. Pessoalmente, inclino-me a aceitar a primeira opinião, que associa o Xamanismo especificamente ao pano de fundo cultural da África e da Ásia Central. Segundo esse mesmo ponto de vista, a Tradição Tifoniana, sob o ponto de vista de sua cultura, é um fenômeno essencialmente africano.

O Xamanismo Siberiano, imbuido de todos os aparatos característicos que compõem a Tradição Tifoniana, sofreu, na Ásia Central, as mesmas discriminações que sofreram os adoradores da deusa no Egito e África. Aqui novamente ocorre o núcleo de uma renovação espiritual que atingiu a Índia. O Tantra contém elementos do Xamanismo Africano e Siberiano, tendo absorvido muitas doutrinas e práticas da Tradição Tifoniana. A transição do Xamanismo ao Tantra aconteceu na época em que surgiram no Oriente as primeiras cidades-estado e os xamãs passaram a ser perseguidos e mortos pelos representantes da religião oficial. Para não serem encontrados, eles tiveram de parar de bater seus tambores e, obrigados pela situação, elaboraram métodos silenciosos de alteração da consciência. Foi assim que surgiu a tradição tântrica.

Em geral, os xamãs ficam estimulados durante as viagens e, às vezes, dançam ou ficam extremamente agitados. No samādhi, a calma chega a ser tão profunda que muitos processos mentais param de se desenrolar por algum tempo.

O enfraquecimento da tradição xamânica determinou a ascensão das cidades-estado e o concomitante colapso das comunidades tribais às quais os xamãs serviam. Para bem compreender esse colapso, podemos encará-lo como sinal de uma mudança de consciência que intensificou e individualizou mais a autopercepção do homem. Tudo isso está associado ao surgimento da estrutura de consciência mental.

O xamã, quase sempre um homem, é um tecnólogo sagrado privilegiado que trabalha em prol da sua comunidade. Essa função é partilhada pelo sacerdote tāntrika que cumpre os seus sacrifícios e demais rituais para o bem dos outros, quer sejam os espíritos dos seus ancestrais, quer a sua família imediata, quer toda a comunidade tântrica.

A hipótese que faz derivar o Tantra de um Xamanismo proibido pelo Estado é problemática, mas não há dúvida de que muitos aspectos e temas centrais do Xamanismo se encontram também no Tantra. Dentre os elementos que constituem o xamanismo e lhe são peculiares, temos de considerar estes como os mais importantes: (1) uma iniciação que compreende o desmembramento, a morte e a ressurreição simbólicas do candidato, e que implica, entre outras coisas, uma descida dele aos infernos e sua posterior ascensão aos céus; (2) a capacidade que o xamã tem de fazer viagens extáticas na qualidade de médico e psiconauta (ele sai em busca da alma do doente, roubada pelos demônios, captura-a e devolve-a ao corpo; conduz a alma do morto a Amenta, etc.); (3) o domínio do fogo (o xamã encosta no ferro quente, anda sobre brasas, etc., sem se queimar); (4) a capacidade do xamã de assumir a forma de diversos animais (voa como os pássaros, etc.) e de ficar invisível.

O Tantra é uma tradição iniciática. É governado pela idéia da progressiva transcendência (desmembramento) da personalidade egóica humana. Encontramos ensinamentos tântricos que expõem o seu processo como um desmantelamento gradual da consciência ordinária. Isso corresponde ao desmembramento associado a fórmula da corda xamânica, uma hipnose coletiva; o xamã, levando na boca uma faca afiada, sobe pela corda atrás de um menino até ambos sumirem de vista. Depois de algum tempo, os membros cortados do menino caem lá de cima. O drama termina quando o menino é ressuscitado pelo xamã. Uma fotografia tirada durante o processo só revela o xamã sentado no chão, sozinho e talvez com um sorriso astuto nos lábios.

A introversão extática e a ascensão mística do tāntrika equivalem ao vôo extático do xamã, e a função de ensinar do tāntrika corresponde à função xamânica de guiar as almas. Além disso, muitos poderes xamânicos são reconhecidos pelo Tantra, que os chama de siddhis (perfeições ou realizações): entre eles conta-se o poder de invisibilidade, que também é atribuído aos xamãs. Por fim, o domínio que o xamã tem sobre o fogo — uma proeza exterior — tem o seu paralelo no domínio do tāntrika sobre o fogo interior, especialmente sobre o calor psicofisiológico gerado quando da ascensão da força vital no kuṇḍalinī-yoga.

Também uma das técnicas mais conhecidas do yoga — o sentar-se de pernas cruzadas em alguma das diversas posturas yogues «āsana» — tem a sua prefiguração xamânica. No livro Where the Spirits Ride the Wind, a antropóloga norte-americana Felicitas Goodman examinou diversas posturas xamânicas que são usadas para provocar estados de êxtase ou viagens astrais. Cada postura tem um efeito específico sobre a mente; o Adepto Tifoniano é capaz de entrar em diversos estados de consciência mediante o uso de determinadas posturas xamânicas.

Se os xamãs demonstram o seu domínio sobre o fogo pegando brasas ardentes nas mãos, como os sacerdotes Kahuna da Polinésia, os tāntrikas destacam-se na arte do auto-aquecimento disciplinando-se a ponto de fazer correr suor de todos os poros. Há uma antiga prática xamânica que consiste em ficar sentado no meio de quatro fogueiras em pleno verão, com o sol escaldante brilhando lá em cima. Eu pratiquei essa antiquíssima técnica por um longo período. Quer através da prolongada retenção da respiração, quer através da transformação do impulso sexual em energia vital (ojas), os tāntrikas buscam do mesmo modo canalizar as tendências naturais do corpo-mente e criar assim uma pressão interior que se traduz em calor fisiológico. Eles se sentem como se estivessem consumindo-se em chamas. Então quando a experiência chega ao seu ponto máximo, ocorre uma radical mudança de estado e todo o ser deles fica iluminado. Eles descobrem que são essa luz, a qual não tem fonte, mas é ela mesma a fonte de todas as coisas.

O estado de iluminação é para o tāntrika o que a viagem mágica para outros mundos é para o xamã. Ambas as experiências se diferenciam radicalmente da realidade e da consciência convencional. Ambas têm um profundo efeito transformador. No entanto, o tāntrika, que viaja para dentro, descobre o quão inúteis são, no fim, todas as viagens, pois percebe que não há viagem que possa aproximá-lo ou afastá-lo da própria Realidade eterna e onipresente que é a meta da sua odisséia espiritual.

O xamã vive no ambiente dos mundos sutis da existência, os quais procura dominar. A marca distintiva do êxtase xamânico é a experiência do vôo da alma, ou da viagem, ou do sair do corpo. Em outras palavras, quando estão em êxtase, os xamãs sentem que o seu ser inteiro está voando pelo espaço e viajando, quer para outros mundos, quer para rincões longínquos deste mundo. Seu poder serve para efetuar mudanças no mundo material mediante a alteração das condições dos mundos sutis. A finalidade última do tāntrika, porém, é a de ir além dos níveis sutis da existência explorados pelo xamã e realizar o Ser transcendente, transdimensional e não-qualificado, que o tāntrika sabe ser a sua identidade mais profunda. Assim, ao passo que o xamã é um médico ou taumaturgo, o tāntrika é antes de mais nada um transcendente. Mas, na subida espiritual que o conduz à Realidade Suprema, o tāntrika tende também a obter muitos conhecimentos acerca dos mundos sutis «sūkṣma-loka». Isso explica o porquê de muitos tāntrikas terem demonstrado capacidades extraordinárias e terem sido considerados como taumaturgos e magos poderosíssimos pelos indianos.

O Caminho da Mão Esquerda «vāma-mārga» é, com frequência, caracterizado como a senda da aquisição do siddhi, no sentido dual da perfeição (i.é. libertação) e do poder (i.e. capacidade paranormal). Existe uma forte corrente particularmente mágica percorrendo as escolas do Caminho da Mão Esquerda. Quase todos os Tantras deste ramo foram perdidos e conhecemos alguns deles somente pelo nome. As Escolas da Mão Esquerda são aquelas que mais se distanciaram da corrente principal (vêdica) do Hinduísmo, ocupando as margens da cultura e sociedade hindus.

Existe uma prática tântrica chamada Ritual dos Cinco Ms que ocupa um lugar fundamental no Tantra Kaula. São cinco práticas cujos nomes em Sânscrito começam todos com a letra m: (1) mādya, vinho; (2) matsya, peixe; (3) māmsa, carne; (4) mudrā, cereais tostados; (5) maithunā, relação sexual. Esses cinco elementos são compreendidos metaforicamente pelas escolas de direita e praticados literalmente pelas de esquerda.

Segundo o Kulārṇava-tantra, o vinho é usado nos rituais de esquerda como agente catártico, livrando a mente das preocupações e cuidados da vida cotidiana. O objetivo, porém, não é a embriaguez, que se caracteriza pelo estupor e não pela clareza. Do mesmo modo, o consumo de carne e de peixe, que são tão proibidos para os Hindus quanto o vinho, tem o único objetivo de levar a consciência a um estado superior. Os cereais tostados, à semelhança do vinho, da carne e do peixe, teriam propriedades afrodisíacas — sendo também agentes de alteração da consciência. A literatura clássica e exegética não explica em lugar nenhum por que os cereais tostados têm essa propriedade, mas é possível que ela tenha algo que ver com a ergotina (potencial alcoólico dos cereais), que também era usada no antigo culto grego de Deméter.

Os enteógenos «auśadhi» não fazem parte dos «Cinco Ms», mas também são muito usados nos ritos tântricos. Entretanto, este vinho pode ser interpretado como os kālas secretados pela sacerdotisa consagrada. O uso de enteógenos que alteram a consciência são utilizados até hoje pelos tāntrikas da Índia como a ganja (maconha) e o estramônio, enquanto o bhang (um preparado a base de maconha) é consumido por todos durante o Śivaratri, no qual celebra-se o casamento de Śiva e Pārvati. Entretanto, os enteógenos permitem-nos sentir o gosto do além, mas não nos tornam senhores do transcendente.

Os Adeptos do Caminho da Mão Esquerda «vāma-mārga», vāma significa esquerda e mulher, sabem que estão rompendo com tabus sociais profundíssimos, e a única justificativa que têm para a sua conduta é a de não estarem buscando a satisfação dos sentidos, mas a autotranscendência no contexto da existência corpórea. A filosofia do tantrismo resume-se nas seguintes palavras do Mahācīnācāra-krama-tantra: O yogī não pode ser um sensualista «bhogī», e o sensualista não recebeu a graça do yoga. Por isso se diz que o kaula cuja essência é o yoga e a sensualidade, é superior a todos.

Os Tantras deixam claro que, para obter êxito neste caminho perigoso, o praticante (homem) não pode sofrer a dúvida, nem o medo, nem a luxúria. Tem de ser um herói «vīra». Isto é especialmente importante na execução da quinta prática, que é a relação sexual — prática que os tāntrikas geralmente põem a cargo das mulheres. A mulher que participa do rito tem de ser devidamente consagrada pelo banho ritual e outras cerimônias de purificação, e o ideal é que também ela siga o caminho da espiritualidade. O tāntrika não deve ver nela uma pessoa do sexo oposto, mas sim a Deusa, śakti, e do mesmo modo deve identificar-se com Śiva (i.e. Seth). A parceira ideal deve ser bastante desinibida. Num apêndice ao Yogakarnikā, obra do Século XVIII, o próprio Śiva instrui-nos o seguinte: O praticante deve colocar o pênis na vagina de sua mãe e apoiar as sandálias sobre a cabeça do seu pai, enquanto acaricia (ou lambe) os seios de sua irmã e beija as suas belas nádegas. Aquele que faz isso, ó grande Deusa, alcança a Morada da Extinção. Aquele que passa o dia e a noite adorando uma atriz, uma porta-caveiras, uma prostituta, uma mulher de casta inferior, a esposa de um lavadeiro — ele em verdade se identifica com o abençoado Sadā-Śiva.

O Tantrismo desenvolveu, em alto grau, uma linguagem crepuscular «sandha-bhāṣa», uma linguagem simbólica secreta, que pode desorientar bastante os não-iniciados. Os iniciados têm de aprender com um mestre competente a compreender o simbolismo da própria tradição, para que não venham a naufragar nos rochedos do literalismo.

No tantrismo de esquerda, o termo mudrā designa a parceira do rito meta-sexual. Ela é chamada igualmente de vāma, que significa simplesmente mulher bonita. O rito de maithunā, que tem antecedentes vêdicos, leva frequentemente o nome de yoni-pūjā ou adoração da vulva. Isso leva-nos a entender que esse rito é uma atividade sagrada. Com efeito, pode ser um processo extremamente complexo, com horas e horas de meticulosa preparação cerimonial, seguidas pela relação sexual propriamente dita, cuja forma é igualmente determinada em todos os seus detalhes. Em geral, esse rito é feito no meio de uma zona de poder «cakra» de Iniciados, estando o mestre também presente. Os parceiros se unem na qualidade de divindades masculina e feminina, não de comuns mortais. É claro que eles sentem prazer, uma vez que a própria finalidade do rito é a geração do gozo «ānanda» por meios corpóreos; mas não devem pensar em si, não devem tirar da experiência uma satisfação egoísta.

Cabe ao tāntrika impedir a todo custo a ejaculação quando a finalidade é mística, mas ejacular o veneno quando a finalidade for mágica. O sêmen «bindu» é considerado um dos produtos mais preciosos da força vital e deve ser preservado. O objetivo do coitus reservatus é que o esperma seja transmutado numa substância mais sutil chamada ojas. Esta substância alimenta os centros superiores do corpo «cakras» e facilita a difícil tarefa de transformação psicossomática, que é a finalidade do Tantra. Desde épocas muito antigas, o praticante espiritual que é capaz de operar essa alquimia interior é chamado de ūrdhva-reta, «aquele cujo sêmen flui para cima».

O clímax do Yoga Tântrico não é o orgasmo, mas o êxtase — a identificação do praticante com o daemone transcendente, além da personalidade egóica. A mulher, porém, pode chegar ao orgasmo durante o rito, em determinadas circunstâncias. Sua excitação sexual a leva a produzir uma secreção vaginal muito apreciada conhecida como kāla, que o tāntrika competente sabe absorver através do pênis. Aleister Crowley defendia a tese de que o magista estaria evitando inúmeros perigos se absorvesse tais elixires com a boca. Essa evacuação feminina seria benéfica para o sistema hormonal do tāntrika. Essa prática chama-se vajrolī-mudrā e pertence ao repertório do haṭha-yoga. Mas a interação entre o sacerdote e a suvasini, antes de mais nada, é uma troca de energias que supera em muito o que acontece na relação sexual comum.

Os «Cinco Ms», mais do que qualquer outro traço do tantrismo, incorporam o seu espírito de contradição: os praticantes do Tantra rompem deliberadamente com a vida comum. A conduta deles baseia-se no princípio da inversão «viparita». Eles parecem estar gozando do prazer sensual «bhoga», mas na realidade cultivam a beatitude transcendental «ānanda». Desse modo, dão um sentido novo e esotérico a todas as suas ações aparentemente mundanas. No haṭha-yoga, é a inversão sobre os ombros que melhor simboliza esse princípio da inversão. Todos os procedimentos tântricos têm a finalidade de construir uma nova realidade para o tāntrika — uma realidade sagrada análoga à Realidade transcendente: o corpo do praticante torna-se o corpo da divindade de sua eleição «iṣta-devatā». Ou seja, é pela identificação com essa divindade específica que o tāntrika aproxima-se da transcendência de todas as formas, até unir-se por fim com a Divindade suprema, que é o puro daemone.

Assim, vastamente antiga e abrangente, a Tradição Tifoniana esteve presente em diversas tradições espirituais. Dos Cultos Africanos as Dinastias Egípcias, do Xamanismo Siberiano ao Tantra Hindu, dos Cultos Kahunas na Polinésia ao Xamanismo Sul-americano, a Corrente Ofidiana que perpetua a fórmula Tifoniana de Iniciação marca seu desenvolvimento nestas vastas culturas globais, sendo no início, apoteose ou queda, não importa, ela sempre esteve presente.

Equinócio de Primavera
2005 e.v.

Notas:

[1] Uma Célula dirigida pelo presente autor dependente da Ordo Templi Orientis (O.T.O.), Ordem Mágica liderada por ele.
[2] I.e. oralmente.
[3] Em uma carta a J.W. Parsons, que operava uma Loja da O.T.O. na Califórnia em 1945, Crowley escreveu: Está certo iniciar uma senhora, mas inverter o processo é severamente proibido.
[4] A O.T.O. é somente para aqueles que compreendem a urgência em adquirir e realizar a liberdade pessoal, em desenvolver e realizar a sua Verdadeira Vontade. A implicação é que antes que uma pessoa esteja consciente do fato de que ela possui uma Verdadeira Vontade, ela será incapaz de ser, por qualquer razão, porque ou como, incapaz de realizá-la. Mas para o individuo que alcançou esta realização, que é uma iniciação de alto grau, a O.T.O. forma um trampolim natural para seu salto em direção à liberdade. Assim mesmo, o indivíduo não pode dar o salto sem reconhecer a força propulsora que o torna possível, e este é o único pagamento exigido àqueles que abraçam esta causa. Ele precisa fazer isso e sua urgência relativa determina o montante de liberdade que ele contribui para Ordem. Não existe compulsão e nem impulsão. Se o candidato falha no Ordálio do Grau, ele caí novamente nos velhos grilhões, na velha servidão e lá vegeta até que, finalmente, se decompõe na lama que gerou e ali mesmo se atolou. Mas se ele vence os Ordálios do Grau, consegue absorver para dentro de si mesmo o reservatório inteiro de poder que tem sido acumulado por seus predecessores. Este é o verdadeiro significado de parampara, ou linhagem espiritual (i.e. Real). Na O.T.O. as suvasinis veneradas como divindades foram originalmente mulheres iniciadas e iniciadoras nos segredos do Tantra. Elas são dispostas em um círculo em torno da imagem central de Seth (na forma do sacerdote) ou lingam vitae. Veja doc.022 O.T.O. para uma descrição Kaula no que tange a iniciação Tântrica.