domingo, 16 de janeiro de 2022

Pombagira

Quando falamos de Quimbanda dialogamos com um riquíssimo imaginário sincrético fortemente conectado as heranças culturais e ancestrais africanas, europeias e ameríndias. As representações simbólicas da Quimbanda, em especial sua iconografia, se conectam a múltiplas míticas religiosas de procedências distintas que se encontraram e se miscigenaram no Brasil. Por trás das representações simbólicas da Quimbanda existe um pano de fundo, um repertório mítico multicultural que se condensa de forma variada na iconografia, principalmente a da Pombagira. Na verdade a Pombagira é tudo na Quimbanda, mas poucos se atêm a esse arcano de mistério.

A força mágica de Pombagira na Quimbanda concentra a potencia sexual de Èṣú òrìṣà e de todos os òrìṣà femininos. Mas a iconografia de Pombagira está associada a um antigo imaginário grego, o da megera, arquétipo conectado ao uso libidinoso da força sexual, a paixão e a feitiçaria nos mitos de deusas como Hécate e Afrodite. Esse corpo mítico grego na cristandade foi corrompido e na Idade Média foi associado às bruxas e ao culto ao Diabo. No imaginário europeu essa pecha acabou por se manifestar em dois arquétipos que se concentram nas formas míticas de Pombagira no Brasil: a prostituta e a feiticeira. A imagem mais concreta disso se materializa em Pombagira Maria de Padilha: primeiro, celebrada personagem das cortes espanholas; segundo, transformada em uma diáboa (espírito tutelar diabólico e libidinoso) na feitiçaria popular e literatura ibérica; terceiro, transportada até o Brasil nas páginas de O Livro de São Cipriano, tornou-se não apenas uma Pombagira, mas a própria guardiã da Quimbanda.


A Pombagira é uma Diaba

Quando alguém me pergunta o que é a Quimbanda, eu respondo que é uma cultura, porque não há como falar de Quimbanda sem falar de miscigenação cultural e convulsão social; o fim da escravidão, o fenômeno da mestiçagem, a imigração, urbanização, industrialização, a formação de classes sociais, aculturação e hibridização religiosa são convulsões sociais que jazem subjacentes à formação do Culto de Exu, a Quimbanda no Brasil.

Vez ou outra eu trago aqui o tema sobre o arquétipo da Pombagira, além de colocar bastante ênfase na influência da feitiçaria ibérico-cipriânica-faustina na Quimbanda. Estou escrevendo dois textos ainda em curso que falam sobre este tema: A Tradição de Quimbanda e A Influência da Feitiçaria Ibérica na Quimbanda. 

A Pombagira como deidade brasileira (não existe Pombagira em nenhuma cultura além da nossa), sua iconografia e arquétipo, são heranças da influência que as feiticeiras ibéricas e O Livro de São Cipriano tiveram sobre a conformação do Culto de Exu no Brasil. As feiticeiras ibéricas convocavam um espírito assistente, uma forma de diabrete feminina, que as assistiam prontamente e que elas nomeavam como diáboa. No Brasil a diáboa ibérica mais antiga que sobreviveu na Quimbanda é Maria de Padilha, já presente nas edições de O Livro de São Cipriano. Existem escritores que insistem que a Quimbanda não possui influência cipriânica. Toda Quimbanda é cipriânica! Toda Quimbanda tem Maria de Padilha e ela acabou por se tornar a guardiã da tradição!

A diáboa ibérica proveu as características femininas que adornaram as forças masculinas do Èṣú òrìṣà, do vodum Legba e do nkisi Mpambunijila para materializar a deidade brasileira Pombagira.

Mas porque as Pombagiras têm essa forma diabólica? A iconografia diabólica da Quimbanda é muito mais profunda do que se imagina e suas raízes reais estão i. na demonização de Èṣú òrìṣà e ii. na demonização dos nkisi e dos vodum iniciada ainda na África e herdada por nós através da diáspora. Essa demonização conformou a mítica diabólica (comportamental e iconográfica) de Pombagira que, hibridizada com as diáboas, diabretes femininas da feitiçaria ibérica, deu nascimento a forma da diaba que caracteriza a Pombagira na Quimbanda. A influência da feitiçaria cipriânica-faustina na Quimbanda foi fundamental no desenvolvimento de um cosmos diabólico, por conta da valorização da irreverência e liberdade que estes espíritos demonstram ter frente as crendices, dogmas e moral cristã.

É muito mais profunda porque envolve questões comportamentais e sociais que distanciam e alargam o abismo entre a Umbanda cristianizada e a Quimbanda satanizada. Pombagira é mulher livre, mulher que não possui dono ou rédeas. O significado corrente de mulher livre é definido pelo substantivo feminino prostituta, um ofício sacerdotal em um passado distante na história e uma profissão contracultura no presente. Isso distancia tanto o arquétipo quanto a iconografia de Pombagira, por exemplo, da Preta-Velha, que simboliza e valoriza as relações familiares, os bons costumes, o respeito aos dogmas e a moral cristã. A Preta-Velha simboliza a mulher como mãe, como avó; a Pombagira simboliza a mulher puta, a mulher de ninguém, a amante. Os diversos pontos cantados desses espíritos ilustram isso de maneira muito clara.

Mas muito embora esse seja o arquétipo de Pombagira no imaginário popular, estes espíritos não são limitados por essa conformação imaginária, se manifestando muitas vezes para muito além dela. As Pombagiras são diabas, espíritos livres e irreverentes que cultuam o Espírito da Transgressão, o Diabo!


NOTAS:


[1] Sobre a iconografia da Quimbanda veja Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura (Aeroplano, 2012). Veja também Humberto Maggi, Queen of Sevem Crossroads (Hadean Press, 2020). Este volume de Humberto Maggi será publicado esse ano pela Editora Via Sestra sob o título de As Rainhas da Quimbanda.

[2] Essa semana me foi perguntado no Instagram se havia na Quimbanda qualquer noção de kuṇḍalinī. Respondi que não! Diferente da Umbanda, a Quimbanda não buscou preencher a falta de mistérios – proveniente do embranquecimento da magia dos negros – buscando no hinduísmo elementos que pudessem complementar o currículo de estudos e conhecimentos umbandistas. A Quimbanda não traz nenhuma noção do tantrismo ou do vêda. Mas há mistérios na Quimbanda de mesma equivalência. Na tradição oral da Quimbanda recebemos a gnose de que Pombagira é uma força ígnea serpentina, uma ideia muito próxima da noção de kuṇḍalinī nos tantras.

[3] Há quem prefira o termo entidade, se tratando do espírito de um morto. Eu uso o termo deidade como referência a uma criatura espiritual do imaginário brasileiro.

[4] No cosmos da Umbanda não mais, porque os intelectuais umbandistas têm desde a década de 1990 adicionado mais uma camada de brancura em Exu e Pombagira, retirando-lhes a pecha de diabos para fazer deles guardiões. Então vemos as atuais imagens de Exus e Pombagiras na Umbanda sem chifres ou pele vermelha. Mas no cosmos da Quimbanda Exus e Pombagiras permanecem diabos.

A Faca na Quimbanda Nàgô

A Quimbanda é uma tradição espiritual para Homens. O indivíduo, cansado e calejado pelas lutas e batalhas que vem travando no caminho, no percurso ou na jornada de sua alma em direção à sabedoria, decide mudar a sua realidade, a natureza em seu entorno. Universalmente o caminho da feitiçaria em todas as culturas foi perseguido com essa finalidade também universal: a necessidade de mudar a dura natureza da vida, a realidade selvagem que circunda a todos nós. A Quimbanda é um culto para Homens porque crianças não carregam facas; apenas àqueles dispostos a caçar, a matar e sacrificar, a guerrear e lutar, empunham facas. Trata-se de um culto para pessoas destemidas e decididas, não para fracos e receosos, encabulados e medrosos. A Quimbanda é para aqueles que desejam se tornar Mestres da Vida, que há muito tempo largaram as velhas doçuras, para se dedicarem a maestria da vida e a obtenção do propósito derradeiro dela, a Verdadeira Vontade.

A principal arma mágica de um kimbanda é a faca! Além de dividir a ação do orí da ação torpe, medíocre e hipócrita, de separar a vida da morte, de dar direção à projeção da vontade por meio da mente unidirecionada, também carrega uma herança ancestral. E àqueles capazes de resgatar essa herança ancestral de combate e sobrevivência têm um genuíno apreço pela faca, porque reconhecem seu espírito divino e sua força ancestral. A faca é um totem mágico de guerra e de sobrevivência. Esse totem tem o poder de ressuscitar a resistência dentro de cada kimbanda; sua posse através da Mão de Faca é um divisor de águas, porque assassina o falso ético, o hipócrita e o moralista que vive em cada um de nós e ressuscita o guerreiro selvagem e desmisericordioso que jazia oculto sob os escombros das construções sociais que carregamos. A Natureza é selvagem. A faca desperta a selvageria implacável da Natureza dentro de nós. O caminho da Quimbanda é, portanto, o caminho do sacerdócio da faca.

Este caminho trata-se de tomar as rédeas da sua vida e conduzi-la nos seus termos, exercendo plenamente sua individualidade, sua Verdadeira Vontade. A faca sacerdotal separa a vida da morte, o comportamento honroso do comportamento de gado, a mente concentrada do pensamento disperso, o silêncio do tumulto, o sacerdote do homem comum. Por esse motivo, possuir uma faca consagrada e imantada ao trabalho sacerdotal do Povo de Ganga, a Quimbanda Nàgô, é uma honraria espiritual e para possuir o direito de portá-la é preciso merecer.

As operações de magia da faca se estendem pelos três reinos (mineral, vegetal e animal) e por toda operação dos Quatro Elementos. A Faca é filha dos Quatro Elementos: o ferro (Terra) é modelado através da vontade (ideal e material) por meio do forno (Fogo) e em seguida é resfriada (Água), liberando vapores (Ar) diversos. Como um resultado de operação sobre os Quatro Elementos a partir da vontade criadora, a faca torna-se uma arma mágica com poderes sobre os elementos nos três reinos a partir da vontade canalizada e projetada. Na Quimbanda Nàgô a faca concentra o poder dos Quatro Elementos e o domínio sobre eles por meio da vontade concentrada e dirigida. A faca torna-se uma extensão do gênio criativo do kimbanda. A cerimônia da Mão de Faca desperta a virtude (ou alma) de uma faca tornando-a extensão da vontade e criatividade do feiticeiro.

Na Quimbanda Nàgô a faca é um instrumento mágico consagrado ao feiticeiro que é capaz de compreender o poder de seu espírito e sua riqueza ancestral. Sem essa compreensão basilar ele ainda não conquistou o mérito de possuir a Mão de Faca. O mundo mudou depois da faca. O homem deixou de ser presa de animais predadores e passou a ser o caçador deles. Em um mundo de falsos ídolos a faca representa o retorno do homem primordial. Na história da humanidade quem alimentou mais, a faca ou a cruz? Na história da humanidade quem defendeu mais, a faca ou a cruz? A faca é um totem sagrado do arcaico, do primitivo, do ancestral. A cerimônia da Mão de Faca coloca o kimbanda dentro de um grupo muito seleto de homens e mulheres escolhidos pela mesura de sua honra.

Na Quimbanda Nàgô é tradição ter tipos de faca com distintos àṣẹ para trabalhos diversos. Por exemplo, existe a faca de serviço recebida no batismo de armas, conectada diretamente aos trabalhos com o Exu tutelar; existe a faca de feitura recebida no aprontamento e usada nas iniciações de noviços. A última faca recebida no curso da iniciação é a faca de égún na cerimônia de coroação e que estará conectada a trabalhos com um égún (e através dele uma legião de égún) a serviço do Exu tutelar. Esse àṣẹ coroa a iniciação do adepto na Quimbanda Nàgô, quando ele se torna um mestre e seu Exu tutelar um táta-nganga da tradição.

Há pouca qualidade de caráter visceral, força, honra e dignidade nas massas ou coletividade arrebanhada. O caráter popular valorizado pela consciência de rebanho baseia-se em construções morais que têm enfraquecido o caráter visceral, predador, selvagem e combatente do homem. O resultado disso é uma sociedade composta por indivíduos hipócritas, fracos e afetados, divididos por uma dicotomia certo-errado, bem-mal, inocente-culpado, direita-esquerda. As forças ígneas da Quimbanda calcinam essa mentalidade moralista baseada nos códigos morais religiosos vigentes e na dicotomia dualista. O kimbanda no seu caminho solitário luta com espírito satânico contra essa hipocrisia espiritual colocando-se além da moral, do bem e do mal, do certo e do errado. A arte da feitiçaria da terra e do sangue exige essa libertação. A Quimbanda é para homens destemidos a isso.


A Faca e a Projeção da Vontade: Teurgia na Quimbanda


A faca sempre representou nas mais distintas tradições (inclusive na magia moderna, veja Livro 4 de Crowley, o poder dissipador da mente. Na teurgia grega, por exemplo, a faca era consagrada ao logos e a sua ação lúcida, racional e divisória. O teurgo fendia a garganta do animal com um instrumento consagrado ao movimento do logos, carregando o sangue com suas virtudes luminares. Nas mãos de um kimbanda a faca torna-se um instrumento de sua Verdadeira Vontade, uma extensão do poder (moyó) projetado pelo ājñā-cakra (o terceiro olho). Ao fender a garganta do animal o sangue é poderosamente imantado pela vontade do kimbanda presente na e projetada através faca.

Eu venho construindo uma ponte entre a feitiçaria da Quimbanda e seu sistema de iniciação com a goécia (feitiçaria) e teurgia da Antiguidade. A Quimbanda inclui ou herda a essência pura da goécia e teurgia presente na Antiguidade clássica e tardia. Como vimos na última edição do Daemonium, as técnicas de feitiçaria e teurgia são universais, mudando pouca coisa de cultura para cultura. O corte e a oferenda que um kimbanda faz as deidades da tradição, os Exus e Pombagiras, o teurgo e sacerdote dos deuses também fazia na Antiguidade. Procedimentos semelhantes, objetivos idênticos: celebrar a potencia dos espíritos e clamar por sua intervenção entre nós, purificando e sutilizando a alma, e auxiliando nas demandas da vida secular. O corte ou sacrifício animal era o eixo da teurgia na Antiguidade e permaneceu o mesmo eixo da teurgia que existe dentro da Quimbanda. Essa abordagem pode ser impactante aos tradicionalistas; no entanto, sob um olhar mais profundo, sob uma atenção mais cuidadosa, a Quimbanda encerra todos os arcanos e mistérios da goécia e teurgia universais.

Na teurgia, a ciência do corte é o eixo do culto porque é do sacrifício que todos os outros fenômenos teúrgicos rituais ocorrem: divinação através de oráculos, divinação por incorporação mediúnica, purificação, ascensão da alma, consagrações, imantações etc. O corte é o elemento fundamental que dá a ignição no processo teúrgico. Na tradição da Quimbanda não é diferente: a ciência do corte é o eixo de nossos rituais. Assim, a prática da Quimbanda está em direta harmonia e conexão com a prática da teurgia como compreendida na Antiguidade tardia. Nas religiões pré-cristãs da Antiguidade o sacrifício de um animal consagrado e santificado para a teurgia tratava-se de um ofício sagrado. O sangue carrega a essência da vida que alimenta as deidades. Por meio do sangue sacrifical, seja na teurgia grega ou nas culturas africanas, se estreitam os laços entre os homens e os deuses, entre as almas encarnadas e seus ancestrais; busca-se através do sangue por proteção espiritual e cura das mazelas do corpo e da mente; o sangue do sacrifício é uma oferenda que glorifica as deidades, seus poderes, e através dele é esperado receber as virtudes e bênçãos dos deuses e ancestrais. Como o sangue está estreitamente conectado a fertilidade e continuidade da vida, o sacrifício é o ato teúrgico de se doar a vida para receber dos deuses a própria vida na forma de renovação espiritual em nossa jornada encarnados na matéria. Além disso, acreditamos que o sacrifício liberta a alma do animal de seu cativeiro no reino da geração, o que garante a continuação de sua existência no pós-morte: todo animal sacrificado torna-se um espírito de alma deificada. Isso tem implicações profundas e um grande impacto na carreira magística, pois que estes espíritos podem auxiliar o feiticeiro em sua jornada. Este arcano iniciático do passado está presente, por exemplo, nos Papiros Mágicos Gregos. Na feitiçaria dos papiros um falcão é deificado através de um sacrifício teúrgico, responsável por torná-lo um paredros, um espírito assistente.

A ciência do corte ou sacrifício magístico-sacerdotal de deificação animal é a ferramenta fundamental de trabalho mágico da Quimbanda. Trata-se de uma ciência porque por meio dela o kimbanda purifica e deífica sua alma. O corte não apenas alimenta as entidades, mas também produz uma poderosa alquimia na alma do feiticeiro. O primeiro sacrifício realizado pelo feiticeiro é fundamental para iniciar este processo alquímico na alma, assim como aproximá-lo definitivamente de seu Exu tutelar que o acompanhará em sua jornada espiritual.

Por meio da faca nós exercemos um culto arcaico e universal que nos capacita a nos tornarmos senhores de nosso Destino, da obtenção da Verdadeira Vontade finita e infinita; a faca se torna uma extensão natural da Verdadeira Vontade do feiticeiro através da cerimônia de Mão de Faca.


A Faca Sacerdotal Imantada


Desde tempos imemoriais na Tradição Oculta da Magia, a faca tem sido a arma mágica fundamental do feiticeiro. Devidamente consagrada às deidades do culto, é por meio da faca que o feiticeiro sacraliza tanto a sua alma quanto a alma do animal sacrificado. Trata-se de uma cultura arcaica da magia universalmente aceita. Na feitiçaria tradicional brasileira, a tradição de Quimbanda Nàgô, a faca é a arma sacerdotal mais importante do kimbanda; denominada de faca de trabalho, no curso de sua iniciação é lhe entregue cerimonialmente sua primeira faca, com a qual ele se tornará um sacrificador devidamente consagrado e ordenado, doravante um agente de comunicação entre os homens e os mortos divinizados.

O poder do sacrifício na Quimbanda Nàgô vem fundamentalmente do Chefe Império Maioral o Diabo, que espiritualmente compreende a totalidade do universo manifesto. Portanto, sendo o Chefe Império Maioral a causa primeira dos Reinos de Quimbanda, a primeira encruzilhada de fogo, também é a causa primeira da estrutura e funções dos Reinos, presente assim em todos os sacrifícios e oferendas, porque elas vêm dele e retornam para ele. Ao preparar os sacrifícios e oferendas o kimbanda manipula e ativa a força mágica (moyó) através do poder do ritual, da faca imantada e do fogo propiciatório. Ao fazê-lo, ele alinha o sacrifício imolado a sua causa primeira. Essa mesma dinâmica é encontrada na teurgia grega. Em Jâmblico nós descobrimos que o poder do sacrifício vem da unidade de vida do cosmos e porque os deuses aos quais os sacrifícios são oferecidos são a causa primeira deles. Na visão de Platão no Timeu, na visão dos estóicos e dos neoplatônicos tardios, o cosmos é um único ser vivente que possui vida em todas as partes de si mesmo. Os deuses como causa primeira formam a totalidade da estrutura e das funções do cosmos. É o amor dos deuses pelas oferendas a eles oferecidas – devido à presença deles nessas oferendas – é que elas se tornam efetivamente oferendas adequadas. Isso nega a falsa ideia de que os teurgos obrigavam os deuses e outras criaturas a lhes servirem; ao contrario, os deuses aceitam as oferendas por que eles estão e fazem parte delas, eles são a causa primeira das oferendas, portanto, eles amam o que lhes é oferecido. E da mesma maneira que o kimbanda de hoje, o teurgo do passado manipulava e ativava a unidade de vida presente nas oferendas através do ritual, da faca e do fogo.


Àṣẹ de Faca


O àṣẹ de faca é uma etapa do Ritual da Mão de Faca e ele é repetido diversas vezes no curso do desenvolvimento espiritual do kimbanda. Ele difere do gbere, o rito de marcação sacerdotal que confere a autoridade e autorização espiritual do sacrificador cerimonial propiciatório e do oraculista. É através do rito de marcação que o mestre transfere suas virtudes espirituais sacerdotais (moyó) ao discípulo. É através do gbere, portanto, que o adepto recebe a Mão de Faca.

Vamos nos debruçar rapidamente sobre o conceito e ideia de àṣẹ. Na cultura yoràbá, àṣẹ é um termo utilizado para indicar força mágica dinâmica. Dentro de um terreiro onde se pratica a Cabalá Crioula (sabedoria que vem da África), o àṣẹ é considerado a pérola dos olhos de todos os adeptos, pois sem o àṣẹ (ou a pouca quantidade dele) o milagre (taumaturgia) da magia não acontece; o àṣẹ é a força pneumática que assegura o dinamismo mágico dos trabalhos realizados em um terreiro, seja para fins de cura, de prosperidade secular ou alquimia sobre a alma. É comum ao entrarmos em terreiros muito antigos, que têm culto aos ancestrais divinizados da própria casa, sentirmos um impacto de força telúrica perceptível aos sentidos físicos. Para os yorùbás a existência é puro àṣẹ, porque sem ele não haveria o dinamismo requerido para vida se desenvolver. Então como princípio existencial e força mágica dinâmica, os adeptos de Cabalá Crioula procuram elevar o quantitativo de àṣẹ em suas almas. Um corpo doente e desvitalizado é desprovido de àṣẹ; uma mente torpe, desorientada e dispersa é desprovida de àṣẹ. Em todos os sentidos os adeptos procuram aumentar e potencializar o àṣẹ individual, pois ele confere brilho, magnetismo, mente clara e lúcida, emoções equilibradas e conexão espiritual. O àṣẹ está conectado a progressão mágico-iniciática na Cabalá Crioula; quanto maior a iniciação, maior será o quantitativo de àṣẹ. Na tradição de Quimbanda Nàgô entende-se que quanto maior for à conexão entre o adepto e seu Exu tutelar, maior será seu quantitativo de àṣẹ, seu brilho e magnetismo. O àṣẹ do Exu tutelar é carregado de força telúrica e ctoniana; é um àṣẹ saturnino, denso e pesado; trata-se de um àṣẹ necromântico que satura a alma do adepto, imantando e magnetizando-a, produzindo uma alquimia sutil na sua estrutura, deificando-a gradativamente.

Como força mágica dinâmica o àṣẹ pode aumentar ou diminuir, ser transmitido ou recebido; como princípio existencial o àṣẹ está em todas as coisas, distribuído nos três reinos: mineral, vegetal e animal, classificado nas cores clássicas da Quimbanda, o vermelho, o preto e o branco. Essas cores, assim entendemos, são tipos distintos de sangue; assim temos o sangue vermelho, preto e branco espalhados pelos três reinos. Quando um kimbanda busca fetiches para compor seu assentamento nas respectivas zonas de poder de seus mestres tutelares, o que ele está fazendo é trazer o àṣẹ dos Reinos da Quimbanda para compor o assentamento. O assentamento torna-se uma reprodução fiel da zona de poder do Exu ou Pombagira. Além disso, na ciência de construção do assentamento, o àṣẹ dos três reinos nos seus respectivos sangues compõem os fundamentos do assentamento; é por isso que os assentamentos são considerados cruzeiros de poder, pois notável é o àṣẹ que os compõem, tornam-se portais de acesso aos Exus e Pombagiras.

O àṣẹ de faca, portanto, trata-se de um rito onde uma faca consagrada aos sacrifícios propiciatórios é imantada com o àṣẹ vermelho, preto e branco dos três reinos. O rito do àṣẹ de faca torna um instrumento secular, a faca, em uma arma mágica consagrada ao Culto de Exu.

De todas as armas mágicas de um kimbanda, a faca tem sido considerada a mais importante. O corte, como tenho demonstrado, é uma importante ferramenta de deificação espiritual. Através do sacrifício propiciatório o adepto opera alquimicamente sobre a sua própria alma, transmutando-a completamente. O elemento deificante, o àṣẹ de deificação da alma, vem do àṣẹ contido na faca, do corte propiciatório e do àṣẹ sacerdotal conferido na cerimônia do gbere. É interessante uma ponte com a teurgia grega.

Na teurgia existe um rito que se chama ikon-logói; trata-se da consagração de uma faca cerimonial que seja um reflexo do próprio logos. No início da cerimônia, como demonstrei no livro Daemonium, o teurgo ergue a faca e a consagra com a virtude (ou àṣẹ) emanada do Sol. A partir deste momento ele carrega em suas mãos a luminosidade do Sol e com ela ele exorciza e bane entidades antagônicas ao rito e realiza os sacrifícios propiciatórios. É a faca, saturada com as virtudes luminosas do Sol, que satura o veículo-pneumático das oferendas com códigos de luz, tornando-as em elementos adequados a presença dos deuses. Não é diferente na Quimbanda! Ao fender a garganta de um animal, além do simbolismo sexual implícito, o feiticeiro torna a oferenda um sacrifício adequado aos Exus e Pombagiras e ao Reinado de Maioral, saturado-o com o àṣẹ contido na faca. Portanto, diferente do que propagam os sabichões, não é qualquer faca que se usa no culto, mas àquelas saturadas de àṣẹ.


NOTAS:


[1] Veja Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, O Nascimento da Bruxaria. Imaginário, 1955. Bruxaria & História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. EDUSC, 2004. Veja também Jeffrey B. Russell e Brooks Alexander, História da Bruxaria. Ooyo, 2019.

[2] Aleister Crowley, O Livro da Lei, Cap. III, Vs. 43. Veja Liber Aba: Magia em Quatro Partes. Penumbra, 2020. No jargão thelêmico, velhas doçuras significa as bobagens e tolices que nos fazem perder um tempo precioso e que deveria estar sendo melhor aplicado e direcionado a descoberta da Verdadeira Vontade.

[3] A verdadeira Vontade é um conceito moderno thelêmico para o Destino (com d maiúsculo) grego. A doutrina thelêmica insiste em dois tipos de Verdadeira Vontade, a finita e a infinita. A vontade finita é a descoberta e o ato de colocar em prática àquilo que viemos fazer no curso de nossa permanência na matéria; a magia tem um papel fundamental no exercício da vontade finita. A vontade infinita é Destino derradeiro da alma, redimida e coroada no pós-vida. Os thelemitas usam um termo alquímico fora do lugar para definir a ideia de vontade infinita: a Grande Obra, uma meta mística da alma no seu desejo e busca pela deificação.

[4] Literalmente, cabeça. Da cultura yorùbá vem a ideia de cabeça como divindade pessoal, mais que isso, divindade primordial e a ela é preciso dar reverência antes de qualquer òrìṣà. O orí yorùbá está muito perto da ideia do logos na filosofia grega, do eu superior teosófico e do lúcifer no luciferianismo e teosofia modernos. Mas a riqueza da cultura yorùbá levam o orí para muito além do logos etc. Umas das melhores introduções ao tema do orí disponíveis em português: Márcio de Jagun, Orí: a Cabeça como Divindade. Literis Editora, 2015. Ronilda Iyakẹmi Ribeiro, Alma Africana no Brasil: os Iorubás. Editora Odudwa, 1996. Odé Kileuy & Vera de Oxaguiã, O candomblé bem explicado. Pallas, 2020.

[5] Veja D. Pereira, O Caminho das Lâminas (Livro I). Via Sestra, 2017.

[6] Referência a um estado de ser pré-invenção do cristianismo; o estado de ser sem as mortalhas restritivas dos dogmas e da moral cristista.

[7] Aleister Crowley, Liber Aba: Magia em Quatro Partes. Penumbra, 2020.

[8] Para uma introdução concisa sobre os cakras veja o meu Cakra Sadhana: O Despertar da Serpente de Fogo. Clube de autores, 2015.

[9] Na época em que trabalhei com o Colegiado da Luz Hermética onde nos dedicávamos ao estudo e a prática do sistema de teurgia reavaliado por Jâmblico, muitos dos associados eram membros do Candomblé e realizaram extensas pesquisas construindo pontes entre a teurgia grega e o culto de òrìṣà.

[10] Se o Chefe Império Maioral é conformado com a força dos Quatro Elementos, sua extensão abrange a totalidade do universo material como o conhecemos: a Terra, o Sol, a Lua, os planetas e estrelas etc. Sobre o Chefe Império Maioral e os Quatro Elementos veja Danilo Coppini, Quimbanda: o Culto da Chama Vermelha e Preta. Via Sestra, 2019.

[11] Danilo Coppini, Quimbanda: o Culto da Chama Vermelha e Preta. Via Sestra, 2019.

A Quimbanda Nàgô

A Quimbanda Nàgô é uma tradição com muitas famílias. Existe um sistema ou fundamentação de feitiçaria congo-angolano que alimenta todas essas famílias, como um pano de fundo que a todas subjaz, mas elas no entanto têm particularidades próprias que refletem a cultura regional de cada uma.

Algumas famílias de Quimbanda Nàgô têm inclinações filosóficas refinadas, outras não têm quase nenhuma; algumas são orientadas ao autoconhecimento, outras a exclusiva prática de demandas. Isso depende sempre do Sacerdote e de sua formação iniciática, não da corrente efetivamente.

A concepção filosófica e religiosa do Chefe Império Maioral e das deidades que compõem sua trindade mudam de família para família na Quimbanda Nàgô. Nessa diversidade de famílias temos algumas concepções interessantes acerca da trindade infernal que compõe o Chefe Império Maioral:


1. Massofia, Satanás e Ferrabrás;

2. Lúcifer, Ferrabrás e Barrabás;

3. Larrodé, Adônias e Massofia;

4. Lúcifer, Beelzebuth e Barrabás;

5. Em nossa família são Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth.


A trindade infernal da Quimbanda Nàgô tem sido sincretizada com o que denominamos Exus Primordiais nas diversas famílias, por serem espíritos muito antigos, os primeiros gangas da Quimbanda. Não se trata de um sincretismo homogênio e ele muda de família para família. Exemplo: Lúcifer é sincretizado com Exu Lúcifer ou Exu Rei da Lira; Massofia é sincretizado com Exu Nego Bamba (um preto-velho kimbanda); Ashtaroth é sincretizado com Exu Rei das Sete Encruzilhadas; em nossa família concebemos Ashtaroth como uma força mágica lunar e por causa disso a sincretizamos com Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas.

A visão que nossa família tem do Chefe Império Maioral, o Diabo, é cósmica. Maioral é o Espírito da Matéria. Quando utilizamos esse termo, matéria, vem logo a mente a imagem de mundo material. Mas o mundo material não é uma referência ao planeta Terra, mas todo o cosmos material: os planetas, as estrelas, o espaço. Em Maioral as forças dos Quatro Elementos se encontram concentradas e equilibradas, criando e recriando vida no cosmos. Portanto, Maioral se estende por todo universo material, o manto negro por detrás da engenharia do universo. De igual modo, quando chamamos Maioral de Espírito da Natureza (com n maiúsculo), não se trata da natureza (fauna e flora) do planeta Terra, mas Natureza como sinônimo de matéria cósmica. Na teogonia da Quimbanda Nágô o Chefe Império Maioral comporta as forças cósmicas e materiais do Fogo (Lúcifer), do Sol (Beelzebulth) e da Lua (Ashtaroth) com regentes da operação material e espiritual da alquimia: Solve et Coagula. Maioral é uma força cósmica conectada – e que testemunhou – a criação da vida e o desenvolvimento do cosmos e da consciência humana. Ele é a primeira encruzilhada de fogo de onde nasceram e se desenvolveram os Reinos da Quimbanda.

A Quimbanda Nàgô foi a primeira a eleger a imagem de Baphomet como iconografia hierática do Chefe Império Maioral, bem como a primeira a divulgar seu ponto e bandeira (imagem do topo), encerrando todos os símbolos cósmicos que compõem suas forças.


NOTA:


[1] Como demonstrei no meu texto Os Reinos da Quimbanda, a organização e hierarquia das falanges da Quimbanda foi influenciada pela hierarquia infernal dos grimórios vernaculares modernos, onde geralmente uma trindade de espíritos infernais têm poder e autoridade sobre espíritos menores distribuídos como na hierarquia titularia da nobreza europeia medieval.


Quimbanda Nàgô

A Quimbanda é uma tradição de feitiçaria brasileira nascida a partir do sangue derramado em nossas terras de antigos guerreiros e feiticeiros africanos, pajés e caçadores ameríndios, criminosos e bruxas ibéricas julgadas e exiladas pelo Santo Ofício de Portugal. O espírito do kimbanda nasceu desse entroncamento de linhas ancestrais africanas, ameríndias e europeias nas profundezas escuras das matas brasileiras. Os primeiros tátas, antigos espíritos ancestrais fundadores da Quimbanda, os primeiros Exus, foram heróis do Quilombo e dos malês, índios na mata e escravos da senzala que se ergueram em revolta contra os opressores cristãos, colonizadores escravagistas. É dessa luta e resistência, é desse entrecruzamento ancestral de poder, que nasce o Espírito da Quimbanda!

A gênese primitiva do Culto de Exu (que viria se tornar a Quimbanda no Séc. XIX) no seu primeiro momento (período que se estende do Séc. XVI ao Séc. XIX, desde os primeiros Calundus baianos até a Macumba carioca e paulista) ocorreu a partir de um  intricado sincretismo entre as culturas banto (ngangas e tátas) e nàgô-yorùbá (Èṣú òrìṣà) da África, a cultura tupíguaraní (pajés e encantados) e a feitiçaria ibérica (tradição cipriânica-faustina).

A Quimbanda é filha, portanto, de uma herança cultural miscigenada que se manifestou nesse primeiro momento na forma de variados cultos ao longo do tempo, tentativas diversas de resistência e resgate cultural que aglomeravam elementos multiculturais como os Calundus baianos e seus derivados diretos, os terreiros de Candomblé, a Cabula que concentrava muito saber da cultura e religião banto e sua derivada direta, a Macumba do Rio de Janeiro e São Paulo, que agregou sabedoria e fundamentos banto e nàgô-yorùbá.

Esses movimentos espirituais diversos que se manifestaram ao longo desse primeiro momento acompanharam o desenvolvimento cultural brasileiro, suas diversas convulsões sociais, a luta de classes e a transição de um sistema econômico agrícola para um sistema industrial. Foi assim que os Calundus das matas se transformaram nos Candomblés do asfalto; foi assim que a Cabula das matas se transformou na Macumba das favelas e morros do Rio de Janeiro e São Paulo.

Em meados do Séc. XIX inicia-se o segundo momento do Culto de Exu no Brasil quando nasce a Quimbanda, derivada urbana direta da Macumba (e sua irmã embranquecida, a Umbanda). Diferente de sua irmã, a Umbanda, que caiu seduzida pelos encantos eurocentristas e escravocratas do regime cultural vigente e fascinada pela religião e dogma cristãos, a Quimbanda resistiu e a partir de meados do Séc. XIX começou a estruturar-se como legítima tradição de feitiçaria brasileira, preservando as práticas animistas, a cosmovisão fetichista, o comportamento insurgente e tribal dos negros e escravos intocados nas profundezas da mata escura em um culto a ancestrais (espíritos de mortos) divinizados, um sistema necromântico de feitiçaria nascido das entranhas de nossa terra.

Os Exus e as Pombagiras da Quimbanda são ancestrais espirituais, espíritos tutelares de um sistema brasileiro de feitiçaria que converge os ngangas e tátas da religião dos bantos e os fundamentos de Èṣú òrìṣà da cultura nàgô-yorubá. A Gnose do Culto de Exu no Brasil depende inicialmente dessa convergência sincrética entre essas duas culturas mágico-espirituais da África, associando a isso a influência do xamanismo ameríndio e da feitiçaria ibérica cipriânica-faustina. Tratam-se de Mestres Espirituais que nos acompanham e nos auxiliam na jornada da encarnação, nos orientando e zelando pelos caminhos de nossa alma. A feitiçaria tradicional brasileira é uma arte que desperta o homem para seus tutores espirituais, os Exus e Pombagiras. Cultuá-los, render-lhes adoração através de oferendas e sacrifícios, cria alianças e pactos com eles. Em acordo as tradições de Cabalá Crioula (quer dizer, os arcanos e a sabedoria que vêm da África), o melhor meio de comunicação com os ancestrais é o sacrifício propiciatório. Imolar um animal cerimonialmente em honra as deidades da Quimbanda, os Exus e as Pombagiras, trata-se de uma ação teúrgica-sacerdotal que estreita a comunicação com eles. Desde tempos imemoriais, o sacrifício propiciatório tem sido uma ferramenta teúrgica para comunicação com o mundo espiritual.

Na teurgia de inúmeras culturas da Antiguidade clássica e tardia, a ciência do corte era o eixo do culto porque é do sacrifício propiciatório que todos os outros fenômenos teúrgicos rituais ocorrem: divinação através de oráculos, divinação por incorporação mediúnica, purificação, ascensão da alma, consagrações, imantações etc. O corte é o elemento fundamental que dá a ignição no processo teúrgico. Na feitiçaria tradicional brasileira não é diferente: a ciência do corte é o eixo da cerimônia mágica de Quimbanda. Dessa maneira, a prática da feitiçaria tradicional brasileira está em direta harmonia e conexão com a prática da teurgia (e goécia) como compreendida na Antiguidade clássica e tardia. Nas religiões pré-cristãs da Antiguidade o sacrifício de um animal consagrado e santificado para a teurgia tratava-se de um ofício sagrado. O sangue carrega a essência da vida que alimentava as deidades. Por meio do sangue sacrificial se estreitam os laços entre os homens e os deuses, entre as almas encarnadas e seus ancestrais; buscava-se através do sangue por proteção espiritual e cura das mazelas do corpo e da mente; o sangue do sacrifício era uma oferenda que glorificava as deidades, seus poderes, e através dele era esperado receber as virtudes e bênçãos dos deuses e ancestrais. Como o sangue está estreitamente conectado a fertilidade e continuidade da vida, o sacrifício era o ato teúrgico de se doar a vida para receber dos deuses a própria vida na forma de renovação espiritual em nossa jornada encarnados na matéria. Além disso, acreditava-se que o sacrifício libertava a alma do animal de seu cativeiro no reino da geração, o que garantia a continuação de sua existência no pós morte: todo animal sacrificado torna-se um espírito de alma deificada. Isso tem implicações profundas e um grande impacto na carreira magística/teúrgica, pois que estes espíritos podem auxiliar o feiticeiro em sua jornada. Este arcano iniciático do passado está presente, por exemplo, nos Papiros Mágicos Gregos. Na feitiçaria dos papiros um falcão é deificado através de um sacrifício teúrgico, responsável por torná-lo um paredros, um espírito assistente.

A ciência do corte ou sacrifício magístico-sacerdotal de deificação animal é a ferramenta fundamental de trabalho mágico da feitiçaria tradicional brasileira. Trata-se de uma ciência porque por meio dela o kimbanda purifica e deífica sua alma. O corte não apenas alimenta as entidades, mas também produz uma poderosa alquimia na alma do feiticeiro. O primeiro sacrifício realizado pelo feiticeiro é fundamental para iniciar este processo alquímico na alma, assim como aproximá-lo definitivamente de seu Exu Tutelar que o acompanhará em sua jornada espiritual. Isso está em direta sincronia com a teurgia universal de todos os tempos e culturas do passado.

Em meu trabalho procuro construir uma ponte entre a feitiçaria tradicional brasileira, o Culto de Exu (Quimbanda) e a feitiçaria e Cultos de Mistérios da Antiguidade, demonstrando como a teurgia e goécia universais caminham de mãos dadas pelas veredas que Exu trilha.  Minhas conclusões sobre a tradição são fruto de uma imersão espiritual de trinta anos de jornada em culturas magísticas diversas. O que me proponho é uma tarefa difícil: demonstrar que a Quimbanda é uma genuína tradição brasileira de feitiçaria, mistérios e iniciação de mão esquerda. Para isso eu construo uma ponte entre a feitiçaria da Quimbanda e seu sistema de iniciação com a goécia (feitiçaria) e teurgia da Antiguidade. A Quimbanda inclui ou herda a essência pura da goécia e teurgia presentes na Antiguidade clássica e tardia. As técnicas de feitiçaria e teurgia são universais, mudando pouca coisa de cultura para cultura. O corte e a oferenda que um kimbanda faz as deidades da tradição, os Exus e Pombagiras, o teurgo e sacerdote dos deuses também fazia na Antiguidade. Procedimentos semelhantes, objetivos idênticos: celebrar a potencia dos espíritos e clamar por sua intervenção entre nós, purificando e sutilizando a alma, e auxiliando nas demandas da vida secular. O corte ou sacrifício animal era o eixo da teurgia na Antiguidade e permaneceu o mesmo eixo da teurgia que existe dentro da Quimbanda. Essa abordagem pode ser impactante aos tradicionalistas; no entanto, sob um olhar mais profundo, sob uma atenção mais cuidadosa, a Quimbanda encerra todos os arcanos e mistérios da goécia e teurgia universais.

Quimbanda e a Força Vital

Embora alimentada por diversas culturas mágico-religiosas, a Quimbanda mantém a cosmovisão banto, orientando por ela toda estrutura e sistema do Culto de Exu moderno. Os bantos mensuram tudo pelo quantitativo energético. Reverenciar os ancestrais, àqueles que primeiro forjaram alianças com os espíritos da natureza (nkisi), fortalece a força vital, o moyó; mais que isso, se trata de venerar a força vital de forma que ela seja geneticamente fortalecida entre os vivos e os mortos.

[...] os ancestrais, espíritos fundadores de linhagens, venerados por terem deixado uma herança espiritual favorável à evolução de sua comunidade. Eram eles os responsáveis por garantir a solidariedade e a estabilidade de um grupo no tempo e sua coesão no espaço [...]. Esses «grandes mortos» receberam do Deus criador a energia vital e atuavam como elo entre os homens e essa divindade suprema. Eram figuras quase míticas, e muitas vezes não se tinha conhecimento detalhado sobre suas histórias [...]. Em alguns casos, no entanto, eram considerados fundadores de comunidades por terem firmado as primeiras alianças com os espíritos da natureza.

Reverenciar os mortos, portanto, mantém viva a história bioenergética da comunidade e a harmonia em suas camadas distintas. Os mortos para os bantos representam uma realidade viva na comunidade, tão poderosa que ela é capaz de modificar o futuro de todos. Para os bantos a conexão sadia com os ancestrais garantia a estrutura harmônica da sociedade. O elemento essencial que garante a boa comunicação e conexão com os ancestrais é o moyó. Quanto mais conexão ancestral, mais moyó é produzido, refletindo-se em todas as áreas da vida: boa saúde, prosperidade, equilíbrio emocional, sabedoria etc. Por meio dessa capacidade de estabelecer conexões espirituais seguras e efetivas com os ancestrais, um kimbanda pode auxiliar na saúde, prosperidade e harmonia da comunidade. Ter moyó, portanto, é requisito basilar para comunicação ancestral. O homem para os bantos consiste de quatro elementos: o corpo (nitu), o sangue (menga) que contém a alma (moyó) e o mfumu kuta, seu duplo energético. A crença banto nessa força vital é tão profunda que alguns estudiosos chegam a classificá-la como vitalismo (kimoyó) ao invés de animismo. Essa força vital, o moyó, movimenta e dinamiza toda vida no cosmos, está presente em tudo e em todos em graduações diferentes; o moyó das pedras, ervas e animais vitaliza o moyó em nós através das inúmeras medicinas rituais da prática espiritual. Essa filosofia metafísica banto, esse estilo de vida vitalista (kibântu), influenciou profundamente a Quimbanda e sem o qual ela não faz muito sentido.

Em uma reflexão postada no site Filosofia Oculta em quatro de abril de 2020, A Influência Banto na Quimbanda, eu teci uma introdução concisa dessa ideia; agora compartilho a reflexão editada e corrigida para essa introdução:

Um kimbanda não mensura suas ações magísticas pelas lentes opacas da moral, da ética e dos bons costumes cristãos. A Quimbanda vai à contramão disso! Um kimbanda mensura suas ações mágicas em quantitativos energéticos. Um feiticeiro bem sucedido na vida é aquele que manipula com eficiência uma quantidade considerável de energia vital; um kimbanda mal sucedido na vida tem pouca eficiência na manipulação dela. Trata-se de um consenso comum essa verdade na Quimbanda brasileira. Essa ideia, no entanto, vem da cultura banto.

Na religião banto o poder do sacerdote (kimbanda) é mensurado por sua capacidade em manipular a energia vital (moyó) de forma benigna (para garantir a ordem cósmica e social) ou maligna (para desestruturar a ordem cósmica e social). A ordem cósmica e social por sua vez são interdependentes, ambas dependentes das relações (pactos, alianças e compromissos) que os homens estabelecem com os ancestrais divinizados e antepassados do culto. Tudo depende da harmonia das relações estabelecidas com os espíritos. Não há uma distinção entre homens e espíritos; ambos participam de uma só comunidade. Assim, relações espirituais negligentes produzem esgotamento energético através de um processo de vampirização e, ao contrario, relações harmoniosas garantem um fluxo abundante de energia vital. Para os bantos a magia é fruto direto da comunicação com os espíritos – uma ideia universal na tradição da magia – e dela depende a harmonia ou anarquia total do cosmos e da sociedade (comunidade). Dessa forma, o culto diligente aos ancestrais divinizados e aos antepassados para os bantos garante a continuidade da organização da comunidade e o fortalecimento da energia vital dela (mais fartura e saúde para todos).

Por conta disso, a notoriedade de um kimbanda depende de sua capacidade em, através de sua feitiçaria, manter a harmonia e a prosperidade da comunidade. Dessa notoriedade nasce a confiança da comunidade de que o kimbanda tem uma comunicação efetiva com os ancestrais divinizados e antepassados da religião, mantendo com eles laços fortes e efetivos, responsáveis pelo bem-estar, harmonia e abundância de todos. É neste sentido que um kimbanda trata-se de um agente social. Um sacerdote que deixa a comunidade cair vítima da voracidade dos espíritos, sejam àqueles da comunidade ou outros enviados pelo ataque de feiticeiros, criando com isso uma desestruturação social, têm sua notoriedade manchada. O status social de um kimbanda está conectado, portanto, a sua capacidade de conhecer e manipular a energia vital, se beneficiando ele mesmo, em primeiro lugar, dela.

Na cultura banto o mundo é concebido como energia, não como matéria; tudo é força mágica e disso depende toda a cosmovisão banto. Essa força mágica é transmitida dos espíritos diretamente aos homens, todos os homens. Mas apenas alguns poucos, os kimbandas, têm a capacidade de manipular tal força com eficiência. Nesse entendimento, os bantos compreendem que existe uma conexão tênue entre os três reinos primordiais (mineral, vegetal e animal), o reino dos homens e o reino divino, todos interligados por uma extensa rede energética. A energia vital, portanto, pode aumentar ou diminuir em acordo a dinâmica entre todos esses reinos, de modo que um pode enfraquecer o outro. É sabendo disso que um kimbanda conquista o domínio e torna-se capaz de manipular essa força mágica.

Toda herança desse entendimento está presente na tradição de Quimbanda, não nos termos idênticos a cultura banto, mas como pano de fundo da compreensão que o kimbanda tem da arte da feitiçaria e seu exercício.


A Força Vital

A ideia de força vital é central nas culturas africanas porque se trata do fenômeno que sustenta e mantém a vida, visível e invisível. É uma força que perpassa absolutamente tudo o que existe e cuja própria existência depende. Dessa maneira, ser capaz de armazenar e quem sabe manipular essa força vital é a melhor maneira de possuir felicidade, completude e bem-estar.

A força vital é o elo de conexão entre a alma humana e toda hierarquia espiritual, as criaturas divinas, os espíritos aéreos, ígneos, aquáticos e telúricos, os espíritos ctônicos e os mortos. Os bantos acreditam que o kimbanda possui e manipula uma grande quantidade de força vital, porque ele tem conexão efetiva com os ancestrais e através deles pode interceder nas diversas dificuldades da comunidade. Essa força vital é transmitida aos vivos pelos primeiros ancestrais, os tátas fundadores dos diversos clãs que estão em conexão plena com a Fonte Vitalizadora dessa força vital, o Ser Supremo. Toda cosmovisão e antropovisão banto se fundamenta na conexão com essa força vital intrínseca a tudo e por meio dela a conexão sadia com os espíritos. A vida, a corporificação da alma, se tornam um entrecruzamento de mundos, dos vivos e dos mortos, e por meio dele ocorre a manutenção da vida, a harmonia social e cósmica.

A corporificação da alma, portanto, é um elo importante na transmissão e na conexão com a força vital; o homem está conectado aos seus ancestrais que lhe transmitem o moyó; ele por sua vez irá transmitir essa força vital recebida às próximas gerações. Os bantos acreditam que a mulher grávida concentra uma exuberante e rica quantidade de moyó, uma grande concentração de força ancestral encapsulada dentro de si e que carrega a memória de toda sua ancestralidade. A criança que nasce é, portanto, portadora de todos os códigos genéticos ancestrais, um «sol vivo» que carrega a força de todos aqueles que vieram antes dela na forma de moyó, potencial ou inato. E por conta de fazer parte dessa corrente ancestral em vida, através da força de seu pensamento e de suas palavras o homem pode imprimir a sua vontade nos códigos de configuração da Natureza.

Todas as coisas estão interligadas como uma corrente de força que se perpetua continuamente e que age segundo padrões cosmológicos, conectando o homem e fazendo dele peça fundamental na estrutura do cosmos. Por causa disso o ser humano pode ter sua força vital diminuída ou aumentada, seja na forma de interações diversas com o corpo do cosmos ou por causa das intenções de outro agente humano. Neste caso, a resistência a uma violenta incursão alheia é obtida por meio do reforço da própria força vital, recorrendo a fontes diversas que têm disponíveis mais força vital, até mesmo outro ser humano.

A força vital projetada pelo homem tem o poder de influenciar diretamente diversos organismos vivos ou etéreos: animais, vegetais, minerais, criaturas e espíritos diversos. No pensamento tradicional da Cabalá Crioula, um espírito, esteja ele entre os vivos ou entre os mortos, seja ele material ou imaterial, atuando sobre um animal, vegetal ou mineral, será capaz de influenciar diretamente outro ser humano por meio de seus pensamentos. Para remediar, quem sofre o esgotamento da força vital deve recorrer a diversos recursos que possam revigorá-lo imediatamente. Um kimbanda recorre às forças de seu Exu Tutelar através de ritos propiciatórios e medicinas rituais.


O verbo e o nome

Na Cabalá Crioula, quer dizer, no conhecimento secreto que vem da África, o nome e o poder da fala (o verbo) estão diretamente conectados a ideia de moyó, a força vital. Conhecer o nome de uma pessoa, seu significado íntimo, significa ter o poder de acessar seu moyó particular, a vibração energética pela qual uma alma é espiritualmente identificada. O nome de uma pessoa faz parte de um conjunto constitutivo de elementos essenciais que caracterizam o indivíduo, sendo ele localizado e alocado na comunidade por meio de seu nome. Quem conhece o nome verdadeiro de uma pessoa, seu moyó particular, pode dominá-la e influenciá-la, acessar as profundezas de sua alma e operar magicamente nela. Por esse motivo na África uma pessoa recebe pelo menos três nomes durante a vida em ocasiões distintas: o nome informal, o nome formal e o nome iniciático. Inúmeros fatores são levados em consideração na escolha do nome de uma criança, genéticos, geográficos, sociais, ambientais, circunstâncias de nascimento, parentesco, sexo etc., tudo isso influencia no moyó contido no nome de uma pessoa, por esse motivo é um evento importante dar o nome as crianças que vêm ao mundo. O nome, dessa forma, traduz em níveis energéticos a essência de quem o carrega; conhecer o nome é também conhecer parte íntima de sua vida, suas origens, seu espírito tutelar.

O corpo, o espírito e nome inserem o indivíduo em um esquema cósmico, o qual ele está profundamente conectado e através do qual mantém conexão com as forças cósmicas, todas elas, que estão no seu entorno. Por esse motivo, por estar inserido em uma estrutura cósmica e fazer parte orgânica e genética dela, ele tanto pode manipular quanto pode ser alvo de correntes de força diversas. Para os bantos o indivíduo tem o poder de influenciar o meio ambiente, a sociedade e todos os seus semelhantes, pois nada está isolado no universo, todas as coisas se conectam o tempo todo. Um agente sobrenatural, carregado de poder e vibração, é necessário para que o indivíduo influencie o meio: a palavra.

Na Cabalá Crioula a palavra tem um poder sobrenatural, baseado em sua origem divina e carrega forças ocultas que são capazes de manipular e reestruturar a realidade no seu entorno. É por esse motivo que muito valor é dado ao que chamamos de tradição oral, porque é por meio da palavra que os fundamentos práticos e filosóficos são transmitidos: eles carregam o moyó plantado dentro daqueles que escutam a palavra e que florescerá como conhecimento e sabedoria; e é difícil exprimir essa ideia, porque se todas as coisas estão conectadas o tempo todo através do moyó, de maneira que o espiritual não se desassocie do material, então a tradição oral abarca todos os aspectos da vida, porque se trata da aplicação prática de uma cosmovisão onde todas as coisas têm vida e têm também o poder de interagir. Então o fundamento prático e filosófico transmitido pelo verbo vivificante tem peso e valor iniciático. Não se aplica a questões ideológicas abstratas, mas na concretude da vida, no comportamento diante de todas as coisas.

Então a palavra é a chancela de autoridade espiritual que o indivíduo possui sobre as outras forças do universo, corpóreas e incorpóreas; é a senha mágica que abre os portais do invisível. Como verbo vivificante a palavra é a presença do indivíduo em sua plenitude total, porque ela concentra os vetores de força de sua mente e de suas emoções. Não se trata apenas de palavras carregadas de poder, mas do poder vivificante e criador na forma de sopro divino animado. Dessa maneira, como agente mágico por excelência, a palavra não deve ser desperdiçada levianamente; a mentira é uma distorção ou disfunção da palavra, trata-se da língua falseando a palavra, o que acaba por viciando o sangue daquele que mente. Quem pensa uma coisa e fala outra rompe consigo mesmo e àquela conexão sutil com a unidade imanente de todas as coisas. Quem falta com a palavra cria uma cisão com seu próprio moyó.

Para um kimbanda da Quimbanda brasileira, a palavra é a expressão da realeza conquistada no Culto de Exu; é um instrumento, portanto, da nobreza de espírito representada por Exu e Pombagira.


Corruptibilidade e Antropofagia

Diversas vezes eu cito que muitos etnógrafos africanos e afro-brasileiros consideram que a cultura banto seja pobre em relação a muitas outras culturas, seja a yorùbá ou a católica etc. Eles elaboram a tese que por conta desse déficit filosófico e religiosidade considerada «pobre» e «inferior», os bantos absorvem tudo de outras culturas, porque muito falta na deles. Fazendo isso eles negam suas raízes que, com o tempo, são diluídas, esquecidas e eliminadas em detrimento de componentes externos que chegaram depois. Mas não é o caso e a razão disso é o moyó, a força vital.

A ideia e conceito de moyó é deveras similar ao àṣẹ dos yorùbás, o mana dos kahunas polinésios ou o heka dos egípcios, a matéria universal, a vitalidade da existência. Uma força vital que a tudo perpassa e a tudo conecta, o fundamento primordial da magia. Os bantos consideram que cada povo, cada raça, tem um tipo de moyó diferente. Isso significa que para os bantos, incorporar valores, crenças, símbolos, ícones religiosos, fetiches mágicos etc. de outras culturas significa enriquecer, aumentar e expandir a própria força vital. Para tal os bantos não abandonam suas raízes, suas crenças e seu imaginário natural; diferente disso eles hibridizam todos os elementos de sua cultura para uma melhor eficiência na arte de viver, porque para os bantos, a vida, a experiência corporificada, é o âmago de toda religiosidade.

Então para os bantos o outro, detentor de símbolos, signos e imaginário diferentes, tem uma potência vital que pode enriquecer a deles através de um processo de antropofagia. Essa miscigenação cultural constrói novas possibilidades sem diminuir as já existentes, aumentando as chances de viver melhor a vida. Então é uma estratégia cultural banto incorporar elementos externos aos seus próprios; não se trata portanto de corruptibilidade cultural como alguns propõem.

A cosmovisão da Quimbanda (e da Umbanda) é a da cultura e religiosidade banto. Em pouquíssimas palavras, podemos resumir a religiosidade banto como culto aos antepassados e ancestrais, àqueles que forjaram os primeiros laços com os espíritos da natureza e a Força Superior. Por meio dos ancestrais, portanto, é possível acessar essas criaturas espirituais, se harmonizar com o cosmos e com a sociedade, com a finalidade de viver bem a vida, com mais conforto e melhor preparo para as adversidades. É através da vida, da corporidade na matéria, que os ancestrais podem auxiliar a comunidade. A vida para os bantos resume toda religiosidade, porque ela concentra a herança total da força dos antepassados e dos ancestrais em um novo potencial de existência.

É por causa da noção de força vital banto que a Quimbanda (e a Umbanda) são plásticas; elas se alimentam e se adaptam a novos elementos culturais e mágico-religiosos. É por conta dessa típica antropofagia cultural banto que a Quimbanda recebe bem os influxos culturais e o imaginário dos aborígenes ameríndios, dos africanos e dos europeus, ingredientes que se diluem e se fundem em um intenso e caudaloso caldeirão cultural. A Quimbanda come a força vital moyó de outros sistemas para tornar-se mais forte! Ela come tudo o que seu adepto estiver ávido de fome, retraindo para si o fundamento que funciona e descartando àquele que se provou inútil. Quimbanda é uma tradição brasileira que reflete a cultura de nossa nação e as intensas mudanças sociais que ela tem passado desde a Colônia. A Quimbanda se alimenta, se adapta, se transmuta e se reformula, criando novos núcleos, novas subcorrentes dentro do Reinado do Chefe Império Maioral.


NOTAS:


[1] Veja Robert Daibert, A Religião dos Bantos: Novas Leituras sobre o Calundu no Brasil. Em Estudos Históricos, vol. 28, no. 55. Janeiro de 2015.

[2] Que significa força vital, princípio de vida, energia espiritual, alma.

[3] Veja Nei Lopes e Luiz Antônio Silva, Filosofias Africanas: uma introdução. Civilização Brasileira, 2020.

[4] Robert Daibert, A Religião dos Bantos: Novas Leituras sobre o Calundu no Brasil. Em Estudos Históricos, vol. 28, no. 55. Janeiro de 2015.

[5] Caso seja ele também um muloji, feiticeiro que pratica malefícios.

[6] Medicinas diversas, comidas e folhas, força vital dos três reinos: mineral, vegetal e animal.

[7] Corpo, espírito e nome.

[8] Kimnwandèndè K. B. Fu-Kiau, Self-Healing Power and Therapy: Old Teachings from Africa. African Tree Press, 2014.

[9] Alguns nomes são monopólio de um ou outro clã (família).

[10] Isso não é um conhecimento arcano exclusivo da África. Inúmeros povos e culturas que possuem alfabetos mágicos e hieróglifos de poder reconhecem o poder do nome, segundo os egípcios, o heka individualizado de cada um. Os hebreus, por exemplo, com a ciência cabalística da gematria, têm preservado este arcano.

[11] O corpo (múntu) é o indivíduo corporificado e como tal, trata-se de uma força que concentra a herança total da ancestralidade.

[12] Veja Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura: Imagens de Exu e Pombagira. Aeroplano Editora, 2012. Sobre uma discussão sobre a religião banto ou Religião Tradicional Africana e a refutação de muitos antropólogos e etnógrafos, veja José Armando Vicente, A Salvação na Religião Tradicional Africana no contexto Banto. Edições Loyola, 2021.

[13] Veja Nei Lopes e José Rivair Macedo, Dicionário da História da África – Séculos VII a XVI. Autêntica, 2017. Veja também Nei Lopes e Luiz Antônio Silva, Filosofias Africanas: uma introdução. Civilização Brasileira, 2020.

Quimbanda Dogmática


A tradição de Quimbanda nasceu e cresceu como uma força de resistência a cultura religiosa escravocrata dominante. No primeiro momento do Culto de Exu no Brasil, durante o período colonial, dentro do Quilombo e senzalas; no segundo momento, na era pós-moderna, a resistência eclodiu dentro das casas de Macumba no Rio de Janeiro, o que resultou na Quimbanda como a conhecemos hoje.

Como uma força de resistência, a sistematização da Quimbanda evitou a criação de dogmas religiosos e morais, se esquivando de castrações psíquicas e espirituais. Quando um dogma é criado dentro da Quimbanda, quando é Quimbanda de verdade, ele é logo destruído pela força natural de nossa arte e ciência, porque a Quimbanda é tanto quebra-dogma quanto contra-dogma. Como uma força de resistência, a luta da Quimbanda é àquela da liberdade do espírito; nossa ética, portanto, é a liberdade! Nós somos resistência e contracultura.

Uma força de resistência precisa possuir em suas colunas uma armada de Força & Honra. Virtudes potentes que provêm de uma morada luciférica interior e que podem ser cultivadas e desenvolvidas ao longo da jornada de iniciação. É isso que se quer ver desenvolvido em um kimbanda, para que ele possa continuar a batalha iniciada pelos ancestrais do Quilombo. Eleger na Quimbanda i. dogmas religiosos castradores; ii. moral travestida de princípios, é lutar contra a própria ancestralidade e força mágico-espiritual da Quimbanda.



A Mão de Oráculo

Ao se iniciar na tradição de Quimbanda, o adepto recebe a transmissão de duas virtudes (àṣẹ) sacerdotais: i. a mão de faca; ii. a mão de oráculo. Com o àṣẹ da mão de faca o feiticeiro torna-se um sacrificador sacerdotal do Culto de Exu; com o àṣẹ da mão de oráculo ele torna-se um oraculista sacerdotal do Culto de Exu. Com essas duas virtudes ele está preparado a comunicar-se e trabalhar magicamente com Exu.

A capacidade de oracular é tornar-se apto a se comunicar com os espíritos através de oráculos consagrados a comunicação espiritual, qualquer oráculo. O dom de oracular está na alma, no àṣẹ recebido e desenvolvido, não no oráculo, não na ferramenta. Então quem é oraculista de verdade, é capaz de oracular com qualquer ferramenta: cartas, ossos, búzios, tampinhas de garrafa, fósforos, palitos de dente, pedras etc. O oraculista, portanto, elege a melhor e mais efetiva ferramenta que lhe possibilita se comunicar com os espíritos.



O Jogo de Búzios na Quimbanda

O jogo de búzios na Quimbanda Nàgô, a Cabalá de Exu, é um oráculo desenvolvido para comunicação com os Maiorais, Exu e Pombagira nos Sete Reinos da Quimbanda; o oráculo nasceu a partir das influências da cultura yorùbá aliadas ao arcano do septenário hermético. Sua origem é afro-brasileira e sua estrutura abrange os Sete Reinos da Quimbanda e os Povos de Exus e Pombagiras.

Este oráculo foi criado e desenvolvido para Quimbanda Nàgô, mas há derivações dele para outras linhas de trabalho na Quimbanda, como os Caurís dos Exus.

A Quimbanda, diferente da Umbanda e Candomblé, não absorveu o Érìndílógún e não admite operação magística com òrìṣà. A cultura banto que alimenta a cosmovisão de Quimbanda, sua espiritualidade e magia, opera de forma distinta àquela yorùbá com òrìṣa e irúnmalè. O trabalho fundamental é através dos antepassados, pois estes foram os primeiros a forjarem laços com os espíritos da natureza. A Quimbanda herda essa característica fundamental da tradição espiritual banto na forma do trabalho magístico com os ancestrais divinizados, os Exus e Pombagiras, e não o trabalho com com òrìṣa e irúnmalè. A Quimbanda no Brasil é um culto necromante apenas, quer dizer, que trata somente e exclusivamente com mortos divinizados e égún diversos.

Àqueles oraculistas que trabalham com os Caurís dos Exus de modo universal na Quimbanda são encorajados a sistematizarem o jogo de búzios em conexão (na gnose) com seus Exus tutelares, porque i. o segredo do Caurís dos Exus está na configuração pessoal da mesa (tábua ou peneira); ii. um oraculista genuíno é capaz de codificar para si seu oráculo.



Oráculo de Ossos

A cultura banto desenvolveu um intricado sistema oracular através de diversas ferramentas: pedras retiradas do estomago de um crocodilo, feijões, espelho, nozes de palmeira, búzios, chifres, dentes e ossos como patas de animais, cabeça de urubus e corvos (e partes de outros animais como o pedaço do coração de um leão) etc. Inicialmente, nenhuma arte oracular banto chegou até a Quimbanda em sua gênese e desenvolvimento. Faz pouco tempo, com as facilidades do mundo moderno, sacerdotes de Quimbanda foram buscar entre os bantos o oráculo com ossos, o nkumbu. Sua estrutura é deveras parecida com o Érìndílógún yorùbá, no sentido de que possui uma divindade responsável pelos dons divinatórios, Nkuku-a-Lunga, deus da adivinhação e da sabedoria que recebeu de Nzambi essas virtudes.

Alguns sacerdotes de Quimbanda têm ponderado que este seja o oráculo mais apropriado a nossa arte e ciência, pelo fato de que os ossos têm mais conexão com os mortos divinizados do que os búzios. De fato isso não reflete uma realidade banto, mas encontra ressonância na arte da necromancia. O nkumbu é um oráculo conectado a ancestralidade e pode ser passado de uma geração a outra, de um parente para outro. O oráculo originalmente é composto por ossos (chifre de antílope, pata de macaco etc.), pedaços de cerâmica, pedras, conchas, restos vegetais, moedas, artefatos e até pequenas estátuas, tudo isso reunido dentro de um cesto.



A Influência Europeia

A Quimbanda herdou grande influência da tradição ibérica-faustina de feitiçaria através das feiticeiras degredadas de Portugal pelo Santo Ofício. Com elas chegou ao Brasil à adivinhação através das cartas (baralho profano) em O Livro de São Cipriano, que traz técnicas cipriânicas de adivinhação. Nem todas as casas, terreiros, templos ou tradições de Quimbanda herdaram os Caurís dos Exus, a Cabalá de Exu ou nkumbu. Os feiticeiros desses seguimentos têm utilizado cartas, o baralho profano ou o baralho cigano, como um meio genuíno de comunicação espiritual e adivinhação. Essa prática está em consonância com a tradição de feitiçaria ibérica que alimenta a Quimbanda; como tal, é genuína.



NOTAS:



[1] A transmissão desse àṣẹ, no entanto, depende de merecimento na Quimbanda Nàgô.

[2] A arte de oracular com búzios não é patrimônio africano. Em várias partes do mundo, como na China e na Índia, búzios têm sido usados para se comunicar com o mundo espiritual. As tradições afro-brasileiras receberam essa influência dos africanos, mas se trata de um oráculo universal. O arcano do septenário hermético a Quimbanda herda da tradição cipriânica-faustina da magia.

[3] Há um derivado deste oráculo, o Caurís dos Exus, para Umbanda, quando não trata dos Sete Reinos, mas das Sete Linhas: de dia para as Sete Linhas Brancas (ou de direita), a noite para as Sete Linhas Negras (ou de esquerda). Essa derivação para Umbanda, com influência do Érìndílógún (jogo por odus) do Culto aos òrìṣà, utiliza 5, 7, 9 e 16 búzios. Os Caurís dos Exus da Quimbanda observam a cabalá hermética do septenário, utilizando apenas 7 búzios ou múltiplos de 7.

[4] Por esse motivo a cultura banto é considerada menos intricada (e inferior) a cultura yorùbá, que possui uma tecnologia magística mais desenvolvida, pelo menos na opinião dos acadêmicos e estudiosos. Trata-se de um equívoco essa ideia porque a cultura banto é de uma riqueza ainda desconhecida por nós e somente agora existem esforços pelo resgate da cultura banto dentro da Umbanda e quimbanda. Sobre esse tema indico a leitura do artigo de Robert Daibert, A Religião dos Bantos: Novas Leituras sobre o Calundu no Brasil Colonial. Publicado em Estudos Históricos (Vol. 28, No. 55). Rio de Janeiro, 2015. Indico também Filosofia Africanas de Nei Lopes e Luiz Antônio Simas. Civilização Brasileira, 2020. Veja ainda O Segredo da Macumba de Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. Paz e Terra, 1972.

[5] Embora existam casas/terreiros que funcionam traçados.

[6] De igual modo, na tradição do Tarot o ápice da iniciação/desenvolvimento consiste no adepto configurar seu Tarot pessoal.

[7] O nkumbu não tem qualquer conexão com o septenário hermético e pode conter até duzentas peças.

Quimbanda Nàgô e o Culto do Diabo

A Quimbanda Nàgô foi a primeira vertente de Quimbanda a utilizar a iconografia diabólica para os Exus e Pombagiras e a imagem teriomorfa da deusa Baphomet para o Chefe Império Maioral de todos os Infernos, o Diabo, a partir da influência mágico-cultural da tradição ibérica cipriânica-faustina. A Quimbanda Nàgô foi a primeira a apresentar a assinatura mágica (o ponto riscado da imagem que abre este ensaio) do Chefe Império Maioral e que hoje é utilizada por muitas vertentes distintas. Da Europa vem à conformação estética e iconografia diabólica da Quimbanda. Fundamentalmente o que isso significa? Qual a relevância espiritual para essa conformação estética diabólica e o sincretismo estabelecido entre os Exus da Quimbanda e os diabos cipriânico-faustinos?

O sincretismo diabólico da Quimbanda trata-se de uma tendência religiosa que rejeita a dominação política e cultural que a religião cristã impõe em seus vários seguimentos. Então a Quimbanda estabelece um ponto de conflito, uma oposição e separação do cosmos social estabelecido pela mentalidade cristista castradora e alienadora: a família, os bons costumes, a moral etc., ferramentas de domínio social. O diabolismo da Quimbanda nasce como arma mágica de oposição sociocultural, política e religiosa. O sincretismo diabólico da Quimbanda é, portanto, um elemento de coesão social e arma contra a opressão e dominação moral e religiosa. No primeiro momento do Culto de Exu no Brasil (Sécs. XVI-XIX) que mais tarde se tornaria a Quimbanda do Séc. XX, essa resistência sincrética que já ocorria na religiosidade banto vinda da África culminou na eclosão do Quilombo, nos sendo transferida através do tempo pela Cabula e a Macumba, materializando-se efetivamente na Quimbanda. Os símbolos e o sincretismo diabólico da Quimbanda, portanto, representam essa luta e resistência antes de qualquer coisa, se valendo de imagens e ideias hieráticas diabólicas presentes na cosmovisão cristã que eclodiram e se espalharam pela Europa medieval. Esse sincretismo diabólico, interessante notar, ocorreu no Brasil, considerado o Novo Mundo, no entanto, reservado aos domínios do Diabo onde eram exiladas as bruxas e os condenados antissociais europeus.

As críticas lançadas sobre a Quimbanda Nàgô e sua adoção de símbolos hieráticos diabólicos (europeus) parte, na grande maioria das vezes, do desconhecimento total acerca do processo de gênese e formação da Quimbanda e sua luta religiosa sociocultural. Não há como tirar essa influência cipriânica-faustina da Quimbanda, como alguns propõem, porque ela faz parte integral da estrutura do culto.


A Quimbanda Nàgô & o Culto do Diabo

Por meio da influência cipriânica-faustina da magia, a tradição de Quimbanda Nàgô ou feitiçaria tradicional brasileira é uma herdeira genuína do Culto do Diabo. Durante a Idade Média e Moderna, os inquisidores do Santo Ofício, treinados pelos manuais de demonologia que se espalhavam pela Europa, procuravam pelos vestígios de três crimes contra a fé cristã: o Pacto com o Diabo, a Marca do Diabo e a participação no Sabbath das Bruxas. Estes três crimes contra a fé cristã sobreviveram na tradição de Quimbanda Nàgô e formam um tripé de sustentação.

O Pacto com o Diabo: A ideia de pacto com espíritos ou de pacto com o diabo como desenvolvida desde que os mitos de Fausto e Mefistófeles começaram a se espalhar pela tradição oculta e está associada à doutrina do espírito tutelar, presente também na tradição cipriânica-faustina da magia. Fausto teria, após uma série de invocações, assinado um pacto com Mefistófeles que, a partir daquele momento, tornou-se seu espírito tutelar, um diabo pessoal. São Cipriano, assim como Fausto era um mago poderoso do imaginário popular e também teria aprendido magia diretamente de sua associação com um diabo pessoal. Essa ideia de associação íntima com um espírito tutelar é consistentemente desenvolvida nos papiros gregos na relação que o feiticeiro deve construir com o paredros. Soldo: o poder que Salomão possuía, assim como as figuras míticas de Fausto e São Cipriano, bem como outros grandes magos da Antiguidade clássica e tardia como Simão o Mago, provinha diretamente de sua associação e pacto com espíritos, melhor dizendo, conhecimento e conversação com eles. O pacto com espíritos como o conhecemos hoje é o Conhecimento & Conversação com o Espírito Tutelar, o daimon (ou demônio) pessoal que nos acompanha na jornada magística. Fazer um Pacto com Diabo, em essência e desde os primórdios da magia, trata-se de obter um espírito tutelar. Essa ideia está presente na feitiçaria tradicional brasileira no pacto que o kimbanda estabelece com seu Exu Tutelar no curso do Ritual de Iniciação.

A meta de todo feiticeiro como ilustrado romanticamente nos mitos de Fausto e São Cipriano é o Conhecimento & a Conversação com o Espírito Tutelar na intenção de receber dele instrução secreta de feitiçaria, obtenção de sabedoria oculta e poderes magísticos. Tudo isso o Diabo pode prover! A Confessio Cypriani narra os poderes adquiridos por São Cipriano através de sua relação com o Diabo. Afundar navios, fazer água aparecer no deserto, ter controle sobre correntes aéreas etc. são atos dignos de personagens como Moisés e Salomão; mesmo sendo eles fictícios, ilustram a busca fundamental do feiticeiro. Fausto, imerso em uma lúgubre floresta à noite, quando encontrou um caminho cruzado, invocou em nome do Príncipe dos Diabos o seu diabo pessoal, Mefistófeles, e com ele estabeleceu um pacto e adquiriu conhecimento arcano secreto. Por caminho cruzado entenda encruzilhada; por Príncipe dos Diabos entenda o Chefe Império Maioral de todos os Infernos. Reside aí no mito faustino a construção da hierarquia espiritual e que sobreviveu na tradição de Quimbanda no ordenamento em falanges os Exus e Pombagiras, as legiões do Chefe Império Maioral. É Maioral que libera o Exu Tutelar ao kimbanda, uma herança hierárquica observada na tradição salomônica (e por extensão na magia de Abramelin), na teurgia clássica neoplatônica e feitiçaria popular europeia. Maioral é para um kimbanda o que o Espírito da Natureza (o Diabo) era para as feiticeiras ibéricas exiladas no Brasil. Maioral foi um título dado ao Diabo como Regente do Inferno no Séc. XVI pelos inquisidores do Santo Ofício.

A Marca do Diabo: A marca do diabo atestava, portanto, que existia uma forma de comunicação oculta entre as bruxas e o Diabo. A literatura mágica e os autos da Inquisição trazem histórias e relatos de feiticeiras que mantinham conexões com forças diabólicas, diabos pessoais conhecidos como diabretes (masculino) e diáboas (feminino), os quais eram alimentados diariamente com sangue delas através do dedo mindinho ou outra parte do corpo. A marca do diabo era a cicatriz que a feiticeira carregava por alimentar seu diabo pessoal. No Ritual de Iniciação, o kimbanda ganha a Marca do Diabo: pequenos cortes que recebem – e portanto selam o compromisso – o sangue do animal sacrificado, compartilhado entre o feiticeiro e o Exu Tutelar. O Exu é plantado, assim dizemos, no corpo do kimbanda, que passa a ser seu assento. O sangue retirado desses cortes é introduzido diretamente no assentamento do Exu Tutelar. Como uma genuína herança da feitiçaria ibérica cipriânica-faustina, o Pacto estabelecido entre o kimbanda e seu Exu é de sangue.

O Sabbath das Bruxas: O sabbath ou a festa das bruxas era a suposta adoração romântica do Diabo na calada da noite em florestas sinistras. O encontro noturno esperava-se ocorrer à meia noite, quando o Diabo em pessoa apareceria para as feiticeiras em uma festa orgástica. Embora nos autos da Inquisição não conste nenhum relato de feiticeiras flagradas adorando o Diabo em festas e bacanais, há relatos de testemunhos, muitas vezes tecidos pelas próprias bruxas, da realização do sabbath. Na tradição de Quimbanda, o Sabbath das Bruxas são as Giras que ocorrem na Hora Grande, a partir da meia noite, quando Maioral de todos os Infernos vem autorizar a presença dos Exus e Pombagiras.

O exercício da Quimbanda Nàgô envolve um aprofundamento em círculos cada vez mais concêntricos de obscuridade. Quanto mais fundo nos lançamos ao perigoso entrecruzamento de forças nos Reinos da Quimbanda, mais a compreensão de sua sabedoria se torna densa, obscura e sinistra. O véu que esconde toda essa sabedoria arcana, sinistra e obscura é um folclore diabólico confuso, no entanto, vertiginosamente dinâmico e criativo.


NOTAS:


[1] A Quimbanda Nàgô é a tradição de Quimbanda que se caracteriza por utilizar imagens de Exus e Pombagiras como diabos. Essa tendência se infiltrou em outras vertentes de Quimbanda. Veja Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura (Aeroplano, 2012).

[2] Uma deusa porque representa o Espírito da Matéria. Essa matéria, no entanto, não é sinônimo de planeta Terra, mas de cosmos material.

[3] O que demonstra uma falta de maturidade mágica e iniciática horrorosa.

[4] Veja Carlos Roberto F. Nogueira: O Diabo no Imaginário Cristão (Ática, 1986); O Nascimento da Bruxaria (Imaginário, 1995); Bruxaria & História (EDUSC, 2004). Veja também Laura de Mello e Souza: Inferno Atlântico: Demonologia e Colonização (Companhia das Letras, 1993); O Diabo e a Terra de santa Cruz (Companhia das Letras, 1994). Finalmente veja Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura (Aeroplano, 2012).

[5] Veja Humberto Maggi, Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2019.