domingo, 16 de janeiro de 2022

Gnose Itálica


O Pleroma

Este é o conceito que serve de ponto de partida para compreender a gnose de Valentim. Por Pleroma vamos entender o  Mundo Supra celeste, reino do Espírito e da Luz. No Pleroma viovem cerca de 30 eons que se distribuem em três espaços hierarquizados : Ogdóada, Década e a Dodécada.


Ogdóada

Com esta palavra, os valentinianos  designam o mundo supra  inteligível. Desde a eternidade, existem dois princípios que imperam sobre todas as coisas : o Abismo (Bythos ) e o Silêncio (Sigé ). O abismo era o Eon perfeito (Téleios aíón ), a mônada iningendrada, incorruptível, incompreensível, ilimitada, inexpressiva e inexprimível. Em última análise, o abismo seria o Deus desconhecido ( Theos agnostos ), absolutamente transcendente e inteiramente afastado de todas as coisas.

Ao lado do Abismo existia o Silêncio. O Abismo, entretanto, vivia em extrema ociosidade. Ele, porém, era amor e o amor é uma força dinâmica, intensa que exige atuação, comunicação, por isso, o Abismo uniu-se ao silêncio, tornando-se O Pai de todas as coisas existentes. Desta união procederam  três  parelhas de eons que são :


1. Nous e Aletheia = Entendimento e Verdade.

2. Logos e Zoé = Razão e Vida.


Anthropos e Ecclésia ( O homem e a Igreja).

O conjunto desses eons mais o Abismo e o Silêncio formam um total de oito eons ou Ogdóada, região exemplar da Luz e do Espírito.

Em segundo lugar vem a Década que corresponde ao Mundo inteligível (kosmos nontós). A dualidade logos + zoé deu origem a cinco pares de eons ( 10 eons ), ou seja, uma década. Em seguida, o anthropos e a ecclésia  geraram seis pares de eons que formaram a dodécada. Com isto se forma um grupo de  trinta eons ( 8+10+12 = 30) que, por sua vez, formam o pleroma. Este número possui um valor simbólico já que corresponde aos trinta anos da vida  desconhecida de Jesus.O Pleroma está separado do mundo inferior que lhe é imediato por um limite (horus ) que o isola inteiramente. Entre o Pleroma e o Demiurgo, os valentinianos colocaram a Enthymésis , ( pensamento , reflexão ) ou mãe que corresponde ainda à imagem do Pai invisível que vem a ser a idéia exemplar do mundo.


O Pecado de Sofia

Para poder continuar a sua exposição  e explicar a origem do Mal, os valentinianos introduzem um novo personagem Chamado Sofia. A Sofia (Sabedoria ) forma com a Theletos (vontade) o sexto par da dodécada. A Sofia como a psyké do mito grego foi traída também pela curiosidade e desejou conhecer o mundo supra sensível e penetrar no mistério do abismo, coisa que apenas o nous pode realizar e mais ninguém. Sofia, ousadamente, tentou alcançar seu objetivo mas, ao escalar o lugar supra-celeste, caiu e só não se precipitou no vazio porque horus ( limite ) a susteve em sua queda. Para evitar que fatos como este viessem a se repetir Nous e Theletos geraram uma última parelha de eons : o Espírito Santo e Cristo cuja missão seria ensinar aos eons do pleroma a respeitar a transcendência do Abismo. Deste modo foi restabelecida a ordem no interior do pleroma.

O processo continuou e Sofia, mais uma vez surpreendendo, une- se a  ao desejo e fica grávida deste. Deste relacionamento, nasceu uma filha bastarda chamada Sofia Achamoth ( = concuspicência ). Este novo ser é uma espécie de aborto ou matéria informe e, logo assim que surgiu foi expulso do pleroma. Este fato desagradou aos demais eons que se reuniram para reintegrá-la à ordem. Para tanto, os eons   criaram um novo ser divino e cada um dos seus criadores deu à sua obra o melhor que possuíam. Dessa forma Nasceu O Jesus - Salvador. Com isto encerra-se a cadeia : logos: eons: Salvador.  O Salvador é filho imediato do conjunto dos eons do pleroma e mediatamente do logos, por isto se chama também logos, embora seu nome correto seja Jesus -Salvador. Este Jesus é acompanhado por um grupo de anjos e sua missão consiste em criar o kenoma, ou reino celeste, semelhante ao mundo superior, além dos homens psíquicos e espirituais.


O Kenoma

O kenoma  ou reino celeste, forma uma região intermediária entre o mundo superior e o terrestre. Foi criado pelo Salvador que, ao fazê-lo, tomou para modelo o pleroma. Como o mundo superior, o kenoma possui também três regiões ou seções: A Ogdóada, a Hebdómada e a Hexada.


A Ogdóada

A Ogdóada, neste caso, é o reino espiritual ou pneumático ( pneuma = ar, vento, espírito), e formado do pneuma degradado. Corresponde ao oitavo céu das estrelas fixas.


Hebdómada

Este é o reino animal ( psíquico) que corresponde aos sete céus dos planetas.  À frente de cada um desses céus existe um arconte. Nesses céus se escalonam um grande número de anjos, arcanjos, tronos, dominações, deidades e reinos. A hebdómada dos anjos psíquicos  está comandada ou presidida pelo demiurgo que  outro não é senão o Yavé dos judeus, um deus ígneo e se diferencia do Abismo por ser ativo e trabalhador.  O demiurgo possui natureza psíquica e, por isso, é inferior às entidades do mundo espiritual. Não pode conhecer o pleroma do qual se encontra afastado pelo limite, nem tão pouco a hebdómada celeste que se encontra acima dele. Somente conhece a hebdómada  a qual pertence e o cosmos sensível que é sua criação.

Não é difícil reconhecer-se no  demiurgo valentiniano o demiurgo de Platonismo. A diferença encontra-se no fato de que o demiurgo de Valentim, ao contrário do demiurgo de Platão, não contempla o mundo ininteligível ( correspondente do mundo das idéias) e nem mesmo possui idéias próprias. Para criar o mundo sensível, será movido pela Sofia que funciona como uma espécie de instrumento mais ou menos inconsciente. Sofia  emprestará ao demiurgo a idéia exemplar da criação que ela, por sua vez, recebeu do logos -Salvador. O demiurgo não só ignorava a existência do mundo supraceleste como também a vinda do Salvador.

O demiurgo, depois de criar o mundo sensível, foi tomado pela vaidade e chegou a se afirmar como um verdadeiro Deus, dizendo : Eu sou o Deus e fora de mim não há outro Deus. Foi assim que ele inspirou os profetas do Antigo Testamento. Estes, entretanto, não anunciaram a vinda de Jesus porque o demiurgo não o sabia e nem Jesus precisava de tais profecias.


A Hexada

O demiurgo, movido de modo inconsciente por Sophia Achamoth e esta, por sua vez, pelo Salvador, criou o cosmo sublunar que é sensível, visível e corruptível. Se chama hexada porque o seis é o número da matéria que, segundo Philon de Alexandra, chegou à sua perfeição no sexto dia.

O cosmo sublunar possui também três regiões que são chamadas de tríade da corrupção ( Tes én phthora triados ) cujos elementos se originam nas três paixões experimentadas por Sofia Achamoth sucessivamente : tristeza, temor e consternação. Não se menciona a ignorância porque porque esta foi a paixão fundamental, origem e razão de ser das três outras.

Da tristeza, proveio o elemento aéreo que serve de morada aos anjos materiais ou demônios. À frente deles está o Princípe deste mundo, ou seja, o Kosmocrator o qual, embora seja uma criatura do demiurgo, conhece coisas que o demiurgo não conhece já que na sua constituição existem elementos da matéria espiritual.

Do temor e das lágrimas  surgiu o elemento aquoso ou hídrico que é a região própria das almas animais ou psíquicas.

Da consternação, nasceu a  terra que é  de matéria grosseira própria dos homens carnais e dos seres corpóreos (hílicos ). Irineu costumava ensinar que o elemento luminoso surgiu do riso de Sofia Achamoth.

A parir deste sistema metafísico, Valentim  explica a existência de três reinos : O Espiritual, O Psíquico ou animal e o material;  três classes de anjos : os espirituais ( satélites do Salvador ), os animais (anjos do demiurgo ) e os materiais ou demônios; por fim, há também três classes de homens : os espirituais ou pneumáticos, os animais ou psíquicos e os materiais ou hílicos.

Os elementos puros e bons do homem vêm da Sofia Achamoth. Os homens pneumáticos  (ou espirituais) foram criados sem a intervenção nem o conhecimento do demiurgo. Formam um gênero diferente que provem do Espírito Superior. Neles predomina o elemento luminoso. Estes homens especiais são os gnósticos que não necessitam da redenção. Para salvarem-se basta-lhes apenas a gnose que corresponde ao grau de conhecimento que lhe é próprio.

Os homens psíquicos ou animais possuem uma alma racional ( psiké ) cuja origem é o céu da hebdómada. Nesse tipo de homem se encontram equilibradas a matéria luminosa e a matéria escura.  Os cristãos pertencem a esta categoria e a eles corresponde o conhecimento da fé. Podem ser redimidos à medida que eliminem a parte escura de sua materialidade e se deixem  absorver pela parte luminosa.  A redenção se realiza por meio do Salvador que nasceu da Virgem Maria e que, no momento do batismo se uniu ao eon Jesus. Esteve com Jesus até o momento da paixão quando o abandonou e voltou ao pleroma.

Por fim,  colocam-se os homens hílicos ou materiais. Estes possuem alma irracional ( alogos ) cuja origem é o barro da terra do paraíso. Formam essas almas o grupo dos pagãos no qual domina a matéria e  paixões menores. Não são capazes de redenção e desaparecerão quando o mundo material desaparecer.

Um dia, o demiurgo se cansará de criar. Nesse dia, Sofia Achamoth retornará ao pleroma e cada ser voltará ao seu lugar de origem : os homens pneumátcos ( os gnósticos ) irão para o pleroma. Entretanto, esta viagem não será muito fácil  uma vez que deverão enfrentar dois obstáculos : os demônios aéreos que funcionam como juízes e dos anjos planetários ou cosmocratores. Para vencer esses obstáculos, os gnósticos costumavam, na hora de sua morte untar-se com óleo que possuía um caráter de unção e teria o poder de santificação. O demiurgo, por seu turno, ocupará o lugar deixado vago por Sofia Achamoth e junto a ele estarão os homens psíquicos que goram redimidos. O homens  hílicos, entretanto, não terão a menor chance de salvação e ficarão à espera da grande catástrofe apocalíptica quando serão destruídos com o  mundo material. Esta destruição será eterna pois não haverá o retorno cíclico das coisas.

Aqui está em geral o pensamento de Valentim. Vamos, em seguida, ver a difusão deste pensamento. A Gnose de Valentim, no século II e  princípios do III, espalhou-se amplamente recebendo adendos, muitos tão disparatados, que acabou por transformar uma teoria, já por si só complexa, em uma espécie de babel que abeirava ao grotesco. Hipólito assinalou expressamente uma divisão do Valentianismo em dois momentos: o itálico e o oriental; o primeiro tendo como corifeus Heracleon Tolomeu e Flora e o oriental, liderado por Teodoto e Bardesanes.

Heracleon é uma espécie de  exegeta desta seita. Foi ele quem traduziu e comentou o Evangelho Segundo João. Orígenes conservou diversos fragmentos deste gnóstico e, por meio deles e de outros testemunhos indiretos, ficamos sabendo que Heracleon empregava o método alegórico e que distorceu o pensamento joanino para acomodá-lo às teorias do gnosticismo.

Tolomeu foi o autor de uma epístola intitulada Flora que Ernesto Renan considerou como uma obra mestra da literatura gnóstica. Conforme Tolomeu, a Lei de Moisés não é inteiramente verdadeira ou falsa. Por este motivo não pode proceder do Deus   Pai universal que é perfeitíssimo. Também não pode proceder dos demônios pois possui algo de bom; assim só resta uma origem: o demiurgo, deus inferior e intermediário que, embora não seja de todo bom, participa relativamente da justiça.

Ainda se pode trazer à baila um certo Marcos que viveu no século II. Irineu que o deve ter conhecido o qualifica de um charlatão que exerceu a sua atividade em Lyon e nas cidades vizinhas, mesclando suas doutrinas heréticas com práticas abusivas e abjetas. Utilizando-se da matematização característica do Pitagorismo, Marcos interpretava a doutrina de Valentim por meio de uma complicada numerologia simbólica associada a figuras geométricas.

Vamos, agora, a Teodoto e ao Ramo Oriental. Conservam-se fragmentos de suas obras nos Estromata de Clemente de Alexandria. Constitui-se a sua doutrina em um conjunto de idéias valentinianas. Como Heracleon, Teodoto também tendia para a interpretação alegórica das narrativas bíblicas, acomodando-as ao Gnosticismo de Valentim.

Bardesane, em verdade Bar Daisan, nasceu em Edessa e era amigo do rei Abgar II. Na sua juventude filiou-se ao Gnosticismo de Valentim. Mas tarde, porém, converteu-se ao Cristianismo embora não deixasse inteiramente as antigas idéias que professara. Foi o escritor mais  significativo da Gnose do século III. Efrain atribui a ele  mais de 150 salmos com suas melodias. Muitos desses salmos chegaram até nós.  Existem fragmentos de seu diálogo Peri Heimarménes e hinos que foram agregados às Atas de São Tomaz; entretanto, o diálogo sobre as Leis dos países, não parece ser obra sua mas de um discípulo por nome Filipe.  Bardesanes estudou as Ciências Naturais e a Astrologia, entretanto, negou a influência dos astros na liberdade humana. Sua ênfase  à questão do bem e do mal influenciou por certo o Maniqueísmo.

O Gnosticismo de Paulo e o Problema do Mal

 

“O que liberta é o conhecimento de quem nós fomos, e em quê nos tornamos; onde estávamos, e onde fomos lançados; para onde nós caminhamos, e de onde seremos redimidos; o que é o nascimento, e o que é renascer.”

Valentino (100-160)


Estas sábias palavras resumem bem o espírito gnóstico. Muito mais do que uma religião organizada, até porque suas origens são bastante confusas e dispersas, os gnósticos representam uma tentativa de responder ao mistério da existência do mal no mundo. Se a filosofia nasce do espanto, como diz Platão, pensar sobre o enorme sofrimento das criaturas que habitam este planeta não é algo menos importante. Os gnósticos souberam evitar a armadilha de alguns sofismas como negar a existência do mal, vendo-o como simples ausência de bem, ou de lançar a culpa de tudo de ruim que acontece no mundo nas costas do ser humano. Talvez o gnosticismo tenha nascido mais de uma intuição, de um sentimento de que alguma coisa estava, e está errada, no mundo.

Uma ousadia que me causa admiração nos textos gnósticos é a visão do todo, ou seja, de toda a obra da criação do universo como a origem do mal. Os gnósticos tendem a não pulverizar a ação do mal em eventos isolados como na suposta ação de Satanás na vida dos indivíduos. O demônio para eles tem uma ação muito restrita para ser levado em maiores considerações. O universo inteiro é visto como um calabouço que precisa ser superado e transcendido. Platão tentou harmonizar o otimismo de um mundo que á a cópia mais perfeita do mundo ideal com a noção de que deveríamos sair o mais rapidamente dele, porque o original é sempre melhor do que a cópia.

Quando os gnósticos situam o mundo como uma má criação, que nem mesmo deveria ter existido, julgo que anteciparam o pensamento de Schopenhauer de que a principal fonte do mal é o princípio de individuação. Ser lançado no espaço/tempo, no qual você não tem controle, é o que de pior poderia acontecer. Numa definição filosófica, os gnósticos foram perspicazes de antever o mal como existindo anterior a nós, e não na morte em si, ou em uma futura punição em um inferno no pós-vida. O drama da vida humana, o juízo final em si, é o intervalo entre o nascimento e a morte, e nunca a morte em si. O nascer, portanto, para os gnósticos, é um mal porque o ser humano e os outros seres terão de estar submetidos ao mal que reina no todo.

Alguns cristãos -e filósofos como Eric Voegelin- acusam respectivamente os gnósticos de pretenderem fazer do homem Deus, ou de imanentizarem o juízo final a partir da fé que o mundo está errado, logo deve ser mudado através da revolução histórica. A deificação está presente na filosofia de Plotino e dos neoplatônicos, e mesmo no Cristianismo Oriental, não sendo um monopólio dos gnósticos; quanto a interpretação de Voegelin, considero-a fantasiosa e desonesta porque em nenhum texto gnóstico existe uma convocação para a revolução mundial. Este mundo não pode ser redimido pela ação histórica; apenas no Judaísmo e no Catolicismo existe a semente da revolução. Voegelin bem leu a advertência do filósofo platônico Celso de que no Cristianismo estava localizado o gérmen da revolução futura.

O gnosticismo não tinha uma noção de história como os judeus; consideravam-na inadequada para explicar o drama cósmico. O Jesus que os gnósticos pregavam, o verdadeiro Cristo, não teve seu sacrifício localizado em algum tempo humano (1929, p.37). Os gnósticos tinham um grau de sofisticação elevado o suficiente para não submeter a vida do próprio Filho de Deus à interpretação dos documentos históricos. O filósofo católico Thonnard dizia, com razão, que ninguém que age historicamente é sem pecado. O pecado, então, da Igreja, foi o de ter situado Cristo na História…

A impressão que temos da grandeza do universo e do mundo nos faz ficar cegos diante do sofrimento que se desenrola abaixo. Olhamos para o oceano e esquecemos a selvageria dos seres aquáticos devorando uns aos outros nas profundezas; a selva se nos apresenta fascinante, mas os animais não são marionetes para nosso deleite, dizia Schopenhauer. Leibniz, que escreveu uma das mais infelizes obras da história da filosofia, a Teodiceia, muito enfatiza que o “mal” contribui para que o bem fique mais evidente, e que nós, os seres humanos, temos um bem, que deve ser exercitado, que é o da razão. Ora, mas quantos milhões de seres humanos passaram sobre o planeta Terra sem que jamais tivessem tido oportunidade de exercitá-la? As condições da vida neste mundo são hostis, na maior parte do tempo, ao exercício da razão e da filosofia. Os gnósticos não localizavam o despertar da gnosis na cultura dos livros nem nas escolas, mas a gnosis é a vida na alma (1940, p. 10).

Algo muito importante de ser compreendido no gnosticismo é o papel exercido pelos Arcontes (governantes, em grego). Tenhamos em mente que Paulo, na epístola aos Coríntios, escreve sobre esses “Arcontes”. Segue um esclarecimento sobre isto

Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus (1 Coríntios, 1:24). Tal frase implica uma doutrina gnóstica, e não teria sido usada por um católico primitivo ou um escritor judeu-cristão. Para o primeiro, Cristo foi um sacrifício expiatório, e para o último, o Messias. A ideia de que Deus revelou-se a si mesmo entrou na doutrina cristã através dos gnósticos. Novamente, os gnósticos distinguiam entre a alma do homem natural, que eles chamavam de Ψυχή, e o espírito, que somente poderia ser obtido de Deus através do Logos, Cristo, pela união com ele. O espírito é πνεῦμα. Portanto, os gnósticos classificavam os homens entre pneumáticos e psíquicos. No versículo 14, do capítulo 2, as palavras traduzidas em nossas versões (inclusive em português) por “homem natural”, estão em grego ψυχικὸς δὲ ἄνθρωπος (homem psíquico). Um gnóstico deve ter escrito a passagem na qual o termo ocorre.

Outra expressão é “os arcontes deste éon” ( ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτου), que ocorre em 1 Coríntios 2:8, que em português está “príncipes deste mundo”…

[…} nós sabemos, quando examinamos a Epístola aos Romanos, que esta frase envolve uma doutrina gnóstica.

Gordon Rylands, A Critical Analysis of the four chief Pauline Epistles, London: Watts & CO, 1929. (tradução nossa a partir do original em inglês)


Estes Arcontes exercem uma influência maligna neste mundo. Seu chefe é identificado como sendo o Jeová do Antigo Testamento. São relacionados com a ideia grega da Heimarmene, ou Destino, e que o verdadeiro sacrifício de Cristo, que não foi o de sangue do Jesus católico, foi a da descida para enfrentá-los. A descida é um tema frequente na filosofia e na mitologia, basta recordarmos que Sócrates, no início da República, desce ao Pireu, o filósofo tem que descer à caverna. E todos nós descemos a este mundo, e este é o começo de nossa história e sofrimento. Igualmente, Cristo veio para abolir a Lei judaica, que é obra do Demiurgo (que não tem o significado original platônico) que impede a ascensão da alma (2001, p.43). Poucos compreendem o Cristianismo primitivo há séculos. A psique daqueles homens nos parece estranha, ainda mais numa época tão otimista quanto à nossa. Paulo nunca esteve interessado na vida terrena de Cristo, e muito que leem suas epístolas ficam espantados por que ele não menciona nenhum fato do evangelho. A resposta é simples: o Cristo de Paulo não é de carne e sangue, e ele consideraria repulsiva a narrativa de um deus agindo historicamente. Atentem a esta passagem:

para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.

Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam;

Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória.


ἵνα ἡ πίστις ὑμῶν μὴ ᾖ ἐν σοφίᾳ ἀνθρώπων ἀλλ’ ἐν δυνάμει θεοῦΣοφίαν δὲ λαλοῦμεν ἐν τοῖς τελείοις, σοφίαν δὲ οὐ τοῦ αἰῶνος τούτου οὐδὲ τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτουτῶν καταργουμένωνἀλλὰ λαλοῦμεν θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ, τὴν ἀποκεκρυμμένην, ἣν προώρισεν ὁ θεὸς πρὸ τῶν αἰώνων εἰς δόξαν ἡμῶν: ἣν οὐδεὶς τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτουἔγνωκεν, εἰ γὰρ ἔγνωσαν, οὐκ ἂν τὸν κύριον τῆς δόξης ἐσταύρωσαν.


Os príncipes deste mundo não são governantes como Pilatos e Herodes; antes, são os Arcontes, os que verdadeiramente crucificaram a Cristo. Paulo mesmo faz a distinção daqueles iniciados nos mistérios do Cristianismo original como sendo “perfeitos”. Ao contrário de filósofos modernos como Leibniz, Paulo considerava que a Criação havia sido obra de um deus menor, obra de pura vaidade, à qual estamos sujeitos

Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus.

Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou


ἡ γὰρ ἀποκαραδοκία τῆς κτίσεως τὴν ἀποκάλυψιν τῶν υἱῶν τοῦ θεοῦ ἀπεκδέχεται

τῇ γὰρ ματαιότητι ἡ κτίσις ὑπετάγη, οὐχ ἑκοῦσα ἀλλὰ διὰ τὸν ὑποτάξαντα, ἐφ’ ἑλπίδι


Porque se o nosso mundo é o melhor dos possíveis, por que teríamos tal expectativa? Leibniz, como cristão, não teve como explicar satisfatoriamente a vinda de Cristo ao mundo, uma vez que o mundo não teria motivos para ser redimido. A Criação, para Paulo, só pode ter sido uma coisa má. Assim, porém, podemos começar a entender por que o Cristo de Paulo não é um professor de ética; diante da magnitude do problema, que lugar haveria para o Jesus dos evangelhos sinóticos?

Hans Jonas critica os gnósticos por haverem abandonado o maravilhar-se com o espetáculo da Criação, que tanto os gregos e os judeus sentiram. Mas este maravilhar-se talvez seja mais o exercício da razão do que da intuição e do coração. Vista do alto, a Terra é maravilhosa, mas as desgraças são individuais. Ninguém pensa, quando sofre ou é perseguido e morto, que está contribuindo para a harmonia do todo.

Não foram muitos os filósofos que adentraram neste reino escuro. A maioria se contentou em louvar o mundo e a razão, mas esqueceu da vida que as pessoas comuns levam. Onde a razão estará presente nos manicômios?

Paulo e os gnósticos negavam o sacrifício de sangue de Cristo; a salvação pelas obras também. A epístola de Tiago deve ser uma resposta “católica” a Paulo, porque o espírito é a antítese deste último. Nos Vedas há também a condenação dessas “boas obras”, cuja recompensa é entrar novamente neste mundo ou em um inferior (Mundaka Upanishad).

O que Paulo e o gnosticismo quer que percebamos é que o mundo teria sido obra de uma divindade ciumenta, que quer que abracemos suas obras como sendo a do Deus verdadeiro (2001, p.134). A reflexão a ser feita é o motivo do sofrimento de tantas criaturas para que a beleza do mundo deste Demiurgo inferior permaneça. E nem mesmo temos o consolo de um Schopenhauer, cuja natureza abraça seus filhos após o sofrimento temporário no mundo fenomênico. O Cristianismo oficial ainda inventou um inferno no além que prolonga pela eternidade nossa tortura. Leibniz ainda teve a audácia de defender esta “justiça” divina, que ele ao menos não definiu como “ausência de paraíso”.

Um efeito nefasto de ver o mundo como bom, e colocar toda a potência do ser na matéria, como o fazem Aristóteles, Tomás de Aquino, os neoliberais e tantos outros, é o de banir a verdadeira caridade do ser humano. No gnosticismo somos todos irmãos de sofrimento, inclusive os animais. Precisamos de redenção porque nosso verdadeiro lugar não é aqui. Em Platão a nossa potência verdadeira não está na matéria. Somos muito mais do que aparentamos. Schopenhauer e Jung reconheceram o perigo do princípio da individuação. Sendo assim, não deveríamos enxergar o fenômeno da matéria em si como a verdade última. Este é o reino de Maya. Cada um de nós é lançado no mundo e perde muita coisa. Não temos o consolo de exercer a razão e nos consolarmos que nossa miséria aumenta o bem geral. Se julgarmos que toda pessoa contém tudo dentro de si e nada mais, que o local e época no qual nasceu nada contam, e que o mundo em si é um verdadeiro juízo final, como a caridade irá surgir?

Rylands era bastante crítico do Cristianismo. Tivesse Jesus permanecido como um pregador de ética, a religião cristã teria morrido rapidamente.

Aqueles que imaginam que foi o fator dinamismo (que difundiu o Cristianismo) são convidados a ponderar a opinião de Orígenes, que, ao invés de protestar contra a preferência de Celso pelo melhor ensinamento ético dos gregos, responde que os ensinamentos de Jesus são melhores adaptados à compreensão do homem comum.

[…] Os ensinamentos éticos dos Evangelhos não se elevam acima da marca d’água máxima da moralidade contemporânea dos gregos e judeus e, em alguns aspectos, ainda cai abaixo da moralidade grega, especialmente quando coloca a recompensa ou punição futura como motivo para fazermos o bem.”

Gordon Rylands, The Beginnings of Gnostic Christianity, p.150 (tradução nossa a partir do original em inglês)


Se o Jesus histórico fosse a referência completa que tivéssemos, algumas coisas teriam de ser questionadas. Rylands menciona o tratamento que Cristo oferece à sua mãe, que não pode ser justificado sem uma interpretação alegórica da mãe sendo a sinagoga de Israel. A vida em si de Cristo não teria sido um grande sofrimento até ser crucificado. Viveu pouco, pregou apenas um ano, e sofreu menos do que as crianças que foram mortas em seu nascimento e sobre as quais ele nunca fala, nem mesmo diante de Herodes. A vida não é somente exercer autoridade diante de pescadores, lunáticos entre outros; quando esteve diante dos poderosos, e todos nós os enfrentamos em nossas vidas, calou-se e não se defendeu, talvez porque tivesse que morrer, como diz Rylands.

A moral dos evangelhos é a radicalização daquilo que estava no Antigo Testamento, mas muitas de suas passagens são fracas e excessivamente inferiores à moral de outras religiões mais antigas. Os ensinamentos de Jesus e das cartas de Paulo sobre a escravidão são fracos diante do que Sêneca escreveu na mesma época. O Jesus dos evangelhos preocupa-se muito com a morte, o que não parece ser muito sábio, ao menos no sentido de ter medo de morrer e de um juízo posterior. Tente comparar esta passagem abaixo, “a parábola da semente de mostarda”, com o Evangelho de Marcos 5: 22-42.

De acordo com esta parábola, uma mãe que está sofrendo a morte de seu filho aproxima-se de Buda para que ele o traga de volta à vida. Buda então instrui a mãe que ela será capaz de alcançar seu desejo se ela preparar um chá feito com sementes de mostarda que vieram de uma casa não tocada pela morte. É claro que a mulher é incapaz de encontrar tais sementes, e esse é o ponto; toda vida é impermanente. Encarando este fato, a mulher necessita refletir sobre seus desejos de aproximar-se de coisas que são necessariamente impermanentes.” Encyclopedia of Bioethics, pág. 466

Aqui há uma antítese entre Buda e o Jesus dos evangelhos: qual o sentido de querer ressuscitar na carne, se nem Marcos explica qual foi a vantagem de voltar a viver? No quê a menina que Jesus ressuscitou meditou sobre ter vencido temporariamente à morte? A verdadeira ressurreição da carne teria de ser provada se ossos velhos tivessem a carne recomposta, o que nunca aconteceu. Buda desdenhou de tal crença.

O verdadeiro Cristo de Paulo sofreu, isso sim, pois teve que descer. Isto representa o maior de todos os sacrifícios, e que não pode ser medido por uma escala humana e histórica. Na ocasião em que Jonas explica a importância do Logos (2001, p.21) para o futuro desenvolvimento do gnosticismo e da expansão da mentalidade grega, o Cristo Paulino é melhor compreendido. Os primeiros cristãos apelavam muito para o Cristo-Logos. Ficava mais fácil, porque sua existência terrena era ignorada, como lemos em Justino mártir. Este Cristo manifestava-se entre os “perfeitos”. Paulo nem mesmo preocupava-se se os judeus aceitariam sua mensagem ou não. Sabia que eles reprovariam a ideia de um Jesus de carne e osso. Marcião e os outros gnósticos queriam que os judeus fossem deixados em paz com suas escrituras; somente quando o Cristianismo histórico/católico passa a ser dominante é que a perseguição antissemita tem início.

Nem mesmo o celibato seria algo estranho aos pagãos, que sempre foram os verdadeiros conservadores. Hans Jonas critica o celibato dos gnósticos por supostamente não servir à elevação da alma como é no Cristianismo oficial (p.145). Porém, o celibato é estranho ao judaísmo (ver o episódio da filha de Jefté) e ao Cristianismo sárquico (carnal) católico primitivo. Tanto Clemente de Alexandria como Irineu de Lyon o condenam veementemente. Estavam imbuídos do espírito do Antigo Testamento. Somente com os gnósticos é que o verdadeiro espírito cristão adentrou na Igreja através do celibato sacerdotal, como bem viu Schopenhauer. O filósofo alemão recuperou o sentido dos gnósticos em relação à reprodução como sendo um truque da natureza e dos Arcontes para a manutenção do aprisionamento das almas neste mundo.

Algo muito diferente do que aprendemos sobre o Cristianismo é a rejeição de Paulo das “tradições”. O evangelho de Paulo não lhe foi dado nem de Jerusalém nem de Roma, mas foi uma revelação vinda do céu. A mesma falsa “tradição” que transmitiu a Irineu de Lyon que Jesus tinha vivido até os 50 anos…

Os cristãos ortodoxos não pensem que têm o benefício de serem diferenciados dos gnósticos aos olhos dos neoplatônicos. A opinião radical que o cosmos é um lugar hostil (gnósticos) ou sem a presença da Divindade (Cristianismo) foi duramente criticado por Plotino. Hans Jonas também não pode lamentar que perdemos alguma coisa porque aos olhos do Deus bíblico seríamos criados à sua imagem e semelhança porque isso nem mesmo é recordado nas escrituras. Onde estava “a imagem e semelhança” durante o dilúvio, no massacre dos primogênitos dos egípcios, quando Moisés passa os adoradores do bezerro de ouro sob o fio da espada, e isso segurando a tábua da lei, na qual estava escrito “não matarás”? Muito mais elevada do que esta ingênua observação de Jonas é o ensinamento dos maniqueus que ele reproduz em seu livro. Compare o texto a seguir com o Deus do Antigo Testamento ou com as ações da Igreja ao longo da história

Deus não possui nada de maligno com o qual possa castigar a matéria, pois na casa de Deus não existe nenhum mal. Ele não tem nem um fogo consumidor com o qual possa atirar trovões e raios, nem uma água sufocante com a qual possa enviar um dilúvio, nem um aço afiado nem qualquer outra arma; mas tudo Nele é Luz e substância nobre, portanto, Ele não pode ferir o Maligno.

Hans Jonas reconhece nesta visão maniqueísta uma grandiosidade evidente e, “longe de ser um sinal de covardia, a concepção de Deus dos maniqueus pressupõe que as Trevas não podem ser combatidas com força bruta, pois seria utilizar as mesmas armas do Maligno, mas que a vitória da Luz só pode ser alcançada indiretamente.

Hans Jonas, The Gnostic Religion, Beacon Press, p.215 (tradução nossa a partir da versão em inglês)


Esta passagem é a total negação da tese de Voegelin de um espírito gnóstico combativo para fazer descer o Céu na Terra. O combate principal proposto pelo gnosticismo é não contra o demônio ou contra os hereges, mas é a compreensão do todo. Sem saber de onde viemos e para onde vamos, o autoconhecimento não vem. É o maior de todos os combates e leva a vida inteira. Por causa disto afirmei que o drama da vida humana não é a morte em sim, mas os perigos infindáveis do mundo. Seria temerário considerar que cada um deve experimentar tais males porque são inevitáveis, mas algo nos diz que está longe de ser tão simples. A caridade humana é enorme quando cada um de nós nasce, mas basta a sequência da vida para os julgamentos surgirem e o amor esfriar. Ainda temos de enfrentar inúmeras ideias que aumentam a carga de responsabilidade e julgamento da cada ser, sem levar em consideração as contingências do mundo. É talvez o deus deste mundo de que nos fala Paulo que nos faz cegar (2. Coríntios 4:4)


ἐν οἷς ὁ θεὸς τοῦ αἰῶνος τούτου ἐτύφλωσεν τὰ νοήματα τῶν ἀπίστων εἰς τὸ μὴ αὐγάσαι τὸν φωτισμὸν τοῦ εὐαγγελίου τῆς δόξης τοῦ χριστοῦ, ὅς ἐστιν εἰκὼν τοῦ θεοῦ.


Schopenhauer, apesar da admiração que sentia pelos gnósticos (acreditava que o verdadeiro Cristo era o docético), ironiza seu sistema por tirar a culpa do presidente e lançá-la nos ministros. É verdade, e Jung vai ir muito mais fundo nesta aporia quando apresenta a coincidência dos opostos em Deus: O Criador seria bom e mau ao mesmo tempo. Lutero já possuía tal crença. Evita o dualismo dos gnósticos, mas se a religião dos mesmos já era difícil de se fazer compreender pelo povo, imagino a de Jung.

O que a religião gnóstica apresentou à humanidade é o enfrentamento do colossal problema do mal no mundo. Jung quis que enfrentássemos nossos demônios interiores sem apelar para a falta de consciência e nem para mascararmos o problema alegando que o mal é ausência de bem. Anunciava que a Era de Aquário seria a época no qual cada um carregaria seus próprios fardos, enfrentaria sua sombra interior e a integraria ao consciente. A muleta da religião e da privatio boni deveria ser superada.

Tanto Jung quanto Schopenhauer viram no Budismo uma religião muito mais parecida com o Cristianismo do que o Judaísmo. Mas as emoções são controladas no Budismo, o mesmo não ocorrendo na religião cristã. Quem puder ler o debate de Santo Agostinho com o bispo maniqueu Fausto, ou Orígenes respondendo ao filósofo Celso, verá como o Cristianismo é dominado por emoções. Nos Evangelhos a preocupação maior é enfrentar e expulsar o demônio dos outros, denunciar os outros, converter os outros. No gnosticismo existem dois grandes inimigos a serem enfrentados: o mundo em si e nós mesmos. Para esses dois lugares nossa energia deve estar voltada, que é a aplicação do pensamento de Valentino que coloquei na epígrafe. Jung fez uma comparação magistral entre Jesus (não o Cristo de Paulo) e Buda:

Cristo venceu o mundo ao tomar sobre si o sofrimento do mundo. Mas Buda venceu as duas coisas: o prazer e o sofrimento do mundo, afastando de si o prazer e o sofrimento. E assim entrou num não ser, no estado em que não há volta. Buda é um poder espiritual ainda maior, que também não se regozija mais com o domínio da carne, tão profundamente mergulharam atrás dele prazer e dor. A paixão, que em sua autossuperação ainda é tão poderosa em Cristo e que precisa de si mesma sempre de novo e sempre em maior quantidade para o triunfo da superação própria, migrou para fora do Buda e queima a seu redor como fogo chamejante. Ele está intocado e é intocável. (2013, p.504)

A verdadeira ressurreição que pregam os gnósticos é a do espírito. Em Paulo existe a oposição entre a psique e o espírito (pneuma), que é o novo homem cristão, que é o homem pneumático (2001, p.124). No evangelho de João, no qual a doutrina ética de Jesus ocupa tão pouco espaço, existe uma famosa passagem na qual Cristo ensina que é preciso nascer de novo


ἀπεκρίθη ἰησοῦς, ἀμὴν ἀμὴν λέγω σοι, ἐὰν μή τις γεννηθῇ ἐξ ὕδατος καὶ πνεύματος (pneumatos), οὐ δύναται εἰσελθεῖν εἰς τὴν βασιλείαν τοῦ θεοῦ. .respondit Jesus amen amen dico tibi nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu non potest introire in regnum Dei .τὸ γεγεννημένον ἐκ τῆς σαρκὸς σάρξ (carne) ἐστιν, καὶ τὸ γεγεννημένον ἐκ τοῦ πνεύματος πνεῦμά ἐστιν. .quod natum est ex carne caro est et quod natum est ex Spiritu spiritus est .μὴ θαυμάσῃς ὅτι εἶπόν σοι, δεῖ ὑμᾶς γεννηθῆναι ἄνωθεν.


Plotino faz a acusação contra a ressurreição da carne dizendo que ela nos faz cair de um sono em outro. A aproximação com o gnosticismo é grande quando vemos que o choque com a matéria é o maior perigo também no filósofo neoplatônico.  Portanto, o Cristo dos gnósticos precede o Jesus de carne do catolicismo; a salvação vem pelo conhecimento, e não por fé e muito menos, obras; o verdadeiro sacrifício de Cristo foi ter descido, o que para ele representou o maior de todos os sacrifícios; foi condenado pelos Arcontes, os emissários do Demiurgo; não há qualquer preocupação com uma narrativa histórica por parte dos gnósticos; Schopenhauer recupera o sentido do Cristianismo original com seu Cristo docético, não submetido à vontade da carne, e cujo sacrifício quebra o princípio da individuação.


ὅτι οὐκ ἔστιν ἡμῖν ἡ πάλη πρὸς αἷμα καὶ σάρκα, ἀλλὰ πρὸς τὰς ἀρχάς, πρὸς τὰς ἐξουσίας, πρὸς τοὺς κοσμοκράτορας τοῦ σκότους τούτου, πρὸς τὰ πνευματικὰ τῆς πονηρίας ἐν τοῖς ἐπουρανίοις.quia non est nobis conluctatio adversus carnem et sanguinem sed adversus principes et potestates adversus mundi rectores tenebrarum harum contra spiritalia nequitiæ in cælestibus


A luta, então, é contra estes seres espirituais, e não uma luta militar situada neste mundo. Estes “cosmocratores da escuridão”, um termo clássico do gnosticismo, são inimigos formidáveis, mas ficou mais fácil para a Igreja situar seus adversários neste mundo, como os judeus, os hereges, etc.


Referências:


Encyclopedia of Bioethics 3.Ed. New York:Macmillan Reference USA, 2003.

JONAS, Hans. The Gnostic Religion. Boston: Beacon Press, 2001.

JUNG, Carl Gustav. O Livro Vermelho. Ed.2 Petrópolis: Editora Vozes, 2013.

RYLANDS, Gordon. The Beginnings of Gnostic Christianity. London: Watts & CO, 1940.

RYLANDS, Gordon. A critical analysis of the four chief Pauline Espistles.London: Watts & CO, 1929.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

The Thirteen Principal Upanishads. Oxford University Press, 1921

A Conjuração de Espíritos Planetários

Este é um método de Magia Cerimonial que pode ser utilizado nas evocações dos Espíritos dos Planetas (arcanjos, espíritos olímpicos etc.) Espíritos ou Anjos do Ar assim como suas forças Elementais. 


As Hierarquias Espirituais 

Segundo a Tradição Oculta Ocidental os espíritos se dividem em várias classes, sendo portanto diferentes as suas aptidões e categorias. Existem os espíritos celestes, os aéreos, os terrestres e os infernais. Além disso cada espírito reúne qualidades e acepções distintas. Os chamados celestes residem no céu, os aéreos no espaço, os terrestres na terra e os infernais em seus refúgios. 

O Espírito Supremo ou Criador é o que a tudo rege e governa, e a Ele estão sujeitas, de um modo absoluto, todas as coisas criadas, tanto materiais como espirituais. Assim cada espírito cumpre sua missão especial no Universo e todos, em geral, rendem culto e obediência ao Espírito Supremo do Universo, também conhecido como Grande Arquiteto do Universo (GADU).

Na tradição oculta ocidental, cada planeta possui um corpo físico ou somático, um astrosoma (ou corpo astral) e uma alma. A teoria é que, se os humanos têm alma, certamente os planetas do reino celestial são muito mais espirituais. Isso ocorre porque eles existem mais perto de Deus e são construídos de uma matéria muito mais rarefeita. Era, portanto, lógico para os ocultistas que os planetas também possuíssem suas próprias almas. Como os seres humanos os planetas possuem um bom e um mau gênio ou seja uma inteligência (aspecto luminoso da alma), e um espírito (aspecto sombrio da alma) que são responsáveis ​​pelas influências malignas e benéficas (respectivamente) de cada planeta.

De acordo com o ocultista G. O. Mebes, além de seus corpos visíveis no plano físico, os planetas possuem aspectos energéticos positivos e negativos no plano astral. Os aspectos positivos são a síntese dos impulsos espirituais e as aspirações a favor do desenvolvimento do planeta em questão. Já os aspectos negativos são a oposição que essas aspirações encontradas no plano mental, devido à lei do karma. 

Assim é certo que cada um dos 7 "planetas" utilizados nas práticas mágicas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno) possui o seu lado energético positivo e o seu lado negativo e que, em cada um deles, os aspectos de determinado lado são mais ou menos acentuados.

A Alta Magia Planetária é justamente a ciência de estabelecer uma comunicação com os Espíritos dos Planetas (Espíritos Olímpicos, Arcanjos, Deuses Planetários etc) desde os mais elevados, também conhecidos como Elohim ou deuses, que são os espíritos que governam os corpos celestes até os espíritos terrestres ou elementais que são os últimos receptáculos suprafísicos da força criativa universal que movimenta toda a vida. Os espíritos elementais deslizam através da contraparte etérica do Plano de Malkuth, e estão relacionados aos quatro elementos filosóficos (Terra, Água, Ar e Fogo). 

Desta forma os rituais aqui descritos são mais indicados para a comunicação com espíritos celestes, aéreos e terrestres. Nessa ciência não trabalhamos com os espíritos infernais ou demônios goéticos, chamados de "espíritos impuros" ou "espíritos malignos", como na literatura rabínica. Os magos cabalistas sabiam distinguir entre os espíritos que emanaram dos Reinos da Força Desequilibrada, e foram atribuídos a funções definidas nos “palácios da impureza” ou Kliphoth, e os demônios (daemons) que pairam no ar. Segundo fontes posteriores, os últimos preenchem com seus hospedeiros o espaço do céu entre a terra e a esfera da lua. 

Um iniciado (em sua compreensão da natureza invisível) nunca fala do Inferno teológico e nem determina que demônios habitam paisagens de “fogo e danação eterna” e sim liga suas existências como pertencente ao último grau dos poderes da emanação do "lado esquerdo" (o Sitra Ahra, "outro lado", do Zohar) que corresponde as Dez Sefiroth Inversas ou Malignas da Árvore da Vida Cabalística. 

Reza o Grande Grimório que Lúcifer, imperador; Belzebu, príncipe e Astaroth, grão-duque são os principais espíritos do Reino Infernal. A grafia de Belzebu reflete a identificação de Belzebu com Baal-Zebub, deus de Ekron (no Novo Testamento) demônios intermediários e menores têm pouca personalidade ou poder independente, mas estão subordinados aos três anteriores que formam a Trindade Infernal ou Maligna que é o contrário da Trindade Santa dos Céus.  


Devo sempre usar o Triângulo da Arte?

Existe um outro método de evocação de Espíritos do Ar onde o Triângulo de Manifestação pode ser dispensado. É o que dizem os feiticeiros dos antigos grimórios. 

Neste método os espíritos evocados surgem no exterior do círculo mágico e não podem ultrapassá-lo, devido a barreira protetora invisível dos nomes divinos nele inscritos. Acrescentam que se o feiticeiro bater com a vara mágica (baqueta etc) em um dos espíritos (demônios/daemons) que andam ao redor do círculo, cuja aparência apresenta uma multiplicidade variável conforme a fluidez da luz astral, ele é forçado a entrar no interior do círculo mágico e obedecer ao feiticeiro; não readquire a liberdade senão quando lhe dão permissão. Na maioria das vezes o espírito conjurado é um dos Reis (Rex) do Ar. Muitas vezes ele é forçado a posicionar-se à frente do feiticeiro diante do espelho mágico. Outras vezes ele é persuadido através de conjuros e agrados a “entrar e animar” uma imagem talismânica, cristal ou garrafa mágica, cujos símbolos e elementos são atraentes a natureza do espírito conjurado. Entretanto essa é uma das possibilidades, não é todo magista que pode trabalhar com esse método impunemente e nem é todo espírito que pode ser convocado através dele. Tendo em vista que o espírito ao penetrar na esfera de consciência do magista (simbolizada pelo círculo mágico) deixa-o mais exposto, o que pode afetá-lo em sua psique. Na maioria das vezes o magista mantêm os espíritos fora do círculo ou ordena que um deles entre dentro do Triângulo da Arte, onde fica confinado até o final da cerimônia. Assim sendo, o método aqui descrito, só é indicado se o magista que apresenta um certo domínio da arte e da prática da Magia Cerimonial.  


CONJURAÇÃO DOS ESPÍRITOS AÉREOS


(Espíritos do AR)

Trata-se da evocação dos espíritos (entidades) que se conformam aos dias da semana. Portanto não busca conjurar um espírito ou entidade específica mas quaisquer espíritos que deslizam nas correntes astro-etéricas do dia e hora da operação. Em termos técnicos estamos estabelecendo contato com as falanges de espíritos aéreos que os autores medievais davam o nome de “Anjos do Ar”. Os Espíritos do Ar são entidades etéreas que preenchem o espaço do céu entre a terra e a esfera da lua, e que fazem a comunicação entre Malkuth e os espíritos superiores de primeira e segunda hierarquia.

Um autor grimorial escreveu “os espíritos aéreos são bons e maus. Eles podem mostrar qualquer coisa oculta no mundo, capaz de buscar, transportar e fazer qualquer coisa contida nos quatro elementos da terra, ar, água e fogo. Eles podem descobrir os segredos de qualquer pessoa, incluindo Reis e Poderosos”. 

Portanto não busca conjurar um espírito ou entidade específica mas quaisquer espíritos (falanges) que deslizam nas correntes astro-etéricas do dia e hora da operação. Em termos técnicos estamos estabelecendo contato com as falanges de espíritos que os autores medievais davam o nome de “Anjos do Ar”. Trata-se, na verdade de inteligências que se conformam aos dias da semana e que vivem no mundo sublunar ou seja: que preenchem espaço que existe entre a esfera da Lua e a Terra.

Esses espíritos, e sua hierarquia, são paralelos aos do Grimorium Verum. Entretanto em outro grimório intitulado Heptameron, também chamado Elementos Mágicos, eles estão associados, e subordinados, aos regentes angélicos/planetários de cada dia da semana. 

É importante salientar que para todos os efeitos práticos os Espíritos do Ar são indubitavelmente demônios (daemons). Sendo assim os espíritos evocados não devem ser confundidos com os vários anjos mencionados de acordo com os dias da semana. Neste ritual, como todos derivados de Salomão, os anjos são simplesmente usados ​​para ajudar a contê-los, nada mais. Eles se relacionam com a operação real, na medida em que estão entre os meios pelos quais essa evocação é realizada.  


Conselhos de um mago grimorial

Dizem os antigos grimórios que nem sempre os espíritos se encontram disponíveis para atender aos conjuros e invocações dos mortais, e por vezes é necessário repetir-se o chamado, conjurando-os de novo a se apresentarem e obrigando-os, se não atendem, com algum talismã (geralmente o Selo de Salomão) ou amuleto que possua suficiente domínio sobre eles. Caso contrário, quando o espírito não pode comparecer (por algum motivo oculto) ele deve ser persuadido a enviar outro espírito, com habilidade idêntica ao espírito conjurado, para cumprir as determinações do magista sob as mesmas condições já estipuladas. As invocações devem ser feitas sempre em direção aos quatro pontos cardeais do Universo, para que tenham a eficácia necessária, posto ser o modo mais seguro de se acertar o local onde se encontram os espíritos cuja aparição se solicita. Ainda que presumindo que os espíritos possam estar em qualquer ponto do Universo ao se fazer a invocação (evocação etc.), não é demais saber que sua residência normalmente é o Oriente para os espíritos celestes ou superiores, o Norte para os de natureza fria ou telúricos, o Oeste para os aquáticos, e o Sul para os de temperamento de fogo. Por último nunca é demais lembrar que os espíritos superiores dominam sempre os espíritos inferiores e não estes sobre aqueles, porque assim dispôs o Soberano Criador, a quem todos rendem uma obediência absoluta. 

É recomendável que o ambiente onde será realizado o Ritual Evocatório seja propício a esse trabalho e que o magista tenha se preparado no mínimo por três dias, fazendo uma alimentação especial e a seleção de objetos/instrumentos que serão usados. Papus chega a recomendar um regime estritamente vegetariano até nove dias antes da operação e que na véspera e antevéspera da operação, o magista realize uma confissão de suas faltas. É claro que esse processo é bem austero (com influência cristã) e cada magista deve encontrar um meio termo que se encaixe em suas necessidades. Por último devemos lembrar que qualquer ritual evocatório deve ser tratado também como um exorcismo, apenas que neste caso ao invés de banir os espíritos estamos atraindo-os a nossa presença e obediência. 


Adendo: 


Inferno: O conceito do inferno como lugar de fogo e danação eterna vem sofrendo mutações ao longo das idades. Segundo o autor ocultista Kenneth Grant “o inferno é a região que os antigos egípcios chamavam Amenti – o local do Sol Oculto. A palavra Amen significa “o oculto” e ta significa “terra” ou “morada”. Amenta ou Amenti é, assim, o lugar dos espíritos dos mortos; quer dizer mortos para a mente consciente, mas muito vivos para o subconsciente. (...) Os “mortos” são as imagens esquecidas de nossos passados que respondem ao encantamento e ressurgem na carne do presente”. É evidente que nessa passagem Kenneth Grant sugere os níveis atávicos de nosso ser, as lembranças selvagens dos reinos animais,  que parecem inscritos em nossa memória celular ou biograma. O deus egípcio Kephra, na forma de uma divindade com cabeça de besouro, é o “Sol à Meia Noite, o Deus Oculto, ou Sol em Amenti, que ilumina as regiões inferiores. Psicologicamente falando, ele é o “deus” que traz o subconsciente à vida, isto é, desperta os “mortos”. Assim Grand oferece uma explicação psicológica para o conceito do Inferno. Outros autores, de influência espiritualista, sugerem que o Inferno é de fato uma região metafísica localizado no Astral inferior, justamente na dimensão Astralina (ou espiritual) do plano terreno ou abaixo da crosta terrestre. Eles o chamam de Umbral ou, abaixo dele em vibração, o Limbo. 

Mundo Sublunar: Os autores medievais acreditavam que abaixo da Lua está o mundo ou esfera sublunar, um reino ou região do cosmos gerado pela mistura dos quatro elementos (fogo, ar, água e terra), cujas combinações instáveis são responsáveis pela mutabilidade do mundo manifesto. A região sublunar era caracterizada por estar sujeita a mudanças, ao contrário da Lua e do resto das esferas superiores onde a imutabilidade dominava. Assim ele contrasta com o reino supralunar ou celestial, dos planetas e das estrelas fixas, que é composto apenas de um quinto elemento chamado éter. Este quinto elemento não podia ser transformado nos outros quatro, nem alterado de forma alguma, sendo ingenerado e incorruptível. No mundo sublunar (entre a Terra e a Lua) existem Três Reinos: o Reino Animal, o Mineral e o Vegetal, com suas simpatias e correspondências. Conhecê-los facilita o magista na realização de seu trabalho.

Essa divisão do universo em duas regiões, uma inferior sujeita a mudanças e outra superior imutável, acabaria se tornando uma doutrina básica da filosofia e cosmologia medievais.


Mistérios Tântricos de Baphomet

Baphomet, por vezes denominado “deus dos templários”, foi retratado por Eliphas Levi como um ser humano com cabeça de bode e roupagem. Tem longos chifres, orelhas horizontais e uma barba pontiaguda, formando assim a figura de um pentagrama em sentido involutivo. No entanto, na sua testa vemos um pentagrama em posição reta, evolutiva. Entre os chifres acha-se um castiçal com três chamas, unindo-se, superiormente, numa única tocha acesa brilhando no centro de sua cabeça. Seus pés e pernas são de bode, com cascos e pêlos. Tem seios femininos e um caduceu de mercúrio encobrindo seu falo ereto.

O braço direito de Baphomet é masculino e aponta para cima; sobre ele está escrito a palavra “solve” (dissolve). O braço esquerdo é feminino e aponta para baixo e sobre ele vemos a palavra “coagula” (densifica). Desse modo Baphomet encarna o hieróglifo da perfeição arcana descrito no antigo aforismo de Lei de Hermes: “Aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo.” 

As inscrições SOLVE ET COAGULA nos braços do Baphomet de Eliphas Levi são outro claro exemplo do enfoque dualista. Essa imagem é originalmente presente nos antebraços do Hermafrodita de Khunrath, que representa Adam-Eve ou o Homem Universal. As inscrições são dois pólos que marcam o ciclo solar de Vida, composta de Geração, Nascimento e Morte, para depois haver uma nova Geração que dará continuidade ao interminável ciclo da Vida.

O dois preceitos misteriosos mostram que o Andrógino domina completamente o mundo elementar, agindo sobre a natureza, de modo inteiramente onipotente. 

Para os iniciados a imagem de Baphomet encarna a totalidade da Luz Astral, com predomínio das características involutivas. Na prática ele promove a densificação da força espiritual, pois entre o Arquétipo e a sua manifestação na matéria existe o Demiurgo, o Deus Astral, o Criador do Plano Material. Assim, sob ponto de vista da Kabbalah, Baphomet promove o aterramento das energias vindas diretamente acima do Abismo (Chokmah, Binah e Kether) onde a dualidade cessa na Unidade. 

Assim, a compreensão do simbolismo de Baphomet encontra-se diretamente relacionado a coagulação da Luz Astral, elemento indispensável tanto para a descida do Mens Angélico, como sua ascensão gnóstica (REINTEGRAÇÃO) aos mundos superiores da Consciência Cósmica. 

No contexto dos ritos de polaridade sexual Baphomet representa a dualidade astral da luz e trevas sob controle do magista.

As polaridades masculina e feminina são tipificadas por Samael e Lilith que unem-se no Astral e juntas formam a imagem de Baphomet, o andrógeno, homem-mulher. Dito de outra forma o sacerdote e a sacerdotisa, quando unidos astralmente, conduzem o poder da Kundalini de volta à morada do Deus Oculto em Kether, que equivale ao Sahasrara Chakra ou Estado Supremo. 

Em termos alquímicos a união do Rei Vermelho (Sol) com a Rainha Branca (Luna) produz a Pedra Filosofal, o mistério central do Hermetismo e Rosa-Crucianismo.

Quando unimos nossa dualidade de forças através da energia sexual (ou bipolar do Cosmos) estamos retomando o caminho da Reintegração dos Opostos e nos libertando das cadeias inerentes à parte inferior do mundo de Baphomet.

Nesse sentido, Baphomet atua como símbolo do controle da nossa animalidade interior, de nossa herança animal para expressar a vontade ou intenção do mago em um ritual mágico - uma força praticamente idêntica a Azoth, a "luz astral", o "solvente universal" ou o "elemento mercurial" dos alquimistas - como resultado final da síntese de opostos.


O Deus Baphomet

No Ocultismo Tântrico Baphomet é a emanação menor do Pleroma ou Mente Universal. Ele é a personificação da Luz Astral Bruta, o próprio Demiurgo tornado visível, que forma as bases para a manifestação física. É a força espiritual mais próxima do Universo material. A própria ocultista Dion Fortune, inspirada pelos gnósticos, dizia que este Mundo do Plano Físico foi uma projeção de uma Forma Pensamento realizada por (algum, um) Deus e o ocultista russo G. O. Mebes identifica esse Deus Astral como Baphomet. Na prática podemos dizer que suas ações é de, algum modo, análogas às ações do Demiurgo dos gnósticos, quando afirmamos que ele é um agente do Pleroma (o Deus não - físico) na manifestação de eventos físicos ou mesmo o Criador do Mundo Físico. O turbilhão astral, e a manifestação física, constitui o GRANDE ARCANO DA MAGIA.


O campo de atividade de Baphomet é a Humanidade Universal.

Segundo G.O. Mebes, todos os globos ou esferas do Universo são imantados por um turbilhão astral, ao mesmo tempo involutivo e evolutivo. O turbilhão involutivo é Baphomet, pois ele inicia nos planos superiores e desce ao planos inferiores. 

Como a personificação da Luz Astral Baphomet incorpora a dualidade que existe em todos os globos ou esferas do Universo pois o turbilhão astral é, ao mesmo tempo involutivo e evolutivo, luz e trevas. O turbilhão involutivo inicia em Binah e desce as esferas da Árvore da Vida até materializar-se em Malkuth. Binah é o Deus Saturno, o primeiro prisma transformador que modifica a Luz Astral Bruta – o Demiurgo Baphomet - fazendo-a descer aos planos da manifestação, governando certos eventos e objetos no Plano Físico. 

Conforme desce a Luz Astral vai se densificando, reagindo a cada esfera e fazendo novas combinações pois a Luz Astral é uma Força Criativa quádrupla (Fogo, Agua, Ar e Terra); quíntupla se considerarmos o Akasha (o Espírito) como uma das Forças.

Os quatro elementos básicos que compõem o Universo ao recombinarem com Esferas Planetárias (são 7 em nosso sistema solar) e os 12 signos zodiacais (que compõem juntas as energias arquetípicas do Universo) criam novas manifestações, cada uma particularizada, com sua própria forma e função especializada na criação final do Mundo Físico.

É tarefa do ocultista iniciado saber utilizar o turbilhão astral de Baphomet de forma evolutiva, ele deve aprender como manipular e canalizar a Força Astral Bruta do Corpo de Baphomet tornando-a refinada e diferenciada, capaz de criar no Plano Físico.  É uma questão de modular as vibrações, uma espécie de alquimia interna e externa. 

Para que isso seja possível o iniciado terá que desenvolver um centro de Consciência Estável e Vigilante no Turbilhão da Luz Astral. Esse centro estável de Luz tende a expandir e durante esse processo o iniciado entrará em contato com seu Eu Superior. É ele que guia o caminho do iniciado para a Fonte, de volta a “Reintegração dos Opostos”. A Iluminação Espiritual decorrente dessa REINTEGRAÇÃO é o que liberta o Iniciado das cadeias inerentes ao Astral Inferior representado por Baphomet. 

Em seu processo de retorno ao Estado Supremo, anterior a Queda do Homem, ocorre a inversão da Corrente Baphomética.  Ela volta a sua Fonte que é o Logos. Apenas no sentido evolutivo, ou de ascensão, é que a Luz Astral pode ser chamada de LÚCIFER, o Arquétipo Universal do Arauto da Luz.

Arquétipos Draconianos

 

“Alados seres que alcançam a Gnose

Alimentando  a chama da sabedoria Luciferiana

Em campos de silencio agudo e solitário

Descobrem a Alquimia de suas essências

Morra Iniciado!

Sinta o frio das campas em brumas sombrias

Onde és teu próprio Senhor

Comungando com teus antepassados...

Serpente erga-se!

Destrua as correntes vigentes

Alimente as fagulhas escolhidas

Com a chama do “primo solus”

A cruz é derrubada juntamente com sua causalidade

E o grito de libertação é a metamorfose primal

Levante-se Filho da Chama!

Desperta esse mundo

Da Dor, medo e da morte

Levante-se Incinerador!

Arranque meu coração!

Daí-me o doce sabor da Sabedoria.”


De todos os animais mitológicos, o dragão é provavelmente o mais intenso, significativo, poderoso e complexo. Não se trata de provar a veracidade da existência dessas lindas criaturas, sim de mostrar a grandeza dela no âmbito evolucionista dos homens em milênios de sincretismos entre os povos da Terra. Uns dizem serem lagartos alados, outros serpentes, deuses, demônios, que assim como as cobras, estão associados à eternidade. Protegendo ou destruindo, o mito atravessou milênios de história e ainda é cultuado pela humanidade em diversos segmentos culturais e religiosos.

Esses símbolos de poder, riqueza, glória e medo possuem origem e tempo cronológico incertos. Especula-se que nasceram em virtude da observação dos fósseis de grandes criaturas (desde a Era Mesozóica) onde a mitologia era cercada de grandes heróis que, supostamente, derrotavam tais criaturas. Em algumas culturas orientais, o dragão é considerado síntese de poder e riqueza, haja vista que muitos templos são adornados com dragões protetores.

No antigo Egito, a forma draconiana existia como “adversário da Luz”. Apep (ou Aphopis em grego), a grande serpente inimiga de Maàt, era a personificação da escuridão e do caos da não existência. A serpente, ou melhor, formas serpentinas figuraram diversos “mitos da criação e destruição”. Tidas como mediadoras, detentoras de curas (espirituais), figuras da ressurreição e pêndulos de vida e morte, esses animais demonstravam seus poderes em todos os continentes e nas mais diversas culturas. Em verdade, a forma draconiana muitas vezes é considerada como a evolução das serpentes, donde tais “animais Reais” subiriam aos céus.

Dragões são formas altamente evoluídas e classificar um deus como um dragão é dar a ele todo legado da geração, evolução e transmutação das formas. Além disso, nas formas draconianas os deuses possuem a plenitude de sua “Sabedoria” e domínio Elemental. Nas narrativas mitológicas muitos deuses harmonizados no lado sinistro eram inimigos e lutaram em batalhas épicas. Partindo de tais informações, seguindo conceitos Junguianos, livramo-nos de barreiras impostas pelos conceitos de moralidade e reduzimos o abismo entre o inconsciente e o consciente. Portanto, ao endeusarmos os dragões, deixamos de lado nosso caminho “de espinhos e atalhos dificultosos” e andamos numa reta rumo ao despertar.

Na China, os dragões são a síntese do próprio povo. “Long De Chuan Ren” (filhos do dragão-龙的传人) é uma expressão usada pelo povo para fortalecer suas convicções políticas e sociais. Nessa cultura, os dragões assumiam formas humanas ou de qualquer outra espécie para elevar a humanidade, afinal, “são” seres que habitam o “Jardim da Sabedoria” (similar ao Éden hebreu).

No Leste Europeu, seletas sociedades secretas e ordens são representadas pelos dragões Algumas possuem influencia do culto indiano às Nagas (palavra sânscrita que significa “Cobra, serpente” habitante das águas divinas) e em outras é muito incisiva a influência dos mitos Babilônicos e Sumerianos.

Os dragões, apesar de serem em sua maioria alados e estarem associados ao “Ar”, também podem estar ligados aos demais elementos naturais: Fogo, Terra e Água. Guardam riquezas, geram acontecimentos climáticos, protegem e concedem dons espirituais e carnais. Existe também a associação dos dragões com os pontos cardeais e seus respectivos elementos:


Norte: Dragão da Terra

Leste: Dragão dos Ares

Oeste: Dragão das Águas

Sul: Dragão do Fogo


Arquétipos draconianos


Dahaka: Dragão de origem persa, cujos nomes podem variar entre Azimute Dahaka e Azhi Dahaka.  Suas três cabeças servem ao exército de Ahriman na luta contra o demiurgo persa (Zoroastrismo) Ahura-Mazda. Assim como Dahaka, Ashmoug (outra forma draconiana) também contribui com os exércitos.

Hydra: Uma serpente ctônica de origem grega, besta das águas, cujas sete cabeças (similar a Lotan), quando decepadas, cresciam novamente. Sua respiração exalava um veneno mortal. Tida como uma das formas que guardavam a entrada do submundo (assim como Cérbero). Em algumas passagens mitológicas era descrito como filho de Thypon.

Labbu: Forma draconiana mesopotâmica/acadiana. Um Leão/serpente, aterrorizador, portador de enormes poderes provindos do mar. Aterroriza os deuses cósmicos. É um aniquilador, ou melhor, o ultimo suspiro da humanidade. Algumas correntes associam-no como filho da própria Tiamat.

Leviathan: Dragão dos Mares da cultura hebraica é descrito com riqueza de detalhes em Jó (Bíblia Cristã), como monstro marinho indestrutível pelos homens que governa as tempestades e o caos das profundezas. Em Salmos também ocorre à aparição dele. Seu equivalente na cultura nórdica é Jormungand, um dos três filhos de Loki. Assim como seu arquétipo, aguarda o “A Batalha Final” para cobrir toda Terra com seu veneno e cumprir sua vingança.

Nidhogg: Níðhöggr ou Nidogue, dragão de origem nórdica, cuja função de devastador e decompositor se assemelha a alguns aspectos de Ghougiel. É a representação anti-cósmica da religião nórdica.

Python: Forma draconiana de origem romana (posteriormente grega). Python é nascida na lama pós - dilúvio, do barro. Temida e devoradora, espalha a dor, morte e destruição.

Rahab: Outra designação de origem hebraica, Rahab é um termo comparável aos arquétipos draconianos marinhos como também ao próprio Tohu. Rahab é o próprio Caos das águas (em especial ao mar morto).

Rahu: Forma draconiana de origem hindu. Sua força tem a capacidade de “engolir o sol”, “cobrir o sol” através de eclipses solares.

Saraph Mehophep: A áspide venenosa voadora da cultura hebraica, citada na Bíblia em Isaias 30:6.

Tanin'iver: Dragão anti-cósmico de origem hebraica. Segundo as lendas, essa manifestação draconiana é o “veiculo” que conduz Ama Lilith para o acoplamento com Samael (Satan).

Taninsam: Dragão da cultura hebraica são as formas de dragões, crocodilos e répteis. Tais animais possuem veneno e esse veneno nos estados kliphoticos são usados para matar o ego dos homens dominados pela força de Ieve. Também é a forma como chamamos a “Mãe Negra Lilith” em seu aspecto draconiano e ofídico. Quando Taninsam é invocada, seu veneno mata o ser fraco que habita no receptáculo material e faz renascer o forte com seus refinados conceitos da gnose negra.

Tehon: possui muitos significados. Inicio dissertando que é uma das formas de manifestação de Tiamat (sete mundos infernais), afinal, a palavra acadiana “tantu” tem significado semelhante à Tiamat. Tehom também é a manifestação das águas profundas primordiais (abismo) descritas na Torá. Sendo assim, o “caos amorfo” ou ainda a força que gerou todos os deuses.

Tiamat: Deusa sumeriana do antigo panteão primal. Continha a plenitude dos poderes supremos do caos original. Descrita como a forma draconiana matriarca que dominava os negros oceanos. Sua aparência com sete cabeças é relacionada com Lotan (deus ugarítico), senhor mares primitivos. As criaturas do mar primordial possuem arquétipos muito similares e isso reforça a ideia de uma possível divisão elementar das formas draconianas.

Thypon: Forma draconiana grega, associado a Satan. Representa a indignação contra o demiurgo Zeus. É filho da Terra e do Vento. Alado, recebe o nome de Typhon-Há furando o céu do meio-dia.

Vritra: Forma draconiana hindu. Um dos três “Asuras” que destruía em seu interior todas as formas causais do Megacosmos.

Zohak: Forma draconiana de origem persa. Personificação de Azhi Dahaka. Pertence ao exército de Ahriman. O símbolo dessa dinastia é o “signum Draconis purpureum”, ou seja, o “signo do dragão púrpura”. Para alguns estudiosos, torna-se arquétipo de Satan.


A forma draconiana e o medo


A serpente tornou-se alvo de asco e medo após o cristianismo (advento do Éden). Ao longo de toda história religiosa da humanidade, as serpentes exerceram papéis fundamentais dentro dos cultos pagãos e politeístas. Desde o Xamanismo até a Alquimia, os seres draconianos são símbolos incontestáveis de sabedoria.

Na magia liberta de dogmas e preceitos infundados, os deuses assumem formas livres de padrões humanizados. Uma serpente alada quebra dos grilhões da óptica ilusionista abrindo os sentidos da alma para retratarmos tais seres. Os desenhos estilo “Fantasy art” são exatamente isso.

Na Corrente L.T.J 49, algumas deidades são cultuadas sob formas draconianas. Buscamos nas “Inteligências” contatos mais puros e poderosos a fim de comungarmos com as verdades por de trás dos “véus das formas”.

Ser draconiano, ou melhor, assumir uma forma draconiana não é literalmente transformar-se em dragão, mas sim, receber as qualidades inerentes aos dragões. Nas práticas obscuras, transformamo-nos nos alados seres que recebem a gnose livre de imposições. A “troca de pele”, comum aos seres serpentinos, figura nossa modificação e crescimento deixando pra trás todos os conceitos ultrapassados e estagnados, brilhando por um período de tempo até a nova troca, num processo contínuo rumo aos fogos de Moloch.


As Duas Formações de Ain Soph


 

Cronologia da Criação

“Quando nos altos céus não era mencionado,

E a terra inferior ainda não havia sido nomeada...”

Enuma Elish


Para a melhor compreensão sobre a cronologia da criação, usamos figurativamente o conceito de “Tempo” (t) em  três fases simbólicas representadas por t.0, t.1 e t.2.

O t.0 representa o Caos pré-criação, o “Zeroth”, o Nada Absoluto, o momento em que não existia o pensamento de criação, o “Sono de Tiamat” (expressão uterina da grande força draconiana adormecida).Para corroborar, podemos dizer que o “0” precede o primeiro número inteiro e positivo; o “1”, como também é um conjunto vazio que não adiciona nada e na multiplicação é absorvente.

Dentro do T.0 encontram-se os “Três Véus Negativos da Existencia”.

 t.1 é período de formação cósmica, ou seja, ocorre a primeira manifestação das forças demiurgicas culminando na matéria densa. O t.1 abrange dez fases dentro do processo criativo, assim como graus e degraus demiurgicos. Do número “1” ao “10” encontramos a criação demiurgica ( as Sephirots), inclusive suas leis, restrições e processo cíclico (reencarnação).

O “11” procede o processo de criação cósmica e simboliza as forças de embate ao processo criativo. No Caos Gnosticismo Sumeriano, “11” foram os Guerreiros Bestiais criados por Hurbur/Tiamat para combater os deuses cósmicos, ou melhor, os deuses bastardos. Também verificamos a incidência de tal número na “Árvore da Morte” onde “Onze Deuses Obscuros” governam as dez kliphots.

 O “11” é o despertar do Dragão Adormecido e a vingança contra a tirania dos deuses bastardos fazendo tudo voltar ao “Mistério Imanifesto”. Quando ocorrer o t.2 (1+1=2), todos os elementos formadores do “11” estarão unificados e ocorrerá o retorno ao “t.0”, portanto, t.0 = t.2, 0=2.

O t.2 pode ser exemplificado através do advento denominado “Mahapralaya”  ( palavra sânscrita)  onde ocorrerá a completa dissolução da ordem cósmica e a inatividade, motivada pela suprema destruição, devolverá ao Caos tudo que indevidamente foi construído pelos deuses bastardos.É a verdadeira ira expressa na fórmula “Dies iræ! dies illa!  Solvet Cosmos in favilla!”. Neste período de inatividade cósmica, sob nosso ponto de vista denominado o “Eterno Aeon da Morte”, ocorrerá um estado supremo de felicidade onde o estado de "Não-Eu", concomitante ao Vazio e às Trevas, trará liberdade das prisões psíquicas, mentais e fisiológicas e a comunhão com o Caos, ou melhor, com o útero draconiano. 


As Duas Formações de Ain Soph


Primeiramente, o conceito de “Ain Soph” deve ser devidamente esclarecido para que não ocorram falhas interpretativas acerca da manifestação da Luz Obscura.


Segundo conceitos gnósticos, Ain Soph é um dos três véus negativos da existência, mais precisamente  um estágio de luz ilimitada em que o Demiurgo ainda não havia se manifestado, tampouco, não existiam espíritos ou formas restritas. Neste estágio de “Não-Existência”  iniciou-se o TzimTzum, ou seja, em Ain Soph começou a Criação de um Espaço/Tempo e de uma “realidade” através da grande pressão exercida pelo movimento restritivo. Após a separação do espaço conceitual, o agente criador da “realidade” multifaceta-se e nasce o Demiurgo como modelador e organizador da massa caótica emitindo sua imunda totalidade “divina”(Pleroma) abrindo caminho para que o impulso TzimTzum pudesse completar toda restrição e materialização.


Segundo alguns estudos da “Árvore da Vida” (cabalá), esse impulso restritivo e ciclico denomina-se TzimTzum (Tsimsoum ou ZimZum). Trata-se de um movimento que exerce pressão para a criação e restrição da matéria, ou seja, quando o Caos primitivo foi maculado, partículas começaram se agrupar iniciando um processo de materialização densa. A partir desse movimento demiurgico, nasceu um espaço conceitual e uma noção temporal finita onde o Demiurgo é Onipresente podendo estar no mundo físico, ao passo que da mesma maneira, também tem obrigação de transcender a si próprio. Essa é a explicação para o auforisma : “Kether está em Malkuth e Malkuth em Kether, no entanto de maneira diferente” . O TzimTzum é o movimento de separação e limitação de um determinado espaço/tempo sob pena de imergir nos Ocenos Caóticos Infinitos e Eternos.


O impulso TzimTzum foi o formador de “Malkuth” (O Reino) através dos impulsos de coagulação descendentes. Malkuth é o ultimo estágio da formação demiurgica/sephirotica ( representado pelo número 10), onde a matéria densa toma formas através da atividade dos impulsos formadores e modeladores exercidos através dos quatro elementos.


Essa “Luz Infinita” pressionada pelo TzimTzum formou a “Árvore da Vida” e as Sephirots descendentes. Isaac Luria ( “Ari” - o Leão), conceituado cabalista da escola de Moisés Cordovero, após anos de estudo apresentou ao ocultismo, em meados do século XVI, a palavra “Kliphot” ou “Concha” como sendo o reflexo negativo da obra Demiúrgica onde residem os distúrbios sexuais, fanatismo religioso, violência extrema, traição, mentiras, ódio, vinganças (os excrementos energéticos), enfim, as insatisfações compulsivas que tornam o ser humano irracional e débil em amplos aspectos.


Como já descrito, a Cabalá é dividida em dez Sephiras ( ou dez frutos sagrados), sendo as três primeiras (Kether, Chokmah e Binah), formadoras do triângulo supremo ou o plano tridimensional. Em algum momento incerto a pressão TzimTzum, após ultrapassar as três primeiras sephiras, fez que com que os demais sete vasos (sephiras) rachassem por não suportarem os impulsos.


Alguns afirmam que Satanás preencheu tais rachaduras com o mal. Luria dizia que esse “mal” era propositalmente implementado no universo para que o homem soubesse resistir às tentações, além disso, era propósito mister que os cabalistas reparassem as rachaduras de tais “vasos” para a contemplação divina. As rachaduras, sob um entendimento mais racional, seriam as falhas espirituais e comportamentais do ser humano perante às Leis de suas doutrinas e dogmas sagrados. Desse entendimento nasce a ideia da 11ª sephira ou sephira secreta Daath (o abismo).


Certos cabalistas alegam que os pedaços desses vasos rachados cairam nos abismos caóticos que cerceiam o espaço/tempo e, impregnados pelo mal, representado pela figura de Satanás ou Shaitan ( ן ת י ש ן ת י ש) geraram o lado inverso da criação ou uma outra árvore denominada “Árvore da Morte” (Otz Daath), onde as Kliphots exerceriam os vícios das “divinas” Sephirots. Gerson Scholem corrobora com tal afirmação ao explanar: “O Outro Lado é o fogo da severidade divina, externada e feita independente, donde torna-se um sistema hierárquico integral, um mundo contrário governado por Satã.”


A grande maioria dos entendimentos prega que a dualidade (direita e esquerda, “lux et nox”) está sob mesma regência, ou seja; um Ser Inefável,  através da sua Onisciência (ad infinitum) permitiu a quebra da harmônica construção e a formação de um rígido sistema de vícios tutelados por arquidemônios. Tal sistema deveria ser vencido pelo homem sagrado para, ao fim, ser coroado com a luz divina nos mistérios incognoscíveis. O lado divino (santidade)  e puro “Sitra D 'Kedushah” e o lado da impureza em Sitra Ahra são consideradas as duas faces do Criador que tem em ambas a mesma intensidade.


Nathan de Gaza, um estudioso do Talmud e da Cabalá, muito radical e profético, criou um sistema diverso do original e foi considerado um herege pelo rabinato. Segundo seus entendimentos, em “Ain Soph” se formaram duas luzes antagônicas catalogadas em direita e esquerda. A direita era a “luz brilhante que deseja a Criação” (Sheyesh bo Mahshavah) e esquerda era a “Luz Negra que deseja permanecer dentro de Si” (She-ein bo Mahshavah). Num impulso criativo, a “Luz Direita” expande-se criando uma lacuna e, conscientemente, inicia a Criação. A “Luz Esquerda” mesmo estando num estado não pensativo motivado pelo desejo de permanecer na pureza de “Ain Soph” é obrigada a criar forças contrárias à Criação. Tal força esquerda era tão hostil e destruidora que fora entendida como a expressão máxima do próprio “Mal”. As Kliphots têm suas raízes envoltas nessa energia e são Reinos que emitem, em diversos níveis, a dissolução de qualquer estrutura criada através da “Criadora Luz Pensante”. Dessa forma, Sitra Ahra não é entendida como o lado impuro do Criador e sim como o lado não maculado, que está fora da obra Criativa e que tende a destruir a obra “sephirotica”.


Os conceitos de Nathan de Gaza identificam que o segundo Véu Negativo da Existência “Ain Soph” foi o marco donde uma falsa luz criadora separou-se da emanação da Luz Suprema.A Corrente L.T.J 49 entende que a Luz Suprema não tem vínculos com os conceitos de ‘Inefável’, ‘Uno’ e ‘Inominável’ propagado pelas doutrinas pró-cósmicas. Nossa crença baseia-se na ideia que “Ain Soph” (00) foi um período “sem deus”, sem regras e ordenamentos que emanava a essência Irada maculada pela movimentação de partículas que se se contrairam e expandiram no afã de criar um espaço/tempo apropriado para a Criação da Matéria. Sob esse aspecto, torna-se inviável pensar que “Lux et Nox” estão sob a mesma regência! Podemos associar o “Ain Soph” com o Abismo profundo, Bohu ( ) e ao próprio Apsu, consorte de Tiamat.



Em “Ain Soph” a Luz Negra não pensativa manifestou-se com toda grandeza e fúria ao redor do Pleroma, criando uma barreira de energia obscura que impediu a expansão cósmica e iniciou o processo de degradação e destruição da obra demiúrgica. A Luz Negra (She-ein bo Mahshavah)é a própria Suprema Sabedoria não maculada, a Gnose Luciferiana que busca as fagulhas usurpadas dentro da manifestação material, despertando-as e conduzindo-as para Sitra Ahra.