segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A Língua Primordial - Visconde de Figanière

 

A Língua Primordial e a Comunicação Telepática Nos Primeiros Tempos Da Humanidade

 

DA LÍNGUA-MÃE

Diz-se que nos primeiros tempos a transmissão e percepção do pensamento se faziam sem dependência de órgãos. É como parece que devia ser. 

Os textos teosóficos limitam-se ao simples enunciado que a primeira linguagem foi adâmica [2], de onde derivou a da segunda raça, e desta a língua-mãe dos Lemurianos. O único que se tenha aventurado a explicar semelhante evolução [3]  é o já por vezes citado Man.[4]  Assegura que, depois de desenvolvidos (subentenda-se, nas potências do ciclo) [5]  vista, tato, audição e olfato, e à medida que se manifestasse o sentido do paladar (o que seria sob a quinta sub-raça adâmica), o homem, buscando outro meio de comunicação, descobriu que o possuía no órgão do dito sentido, e que a tentativa começou pela imitação da voz dos pássaros e de outros animais, criaturas tão diversas das conhecidas [6], que o som que emitiam nenhum efeito produziria no nosso sensório, etc. (p. 97). 

Duvido que esta lição tenha recebido a chancela dos Mestres. As percepções desenvolvidas pela primeira raça eram suprafísicas, nem passaram além; não eram sentidos na nossa acepção da palavra. Que o meio de transmitir o pensamento quando a raça chegava ao seu termo, deixasse de ser de todo em todo o mesmo que ao início do seu desenvolvimento, é crível e consentâneo com a lógica da evolução, nem há porque não se chame esse meio a “linguagem primeva dos homens”. Mas em nada representaria a ideia que formamos da linguagem; e dar-lhe por fonte e origem a imitação satisfazendo-se no exemplo de entidades inferiores, condiz mal com o escopo da Filosofia Esotérica. Roça-se muito de perto com o ensino de algumas das escolas materialistas. Fosse o que fosse a dita língua, me parece que teve um princípio mais nobre. 

Por que não significaria uma derivação, por progressivo decaimento, da “língua” dos celestiais, que os ditos homens conversavam tão a miúdo, com os quais se achavam em constante convivência, dos quais haviam recebido a doutrina fundamental do ciclo (textual)? A 7.ª sub-raça acabou por possuir sete percepções, que se haviam desenvolvido por meio de órgãos pré-físicos. Equivaleriam a uma síntese supraorgânica que a aproximava do nível da 1.ª sub-raça, sem contudo levá-la tão alto. No pressuposto que o meio de intercomunicação entre os dhyan-chohans e a 1.ª sub-raça fosse a mútua percepção pelo que se poderia denominar vista ultrasuperorgânica – que nem por isso escapa ao simbólico – então vista, tato, audição, olfato desenvolvidos organicamente, embora em circunstâncias pré-físicas, constituíram quatro escalas de rebaixamento, quatro estádios mais apartados e removidos do plano chohânico ou planetário. O meio primitivo degenerara pela complexidade, tornando-se menos inteligível; não de homem para homem, nem deste para planetário, mas de planetário para homem – decadência na intimidade. Esse meio continuaria a ser fundamentalmente visual, em condições pré-físicas, já não ultrasuperorgânicas. Isso, tanto mais porquanto a evolução da vista foi a especialidade dos Adâmicos (textual). Ora, a 5.ª sub-raça – de qualquer ciclo – é a bem dizer o protagonista da subida, e desenvolvedor do paladar, quanto a sentidos, da mente, no tocante a faculdades superiores. Estou de acordo com os autores de Man em como esta 5.ª sub-raça abrisse a evolução da “língua adâmica”; mas não quanto à natureza que atribuem a semelhante evolução. 

O órgão gustativo – se é que tal houve em corpos pré-físicos – nada teve que ver, na minha opinião, com a efetividade da língua adâmica. A evolução desta consistiu num processo de reabsorção pela vista, das outras percepções desenvolvidas. Desdobramento do “paladar” – mero símbolo de uma analogia – equivaleu ao envolvimento dos “órgãos” com vantagem da vista superorgânica, e o resultado da evolução do 5.º subciclo, ou seja, a linguagem na sua potência efetiva, pode-se exprimir assim: 

 

     Percepção =      Vista + mente = kama + manas           =   1.ª linguagem adâmica

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          Órgãos =      paladar, olfato (audição, tato, vista)    =    símbolos. 

 

 Isto é, a percepção ia impedida ainda de dois órgãos. No fim da 6.ª sub-raça, teríamos: 

 

    Percepção =     Vista + mente = manas (bud. – at.) =  2.ª linguagem adâmica

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          Órgãos =     paladar (olf., aud. tato, vista)        =   símbolos. 

 

Ao cabo da última sub-raça, tem-se: 

 

     Percepção = Vista = intuição = manas + buddhi-atma  = 3.ª linguagem adâmica

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     (pal., olf., aud. tato, vista)                     =  rudimentos orgânicos, ou  condição potencial

 

Quer dizer, a língua adâmica na sua perfeição = vista desimpedida ou superorgânica + mente superorgânica = intuição nas potências do ciclo. 

Por outro lado, essa língua era puramente telepática: o Adâmico “falava” pela vista, “escutava” pela vista. A mente gerava a ideia, a vista a emitia, a vista a recebia, e a mente a conhecia. Significava visão mental. A vista era a síntese das percepções, e correlativa da mente, sendo esta uma função da alma. Os dois correlativos se coordenam pela faculdade unitiva, a visão mental ou intuição (em vários graus) onde causa e efeito se conhecem simultaneamente. Harmoniosa com a condição corpórea de então, sendo os Adâmicos homens diáfanos e transparentes (textual). E, se a imitação foi um elemento no resultado, não vemos dessa forma que o exemplo veio de cima, não de baixo? 

Se homens transparentes, cuja característica foi desenvolver a vista, pela vista se entendiam, é natural concluir que os Pós-adâmicos, apenas físicos, mas já vestidos de pele, cuja característica foi desenvolver o tato, pelo tato – ajudado pela vista – esquadrinhassem o pensamento alheio, e descobrissem o próprio. Tanto mais quando vemos que os homens da raça seguinte – os Lemurianos – cuja especialidade foi o acabamento da audição, mantinham conversa pelo som, pela voz, auxiliada pela vista – expressão do rosto – e pelo tato – ênfase dos enérgicos, violentos ou malcriados – meio ainda hoje prevalecente e em plena voga. 

A linguagem dos Pós-adâmicos nos primeiros tempos foi necessariamente telepática, reduzindo-se à vista. Depois este meio tornou-se secundário, e a intercomunicação dos homens foi pelo tato. Como? O pensamento de quem “falava”, ferindo o ambiente – então de uma sutileza e sensibilidade extremas – produzia um efeito de que se ressentia logo a pessoa  do “interlocutor”; o ambiente recebia o impacto mental – tangível a respeito desse ar finíssimo – e os interessados recebiam na pele a persuasiva e eloquente vibração aérea…  

Argumento final. Os melhores textos teosóficos estão de acordo em que a linguagem da Lemúria foi a verdadeira língua-mãe da humanidade física. Equivale [7] a dizer que as outras duas não podiam deixar vestígios de si. Se a excelência [8] do ambiente dos Adâmicos estava na luz e nas cores; se o fluido em que viviam os Pós-adâmicos se destacava [9] como meio das ligeiríssimas impressões do pensar, transmitindo-as com tão admirável nitidez – o ar, já mais afogueado, dos tempos Lemurianos tinha-se tornado condutor eficaz do som, ao passo que perdera toda a sensibilidade aos impulsos da mente (sensibilidade que hoje compete à luz astral). Com este progresso físico no meio vital, ia de envolta o dos homens, que só em tais condições haviam podido desenvolver o órgão auditivo e a sua correlação ativa, a voz, progresso aliás que se revelava também pela maior atividade [10] do cérebro. Os Lemurianos eram bastante deficientes em olfato (especialidade dos Atlantes), mas possuíam um ouvido sutilíssimo, atingindo grandes distâncias, e de longe objetivavam as vibrações produzidas pelo órgão vocal. Foi graças a este, acompanhado das crescentes operações mentais, que em Lemúria se realizou a primeira linguagem articulada, desdobrando-se em diversos idiomas, e portanto a primeira série de civilizações do circuito. [11]

(VICO  [12] não deixa de acertar bastante, quando diz que as ideias e as línguas se desenvolvem pari passu: SCIENC. NOVA, ax. 62. Foi o primeiro a imaginar a origem monossilábica da língua falada,  lema de que os filólogos modernos têm tirado o seu proveito, ibid. ax. 60). 

Pisando agora um terreno mais seguro da observação aventurada acima – que as duas primeiras linguagens não podiam deixar vestígios de si – inferir-se-ia que da terceira tem ficado algum. De fato, se afirma que nos centros acromáticos [13] existe a chave que abre o parentesco da língua atlante com a dos Lemurianos. Cá por fora não cabe nos estudos filológicos penetrar além da superfície idiomática da quarta evolução linguística, cuja ramificação deu origem [14] a muitos idiomas. 

O dialeto que acusam os sanscritistas, chamando-o de Rakshasi Bahsa, não representa o estilo comum aos Atlantes no tempo do seu encontro com os Indo-aryas; identifica-se noutro muito posterior e alterado, que se tem conservado no sânscrito reformado (MAN, pag. 99). O falar predominante na Atlântida consistia numa linguagem que apenas sobrevive nos dialetos de algumas tribos americanas (raça vermelha), e do interior da China (tribos do Kivang-ze). Uniam-se nela o que os filólogos modernos chamam o aglutinado e o monossilábico (FIVE YEARS, p. 332) [15]. 

Das línguas conhecidas, a que se aproxima mais da atlante é o sânscrito, elemento principal dos idiomas aryanos, e produto da quinta evolução linguística ainda pendente.[16]  A língua-mãe dos Aryas chamava-se Devabhasa, nome que se aplicou depois com menos propriedade ao sânscrito, derivado dela. Foi portanto em Devabhasa que originariamente falavam os Indo-aryas, nossa primeira sub-raça. Hoje é só conhecida dos adeptos [17] que, entre si, lhe dão o nome de Sensar, de onde saiu o Zend (idioma sagrado dos Zoroastros) assim como as línguas desenvolvidas pelas outras sub-raças do presente ciclo. 

 

NOTAS:

[1] “Estudos Esotéricos: Submundo, Mundo, Supramundo”, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, Porto, 1889, 744 pp., Capítulo XI, “A Palavra”, pp. 455-461. Esta obra teve uma edição brasileira que publicou apenas parte do seu conteúdo. Trata-se de “Submundo, Mundo e Supramundo”, Visconde de Figanière, Editora Três, Biblioteca Planeta,  São Paulo, 298 pp., 1973. (CCA)

[2] O termo “adâmica” se refere neste contexto à primeira raça-mãe, ou raça-raiz,  da humanidade.  No Glossário do seu livro, porém, Figanière explica que em função da recente publicação de “A Doutrina Secreta”, e conforme ele escreveu no capítulo suplementar de “Estudos Esotéricos”, isso deve ser corrigido. Ele escreve na p. XIX de “Estudos Esotéricos”, enquanto sua obra já estava sendo impressa, em 1889:   “Atendendo aos novos esclarecimentos do capítulo suplementar este nome já não tem lugar. A 1.ª raça foi sub-humana e pré-adâmica. Os adâmicos correspondem aos primeiros homens das grandes raças 3.ª, 4.ª e 5.ª Lemuriana, Atlante e Aryana”.   Assim, o termo “adâmico” no âmbito do presente texto se refere à primeira raça-mãe ou raça-raiz, mas o  seu significado é outro em contextos diferentes. (CCA)

[3]  O presente texto de Figanière é imediatamente anterior à publicação de “A Doutrina Secreta”. O livro estava sendo impresso quando chegou às mãos do autor um exemplo recém publicado da obra de H.P.B.  Ele teve tempo apenas de acrescentar algumas páginas adequando em um Capítulo Suplementar certos aspectos da sua obra aos ensinamentos  publicados pela sra. Blavatsky. Por isso, nesta frase, ele não se refere a “A Doutrina Secreta”. (CCA)   

[4] Nota de Figanière: “Man: Fragments of Forgotten History”, by Two Chelas, Londres, 1885.  

[5]  “Dentro das potências do ciclo” – isto é, dentro das possibilidades do seu ciclo de evolução. (CCA)

[6]  Isto é, segundo esta ideia, os pássaros e outros animais eram criaturas tão diversas das hoje conhecidas  que o som que emitiam nenhum efeito produziria sobre a nossa audição atual. (CCA)   

[7]  No original, “monta a dizer”, isto é, “equivale a dizer”.  Estamos substituindo a palavra para facilitar a compreensão. (CCA)

[8] No original, “preexcellencia”, isto é, “excelência” ou “ponto  alto”.  Substituímos a palavra para facilitar a compreensão. (CCA)

[9]  No original, “avantajava”, isto é “se destacava”. Substituímos a palavra para facilitar a compreensão.  (CCA)

[10] No original, “atuosidade”, isto é, “atividade”. Substituímos a palavra para facilitar a compreensão. (CCA)

[11] “Do circuito”, isto é, do ciclo maior, que inclui sete raças-raízes. (CCA)

[12] “VICO” – Giambattista Vico (1668-1744). Filósofo italiano, autor de “Nova Ciência da Natureza Comum das Nações”. Vico propunha uma visão interdisciplinar do conhecimento. (CCA)

[13] “Centros Acromáticos”- centros sublimes, esotéricos.  Alusão aos centros e agrupações dos sábios que zelam anonimamente pela sabedoria universal e pela evolução humana. (CCA)

[14] No original, “deu ser”, isto é, “deu origem”. Substituímos a palavra para facilitar a compreensão. (CCA)

[15] “Five Years of Theosophy”, Londres, 1885, 575 pp.  Este volume é uma seleção de artigos dos cinco primeiros anos da revista mensal “The Theosophist”, fundada por H. P. Blavatsky na Índia em outubro de 1879. Há uma edição fac-similar da obra à venda hoje pela “Theosophy Company”, de Los Angeles. (CCA)

[16] “Ainda pendente” – ainda em curso. (CCA)

[17]  “Adeptos” – altos Iniciados, Mestres, Raja-Iogues, “Imortais”, seres proficientes na sabedoria esotérica. (CCA)